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Proíba-se a leitura

Por: Jacinto Pena

 

Não há comentador ou entrevistado, seja analfabeto ou doutorado, desde a parteira até ao coveiro, com todos os outros de permeio, quando entrevistado, seja numa paragem no Xiquelene, seja num painel de debate, quer de num programa de trivialidades ou de Jornadas Científicas nas universidades, que não lamente, consternado, que a juventude de hoje não quer saber de ler para nada, mas que, quando indagado, não saiba logo como resolver esse problema cabeludo: afinal é simples – só é preciso explicar aos jovens a “importância da leitura” e criar nas crianças “o gosto pela leitura” – apregoam todos eles, unânimes, com ares de sabe-tudo.

E, vai daí, anda meio mundo há anos a organizar uma copiosa série de actividades com o fito de dar esta explicação aos jovens: são lançamentos de livros a torto e a direito (meras Feiras das Vaidades, onde pouco se fala de literatura por entre os elogios sempre superlativos, rasgados entre confrades – naquele espírito de uma mão lava a outra e, depois, ambas se aplaudem mutuamente), Feiras do Livro à desgarrada, tertúlias e exposições, concursos e premiações, camisetes e passeatas, Festivais e celebrações de Dias Mundiais! Entretanto, qual é o impacto de tanta explicação acerca da importância da leitura, nos índices de leitura? Se atentarmos à recorrente repetição monocórdica da mesma lamentação sempre que se abre um jornal ou se liga a televisão: é Zero! A que se deverá tamanho fracasso, então?

IMPORTÂNCIA = NECESSIDADE

A importância é uma qualidade intrínseca à necessidade. Nessa perspectiva, sou levado a perguntar: o que é que faz com que ler seja uma necessidade – e, portanto, possa ser considerada coisa importante?

Vejamos algumas razões objectivas, sem sermos exaustivos (vou excluir aqui aquelas necessidades subjectivas elevadas, relacionadas com o prazer e com a estética):

  • Ser indispensável para se passar de classe, no ensino primário!
  • Ser uma exigência para ingressar numa Universidade!
  • Ser condição ou vantagem manifesta para ter acesso a emprego!
  • Ser requisito para poder progredir na carreira profissional e ascender a funções de chefia!

Ora, nenhuma destas razões se verifica em Moçambique! Senão, vejamos:

Em Moçambique não é necessário saber ler para passar de classe, como está patente no facto público de, embora apenas 4,9% dos alunos na 3ª classe serem capazes de ler (INDE, 2016), todos aqueles que não tenham desistido antes, chegarem na mesma até à 5ª Classe! Como foi possível esses outros 95,1% (ou seja, 95 alunos em cada 100) lá chegarem sem saberem ler, e em igualdade de circunstâncias com os que o conseguiram aprender? Só pode ser porque não é necessário saber ler para passar de classe. E, logo, ler não é importante!

E se saber ler não é um requisito para passar de classe no ensino primário, obviamente que essa competência também não vai ser exigida em mais nenhum nível de ensino, incluindo para ingressar numa universidade. Seja pública ou privada, desde que paguem a Taxa de Matrícula e as mensalidades regularmente e sem atraso, os cidadãos ingressam e continuam a passar de ano sem saberem ler. E, logo, ler não é importante!

E porque são admitidos nas universidades sem saberem ler, os cidadãos, desde que paguem a beca e o diploma, são por elas também graduados sem o saberem  fazer – como se diz na informática, “Garbage in, garbage out”.[1] – o que é óbvio, afinal, porque não é nas universidades que se ensina a ler. As universidades não dispõem nem dos conteúdos, nem dos métodos, nem dos meios, nem do tempo para ensinarem a ler. Não sabem fazê-lo.

Mas, o drama não acaba aqui. Regressados aos seus locais de trabalho, onde já não tiveram necessidade de saberem ler para arranjarem emprego, estes iletrados ora graduados, esgrimindo o Diploma, têm as portas das empresas e dos serviços escancaradas para acederem a funções de direcção, gestão e governação – e lá vão acedendo e ascendendo até chegarem ao topo. E, logo, ler não é importante!

E, deste modo, estes graduados sem saberem ler tomaram de assalto o poder ao nível do Estado e ao nível do empresariado. E quem determina agora aquilo que é necessário, são eles, aqueles mesmos que não precisaram de saber ler para se guindarem ao poder. Porém, cientes que estão de que isso é uma deficiência, sentem-se ameaçados por quem quer que saiba ler, pelo que baniram essa competência da lista de requisitos de qualificação. Começaram por banir os exames no Ensino Primário. E, assim decretaram que ler não é importante!

Por fim, como se tudo isto não bastasse, como se sabe, também não é necessário saber ler nem para ser eleito nem para eleger. E, logo, ler não é importante de todo!

Em síntese, a única conclusão que se pode retirar sobre a famigerada falta de interesse pela leitura em Moçambique só pode ser que para tudo aquilo de que cada um necessita, em Moçambique não é necessário saber ler! E, logo, ler não é importante.

É neste contexto de total irrelevância da leitura que estes muitos “experts”, na mais completa dissonância com a realidade nacional, apregoam como solução a necessidade de promoção do “gosto pela leitura”!

GOSTAR = SABER

Mas, para se poder gostar de ler, primeiro é preciso saber ler!

Eu posso gostar de uma música, sem saber distinguir uma nota musical de uma de Metical, porque esse gostar não requer quaisquer competências. Posso, portanto, gostar de música sem saber cantar. Eu posso gostar de uma escultura sem saber sequer diferenciar um rastelo de um cinzel. Posso, pois, gostar de escultura sem saber esculpir. Posso gostar de um quadro, sem saber discernir a tinta-da-china do guache, e sem saber pintar. Posso gostar de teatro sem saber distinguir uma comédia de uma tragédia, e sem saber representar. Posso ser um gourmet, sem saber cozinhar. Posso gostar de moda, sem saber desfilar…  Tudo isto é espectáculo de massas, para entreter, e não requer qualquer saber. A literatura, não! Eu não posso gostar de leitura, sem saber ler! E, saber ler não é inato, tem de se aprender.

Por isso, podem até fazer-se romarias de escritores por meia dúzia de escolas e encher-se as Livrarias e Bibliotecas com todos os livros do Mundo, que enquanto as pessoas não souberem ler não irão lá para os obter. Um livro é um mero instrumento. Um livro não existe até ser aberto, desfolhado, manuseado com as mãos, com os olhos, e com a imaginação. Uma história escrita mantém-se ausente até que esfreguemos a capa do livro e libertemos o génio que lá está hibernado. Mas isso exige… saber ler!

É esbanjamento de recursos toda a acção realizada com o fito de promover a leitura junto a pessoas que não sabem ler. Tem que se ensiná-las a ler, primeiro. Ou seja, O SABER OCUPA LUGAR, sim.

Mas aqueles que tomam decisões sobre o uso a dar aos recursos para combater o problema, preferem andar a disparar a torto e a direito, cada um para seu lado, com a maior precisão, para longe do alvo. Estão a tentar TAPAR O SOL… COM O LIVRO!

Não se promove o gosto pela leitura com acções marginais do tipo espectáculo de massas. Organiza-se meticulosamente o processo de aquisição compulsória da capacidade de ler. Ninguém pode ser obrigado a gostar de ler. Gostar de ler é um Direito individual. Mas saber ler é uma obrigação social. Por isso, todos devem ser obrigados a saber ler! Não se ensina o gosto! Cria-se a competência.

Ou seja, é preciso fazer exactamente o contrário daquilo que se vem fazendo desde há anos a esta parte , e que levou a que actualmente todos os estudantes saiam de todas as escolas do país sem saberem ler, sem terem lido um único livro completo durante 12 longos anos de escola! Os poucos que aprenderam a ler (5 em cada 100) lêem apenas palavras soltas e, ainda assim, com esforço e sem compreenderem o seu significado, o que em nada contribui para tornar a leitura prazerosa. (Nota: saber ler não é gaguejar algumas palavras soltas nem cantar em eclesiásticos coros escolásticos! É ler individualmente, de forma corrida, compreendendo ao mesmo tempo aquilo que se está a ler). Para quem não sabe ler, ler faz doer!

LIVROS… ESCOLA… ACÇÃO!

Portanto, é aqui que mora o problema: aprender a ler! Logo, é para aqui que tem de se apontar. Ora, é única e exclusivamente na Escola Primária que se aprende a ler. Mais concretamente na 1ª e na 2ª Classes. Na 3ª Classe já não se ensina a ler. Usa-se a capacidade de leitura aprendida nas duas classes anteriores para começar a aprender outras coisas, através das quais, claro, se desenvolve e se consolida em simultâneo a capacidade de leitura previamente adquirida.

Se se pretende realmente promover a competência de leitura, tem que se centrar todos os esforços e todos os recursos na Escola Primária. Mas, atenção, não é para estes experts, bem como os escritores, desatarem todos a visitar escolas! É para se reactivar o trabalho dentro das salas de aula, através dos programas, dos métodos e dos meios de ensino, e dos únicos agentes competentes da acção de ensino da capacidade de leitura: os professores.

E é necessário também que o Currículo determine livros de leitura obrigatória em cada classe, e que a capacidade de interpretação correcta dessas leituras seja a condição sine qua non para a passagem de classe!

É aqui, neste nível, que a sociedade escolhe e filtra o nível de competência que quer que os seus cidadãos venham a atingir em matéria de leitura e, assim, que  determina se ler é ou não é importante! A escola é o primeiro elo desta corrente de selecção: quem aprendeu a ler passa, quem não aprendeu não passa! Até aprender.

Esta filtragem tem de ser feita, e só se pode efectuar através da realização de exames, e não removendo-os, ano após ano, classe atrás de classe, como se vem fazendo em Moçambique, de há uns anos a esta parte, em total desfasamento com a realidade nacional. São as provações que desenvolvem o génio humano. As facilidades atrofiam-no.

O problema é que em Moçambique, se escolheu intencionalmente deixar de atribuir importância à leitura ao determinar que os alunos possam passar de classe sem saberem ler.

Portanto, para que ler volte a ser importante, impõe-se voltar a exigir escrupulosamente na admissão e na progressão nas escolas e universidades, no Estado e nas empresas, a competência de leitura como critério de aptidão. Só assim saber ler voltará a fazer a diferença na vida das pessoas e, só então, ler se tornará  importante. E is-so fará com que, então, sem Feiras nem passeatas, sem apelos nem bravatas, volte a haver por todo o lado, gente que quer ler e que se vai bater por aprender a ler. Sem precisar que alguém lho venha dizer.

Mas, atenção, isto será um combate! E os combates fazem sempre vítimas. Que irão estrebuchar, na tentativa de continuarem a impedir a aprendizagem da leitura, para se conseguirem continuar a manter à tona, sem saberem nadar… aliás, ler. Porque a luz desvenda muitos mistérios, o que não interessa aos interesses instalados em ambos os hemisférios!

Sugiro até uma estratégia para vencer este combate: fazendo fé em que “O fruto proibido é o mais apetecido”, e conhecendo a propensão nacional para desobedecer a todas as regras, deve decretar-se a Proibição Nacional da Leitura! Talvez, assim, assistamos a um movimento nacional de desobediência civil, com os cidadãos, imbuídos da rebeldia que se tornou nossa cultura, a lerem livros até nos espectáculos musicais, nos desfiles de moda, nos cabeleireiros, nos campos de futebol, nas barracas, e enquanto aguardam pacientemente pelos “My Love”… bom, se calhar, se as pessoas passarem a ler deixarão de aceitar pacientemente os “My Loves”… uhn… afinal, deve ser por isso que não as deixam aprender a ler! Para que não percam a paciência. Porque ler dá cabo da paciência!

 

 

[1] Entra lixo, sai lixo.

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