Mas como é que estas pessoas lidam com o mundo? Como elas sobrevivem num contexto que exige um pouco de literacia? As respostas a estas perguntas são apresentadas nas linhas abaixo por alguns “rostos” do analfabetismo.
Com caneta na mão e folha A4 sobre a mesa, Hortência Constantino, de 35 anos de idade, procura voltar ao tempo e buscar o que as circunstâncias da vida roubaram de si há 29 anos: aprender a ler, escrever e contar.
“Quando criança não tive a oportunidade de estudar porque minha mãe faleceu e fiquei com minha tia (materna)”, contou a mulher e esclareceu que quando houve oportunidade para ser matriculada numa escola, a tia perdeu a vida. “Passei a viver com alguém cuja preocupação era alimentar-me” e não garantir os estudos.
Natural de Inhambane, Hortência só experimentou o ambiente escolar apenas nos primeiros dias da 1ª classe, tempo que não foi suficiente para interpretar as letras, os números e falar a língua portuguesa.
“Não tive problemas muito graves. Nasci filhos e consegui, pelo menos, saber as datas de nascimento” cada um deles, apontou Hortência, acrescentando que a sua maior dificuldade está em escrever uma mensagem para alguém ou responder caso a outra parte lhe escreva.
E mais, Hortência não consegue gravar o número de telefone no celular. “Isso ainda é difícil saber. Quando recebo uma mensagem dou outra pessoa para me ajudar a ler”.
Em 2015, a mulher deixou a sua terra natal com destino à cidade de Maputo à busca de emprego. Ela começou a trabalhar como doméstica sem revelar aos seus patrões que não sabia ler e escrever.
Depois de quatro anos, Hortência tomou coragem e conversou com a sua patroa sobre a possibilidade de voltar à escola e foi inscrita num centro de alfabetização de adultos. Mas o novo Coronavírus interrompeu esse sonho de aprender.
A patroa da entrevistada do “O País” “pagou tudo” que diz respeito à escola. “Comprou-me cadernos. Mas quando começámos a estudar tivemos esta situação do novo Coronavírus e hoje estamos parados”, lamentou a alfabetizanda, mãe de dois filhos.
O novo Coronavírus chegou sem avisar e criou desarranjos em tudo e todos. Contudo, Hortência garantiu que depois de dois meses de alfabetização nota algumas mudanças na sua aprendizagem. “Quando alguém manda uma mensagem, dizendo «olá», consigo responder «oi». Ou, querendo, escrevo «bom dia»”.
Depois de dois meses de alfabetização, Hortência também consegue ler a indicação de rotas no transporte de passageiros. “Consigo ver que ali está escrito «Liberdade, T3 ou Patrice». Não se assemelha àqueles tempos, antes de ir à escola”.
A interlocutora disse igualmente que já escreve o seu nome sem reservas, mas “a conversa pelo WhatsApp continua a ser por áudios porque ainda não escrevo perfeitamente”.
Mas as dificuldades da Hortência estão mesmo na leitura porque quando o assunto é dinheiro, ninguém a aldraba. “Sei contar, não posso mentir (risos). Só tenho medo de ser enganada quando for comprar alguma coisa. Quando o assunto é dinheiro, consigo contar até 100”.
Enquanto a preocupação de Hortência é aprender a ler, contar e escrever, a de uma outra mulher, de 47 anos de idade, que encontramo-la no mercado de Xipamanine, é de vender e garantir o sustento da família.
“Eu não consegui estudar, mas estou bem. Não fui muito longe mas sei contar. Na minha banca quando alguém leva coisas de 500 meticais consigo dar trocos. Em relação à escrita, consigo escrever pelo menos o meu nome”, narrou a vendedeira no mercado de Xipamanine, justificando que o tempo já se foi e na sua idade não pode “desejar muitas coisas”.
“Tomo chapa todos os dias e consigo chegar ao destino. Não leio, tal como fazem os outros, mas dou um jeito. Se alguém manda mensagem consigo ler e responder. Uso a esperteza”, rematou a mulher de 47 anos de idade.
O rosto mais visível do analfabetismo são os adultos, mas entre eles há jovens que na sua maioria abandonaram os estudos nas suas províncias de origem à busca de melhores condições na cidade de Maputo, o chamado “el dourado” para muitos.
Quizito Mário tem 26 anos de idade e é natural de Quelimane. Na sua província de origem, Zambézia, estudou até a 5ª classe porque, supostamente, não tinha condições para continuar. Não sabe ler, escrever e contar mas vontade não lhe falta.
“Gostaria de estudar mas a idade que tenho não me permite voltar à escola. Cá em Maputo estou a viver numa casa de renda. Não é fácil eu pagar a casa e continuar com os estudos. Eu vivo através do negócio de doces”, alegou Quizito Mário.
Para sobreviver, ele depende do negócio que faz desde que chegou a Maputo no princípio deste ano. E para apanhar transporte e comunicar através do celular depende da boa vontade dos outros.
“Às vezes consigo ver o chapa que vá me levar ao destino, mas também pergunto para onde vai” de modo a ter certeza de que não estará perdido. “Quando é para ler uma mensagem, peço alguém que o faz por mim”, explicou Quizito.
Grande parte dos jovens que alimentam o comércio informal na capital do país não são alfabetizados e provêm das províncias do sul do país, nomeadamente Gaza e Inhambane. E o motivo para abandonar os estudos é comum: os pais não tiveram condições para lhes levar à escola.
De acordo com os dados do Censo 2017, Moçambique tem uma taxa de analfabetismo de 39%, contra 50.4 em 2007. Ou seja, em 10 anos, o país reduziu em 11.4 a percentagem de pessoas que não sabem ler, contar e escrever.
Das actuais taxas de analfabetismo, a maioria são mulheres que representam 49.4%, o equivalente a 6.229.631. Os homens correspondem a 27.2%, o que equivale a 4. 272.569 pessoas.
A taxa de analfabetismo no país incide mais nas zonas ruais, com 50.7%. No meio urbano há apenas de 18.2% de analfabetos. Para inverter esta situação, este ano o Governo prevê alfabetizar 256 mil pessoas com idade igual ou superior a 15 anos. O grupo está dividido em 7.200 turmas.
Mas o novo Coronavírus pode comprometer as metas traçada pelas autoridades, de reduzir o analfabetismo de 39 para 34% neste quinquénio.