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Preconceito e irresponsabilidade: os rastos ou os rostos da nossa literatura infanto-juvenil

Os grandes autores brasileiros do Sec. XX, quase sem excepção, escreveram também para os mais novos. Jorge Amado, com o livro “O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá”, Vinícius de Morais, com “O Poeta Aprendiz”, Clarice Lispector, com “O Mistério do Coelho Pensante e Outros Contos”, são alguns exemplos. Esse facto, aliado à existência de livros para os adultos editados e ilustrados para as crianças, como são os casos de alguns contos de Machado de Assis, ajudou no reconhecimento da literatura infanto-juvenil no Brasil. Em Moçambique o cenário é diferente. Poucos escritores consagrados escrevem para crianças.

Só para se ter uma ideia, Mia Couto somente entra para a literatura infanto-juvenil com o livro “O Gato e o Escuro” em 2001, depois de ter publicado a coletânea de poemas “Raiz de Orvalho”, no ano de 1983. Ungulani Ba Ka Khossa estreia-se na literatura para os mais novos com o livro “O Rei Mocho” em 2012, depois de “Ualalapi” ter sido lançado em 1987. “Fogueira de Letras” (2019), de Aurélio Furdela, e “O Jovem Caçador e A Velha Dentuça” (2016), de Lucílio Manjate, são dois livros que foram lançados depois de os seus autores terem lançado “O Golo que Meteu o Árbitro” (2003) e “Manifesto” (2006), respectivamente. Essa característica, que é compartilhada com o cenário literário de alguns países europeu, onde encontramos pouquíssimos escritores de literatura infanto-juvenil com visibilidade, (J K Rolling, com o “Harry Potter”, por exemplo, é uma das poucas excepções, David Walliam, com o “Vovó Vigarista” ou “O Menino do Vestido” é outra), tornam a literatura infanto-juvenil uma literatura menor, subalterna, à parte, própria de escritores iniciáticos.

Ao perguntarem sobre os rostos e os rastos da literatura infanto-juvenil em Moçambique, mais do que falar de Orlando Mendes, Angelina Neves, Alberto da Barca, Pedro Muiambo ou Rogério Manjate, mais do que falar da passagem de fábulas populares para contos despedidos do carácter pedagógico, mais do que falar de crianças do nosso tempo em substituição dos animais humanizados como personagens, talvez fosse prudente responder que um dos rostos ou rastos da nossa literatura infanto-juvenil é o preconceito literário.

Na visão de alguns escritores, Pedro Pereira Lopes somente se tornou realmente escritor quando o romance “Mundo Grave” foi distinguido na primeira edição do Prémio Literário INCM/Eugénio Lisboa, em 2018, ou com o lançamento da colectânea de contos “O Mundo que Iremos Gaguejar de Cor” (2017), e não com o livro “O Homem dos Sete Cabelos”, Prémio Lusofonia, Município de Trofa, 2010. Para muitos leitores, o facto de “O Menino que Odiava Números” ter vencido o Prémio BCI de Literatura 2019 não torna o seu autor um escritor. É necessário que um livro para adultos seja publicado para que o autor do romance juvenil perfile na prateleira de livros escritos por “escritores”. Deve ser por isso que algumas pessoas consideram a Feira do Livro da Beira (FLIB) um evento de tubarões e o Festival do Livro Infantil da Kulemba (FLIK) um evento de peixes pequenos.

Outro rosto ou rasto de que a literatura infanto-juvenil em Moçambique enferma é a irresponsabilidade literária, na medida em que, nós, escritores ou “escritores”, aceitamos passivamente o fosso que existem entre a literatura infantil e a literatura feita para os adultos. Pouco escrevemos para os adolescentes. Pouco escrevemos para os jovens. Já não falo do gênero Young Adult.

O autor de “O Pequeno Príncipe” diz, a certa altura do livro: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. Por sua vez, Pitágoras defende que devemos educar as nossas crianças, para que não tenhamos de corrigir os adultos. Meus caros, a biblioteca não pode ser um lugar para pôr os nossos filhos de castigo. Repito: a biblioteca não pode ser um lugar para pôr os nossos filhos de castigo. A biblioteca deve ser um lugar onde os nossos filhos podem conhecer novas pessoas, novos lugares, novas coisas, sem a necessidade de darem a volta ao mundo.

As crianças aprendem pelos exemplos. Um pai que sempre está ao telemóvel dificilmente terá um filho ávido de ter a cabeça mergulhada nos livros. As crianças aprendem mais pelo que os adultos fazem, e menos pelo que dizem. A leitura é uma doença altamente contagiosa. Quem me dera se existisse muita gente doente, principalmente os mais novos! Quem me dera se o preconceito e a irresponsabilidade não fossem os principais rostos ou os rastos da nossa literatura infanto-juvenil! Quem me dera!

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