No dia 31 de Julho passado, a RTP (televisão pública de Portugal) exibiu no programa “Linha da Frente” uma reportagem intitulada “Cabo Delgado: Nascer para (Sobre)Viver”. Nela retrata-se a violência que se vive naquela província do norte de Moçambique, que já regista mais de 200 mil deslocados, que fogem dos distritos mais afectados para as zonas consideradas seguras.
O trabalho dos jornalistas Pedro Martins e Gabriel dos Santos mostrou com exclusividade as acções do Exército moçambicano no quartel de Mueda – o posto de comando das Forças de Defesa e Segurança na região norte -, segundo descreveu o comandante do Exército Ezequiel Muianga, entrevistado no teatro operacional pela RTP. Na verdade, parece que é a primeira vez que um dirigente militar de topo fala à imprensa desde que começaram os ataques em Outubro de 2017.
A equipa de reportagem teve privilégio de acompanhar uma acção de treinos, com disparos de vários tipos de armamento, com direito a entrevista aos militares que iam explicando os detalhes do armamento e até o peso das munições, no exacto momento em que treinavam; para além do acompanhamento do trabalho dos médicos militares no combate à pandemia da COVID-19, onde fiquei a saber que, regularmente, os militares são submetidos ao teste do coronavírus para evitar possível contaminação generalizada.
Não quero tirar mérito ao brilhante trabalho jornalístico dos meus colegas da RTP e a crítica não é direccionada a eles. Mas confesso que aquele era o sinal que faltava para concluir que o nosso Governo nutre um certo desprezo pelo jornalismo moçambicano e o povo que o elegeu, ao permitir que os moçambicanos continuem a ter a informação mais importante da vida do seu país através de jornais e televisões estrangeiros.
Aconteceu o mesmo em relação às dívidas ocultas. Foi assim em relação aos mercenários sul-africanos contratados para combaterem os terroristas em Cabo Delgado e pagos com o dinheiro dos impostos de cada um de nós. Foi assim em relação à presença de militares russos que entraram no nosso país para reforçar o Exército moçambicano em Cabo Delgado, em nome de uma cooperação militar que não sabemos quais são as contrapartidas disso.
O sociólogo Elísio Macamo lançou uma crítica recentemente, denunciando a “orfandade” e abandono a que estamos sujeitos por parte de quem nos dirige. Macamo foi ao ponto de dizer que “cada um de nós tornou-se num potencial ratinho, à procura do seu buraco para se proteger, porque o Governo e aquele que jurou defender a unidade nacional decidiram que não somos suficientemente adultos para sermos informados com honestidade e transparência sobre o que está a acontecer em Cabo Delgado. Nunca houve um pronunciamento à nação naquela hora nobre do telejornal para falar de Cabo Delgado. Lemos por aí que eles foram pedir ajuda fora do país; que contrataram mercenários para nos defender, que as Forças de Defesa e Segurança se batem com valentia, etc. Só que certeza mesmo não temos, porque nunca ninguém nos informou com a mesma pompa e circunstância com que nos informam sobre a prorrogação do Estado de Emergência. Talvez por medo de causar pânico ou talvez por vergonha de reconhecer que não têm ideia de como lidar com a situação. Ninguém sabe ao certo”.
Pessoalmente, não sei ao certo o porquê desta grande preferência pelos órgãos de comunicação social de fora e pelo estrangeiro. Nunca dissemos, como jornalistas moçambicanos, que não temos coragem suficiente para irmos cobrir o conflito em Cabo Delgado. Aliás, somos nós jornalistas moçambicanos que cobrimos a guerra civil dos 16 anos e demos a conhecer ao mundo os horrores que estavam a acontecer em Moçambique.
Ademais. Nunca os nossos militares vieram em público dizer que não tinham capacidade para combater os terroristas em Cabo Delgado para se optar pelos mercenários sul-africanos ou pelos russos.
É esse mesmo Governo que assobia ao lado e faz ouvidos de distraído quando o Major-General Samuel Luluva disse numa aula de sapiência na Academia Miliar em Nampula que o nosso Exército precisa ser modernizado e equipado para melhor servir os desafios do momento.
Para quem está fora do contexto até pode pensar que estou a levantar um “não-assunto”. Entretanto, os argumentos abaixo podem ajudar a entender o sentido da minha ira.
Primeiro, é preciso entender que os jornalistas moçambicanos não estão a cobrir o que está a acontecer nas zonas de conflito em Cabo Delgado porque o Governo não permite que isso aconteça. Não se vai a uma zona de conflito militar sem garantia de segurança por uma das partes envolvidas. Razão pela qual o jornalista português José Rodrigues dos Santos, que cobriu sete guerras importantes no mundo, disse claramente que não existe imparcialidade na cobertura jornalística de uma guerra, porque ou o jornalista entra no teatro operacional sob protecção do Exército governamental ou sob protecção da contra-parte no conflito. Para este caso, estou a falar das próprias Forças de Defesa e Segurança que têm a obrigação de garantir a nossa segurança neste tipo de situações, tal como o fez com a equipa da RTP.
Olhando especificamente para Cabo Delgado, a única vez que a televisão pública nacional (TVM) cobriu aquele conflito foi no dia 5 de Novembro de 2017, quando os terroristas protagonizaram três ataques sucessivos contra igual número de bases das Forças de Defesa e Segurança na vila de Mocímboa da Praia.
O jornalista Florberto Fernandes e o seu colega de imagens saíram de Pemba quando souberam do sucedido e chegados a Mocímboa da Praia ainda estava-se em combate aberto, tendo valido muito a protecção da Polícia. Depois disso houve uma espécie de ordem invisível de “no go”!
Pessoalmente, enquanto jornalista da media privada, tive a sorte, repito, sorte, de ir por três vezes fazer cobertura das zonas atacadas e não mais que isso, porque o cenário de segurança foi-se deteriorando e seríamos um alvo a abater se fóssemos sem qualquer tipo de protecção.
Os colegas que se aventuram de alguma forma terminam da forma como terminou Amade Aboobacar que foi detido em Janeiro de 2019 por militares, na vila de Macomia, e levado ao quartel de Mueda (o mesmo sítio onde foi a RTP), onde foi interrogado por militares e agentes do Serviço de Informação e Segurança do Estado (SISE), sob acusação de que colaborava com os insurgentes e que era dono de uma conta no Facebook com o nome de Shakira Letícia Júnior, que publicava o que estava a acontecer no terreno. Amade viu-se privado da liberdade durante 108 dias e até hoje, mesmo já em liberdade condicional, a acusação ainda não conseguiu provar o que diz no processo.
O mesmo aconteceu com o jornalista Germano Adriano e quem sabe não seja a mesma motivação que levou ao desaparecimento, há mais de três meses, do jornalista Ibraimo Mbaruco.
Hoje em dia há uma espécie de ordem para não fotografar e/ou filmar no espaço público na cidade de Pemba, capital de Cabo Delgado. Quem se aventura desafiar essa ordem invisível tem o tratamento que teve o meu colega Hizidine Achá, no dia 14 de Abril deste ano, quando em pleno exercício de jornalismo, devidamente identificado, foi interceptado por agentes da Polícia, arrancaram-no o celular, apagaram as imagens que tinha feito de polícias a torturarem indiscriminadamente as pessoas no bairro de Paquitequete, e acabou retido numa esquadra.
Um dos valores nobres de um Governo é comunicar-se com o seu povo. A Constituição da República de Moçambique (2018) determina que o Presidente da República é o Chefe do Governo; é o Comandante-Chefe das Forças de Defesa e Segurança e como tal fica difícil o dissociar do que está a acontecer. Para os jornalistas da RTP terem acesso ao teatro operacional-norte claramente que foi informado e terá anuído o pedido dos jornalistas lusos.
Ao mesmo tempo, fica claro que tem informação de que não se deixa os jornalistas nacionais cobrirem o conflito. Até porque há um dado curioso: quase que de todas as vezes que o Chefe de Estado foi visitar as posições militares no terreno apenas é convidada a TVM e por vezes inclui-se a Rádio Moçambique. A media privada nunca é levada para fazer parte da cobertura.
O artigo 158 da Constituição da República de Moçambique define como competências gerais do Chefe de Estado dirigir-se à nação através de mensagens e comunicações; informar anualmente a Assembleia da República sobre a situação geral da nação. A mesma “lei-mãe” diz que o Presidente da República é o garante da Constituição da República.
Ora, um dos direitos fundamentais que cada moçambicano tem é o direito de acesso à informação. Porém, esse mesmo direito pode estar a ser limitada pelos argumentos que acima expus, numa atitude anti-democrática.
Cabo Delgado também é Moçambique e precisamos ter acesso ao que está a acontecer com os nossos concidadãos e fazermos chegar ao povo “patrão”.