O jurista e antigo governante Teodato Hunguana aponta como uma das falhas da Constituição da República a ausência de uma ruptura clara na concentração de poderes na figura do Presidente da República. Por sua vez, o académico e também jurista Teodoro Waty defende a criação de uma assembleia constituinte responsável pelo estudo e melhoria profunda da lei-mãe.
A Comissão Técnica do Diálogo Nacional Inclusivo continua a auscultar especialistas sobre várias matérias e, esta terça-feira, recolheu contributos de Teodato Hunguana e Teodoro Waty no âmbito da revisão constitucional.
Teodato Hunguana, especialista em Direito, antigo governante e interveniente nas revisões constitucionais de 1990 e 2004, considera que uma das principais lacunas das primeiras redacções da Constituição foi a falta de uma ruptura efectiva na concentração dos poderes do Chefe de Estado.
“Esta é uma questão absolutamente pertinente, porquanto um dos princípios que devem orientar um processo de revisão constitucional é o de capitalizar os aspectos positivos da revisão anterior, tomando-os como dados adquiridos para os manter ou reforçar, e a partir daí avançar. O que não é expectável, e ainda menos aceitável, é fazer o contrário, isto é, eliminar esses aspectos positivos ou reduzir o seu impacto. Porém, foi isso que aconteceu em 1990, no que designamos como um passo atrás e dois à frente. Um passo atrás ao reconcentrar a chefia do Governo no Presidente da República, para depois avançar para a separação de poderes”, explicou.
Hunguana defende ainda que a revisão constitucional deve ser encarada como um processo contínuo e criticou o facto de o relatório produzido pela Comissão de Revisão Constitucional de Moçambique (CREMOD) não ter sido tornado público.
“Gostaríamos de ter acesso às conclusões do trabalho da CREMOD, pois trata-se de património do nosso conhecimento. Que eu saiba, essas conclusões não foram publicadas nem tornadas públicas. Não sei se estão guardadas em gavetas, mas deveriam contribuir para o esforço já realizado, que custou tempo, dinheiro e envolveu académicos e profissionais. Esse trabalho deve ser valorizado, pelo menos conhecido, para que possamos retirar dele os elementos úteis”, lamentou.
Por seu turno, Teodoro Waty apresentou várias propostas de reforma constitucional, destacando a necessidade da criação de uma assembleia constituinte com poderes originários.
“Esta Assembleia Constituinte teria um poder originário e seria convocada para um propósito único e específico, diferente da Assembleia da República enquanto órgão legislativo ordinário, com a missão exclusiva de elaborar, discutir e aprovar uma nova Constituição ou proceder a uma reformulação profunda da existente, estabelecendo as regras fundamentais da organização do Estado e do seu ordenamento jurídico”, explicou.
No seu entender, muitas das revisões constitucionais em Moçambique resultaram de conflitos e divergências eleitorais, razão pela qual considera fundamental começar pela reforma do sistema eleitoral.
“É necessário reflectir sobre como um sistema eleitoral bem organizado pode produzir resultados diferentes, nomeadamente a ausência de contendas eleitorais, fruto da convicção enraizada em muitos actores políticos de que o processo eleitoral deixa de ser um jogo de resultado pré-determinado, onde o árbitro acaba por ser também o marcador de penaltis e o guarda-redes”, acrescentou.
No prosseguimento do debate, foram apresentadas várias sugestões em defesa de uma revisão constitucional inclusiva.
João Massango, presidente do Partido Ecologista, defendeu que a eventual criação de uma Assembleia Constituinte em Moçambique deve ser amplamente inclusiva e não limitada apenas aos partidos com assento parlamentar. Segundo o político, a experiência internacional demonstra que uma verdadeira Assembleia Constituinte deve ser escolhida pelo povo e integrar representantes de todos os estratos sociais, incluindo partidos extraparlamentares, sociedade civil e grupos críticos, sob pena de gerar novo descontentamento social.
Massango alertou que muitos dos problemas actuais do país têm origem nos conflitos eleitorais recorrentes desde as primeiras eleições multipartidárias. Para o dirigente partidário, a reforma profunda do sistema eleitoral deve ser uma prioridade no Diálogo Nacional Inclusivo, de modo a garantir credibilidade nos próximos pleitos e evitar novas crises políticas e sociais.
O líder ecologista acrescentou que, para além das questões político-eleitorais, o país enfrenta sérios desafios económicos, sobretudo no que respeita à inclusão da juventude. Defendeu a necessidade de um debate sério sobre um modelo económico inclusivo que permita criar oportunidades e reduzir a marginalização social, apontada como uma das principais causas das manifestações juvenis.
Por sua vez, Dinis Tivane, porta-voz do ANAMOLA, centrou a sua intervenção na crítica ao modelo constitucional vigente, considerando que Moçambique manteve, em essência, a estrutura da Constituição de 1975, particularmente no que diz respeito à concentração de poderes no Presidente da República. Para Tivane, essa concentração compromete a eficiência do Estado e está na base de várias crises institucionais vividas no país.
O dirigente defendeu a necessidade de um Parlamento mais forte e representativo, inspirado em modelos internacionais que privilegiam o equilíbrio de poderes e a justiça social. Tivane sublinhou ainda a importância do reforço do poder local e da descentralização efectiva, sustentando que o desenvolvimento e a estabilidade do país dependem de um Estado onde o poder emana verdadeiramente do povo e responde às realidades locais.
A Comissão Técnica do Diálogo Nacional Inclusivo continua a recolher ideias e contributos com vista a uma reforma profunda do Estado.