Uma nova era fiscal se aproxima. Tributar o carbono localmente não é apenas necessário — é a chance de recuperar receita, fortalecer o Estado e preparar o país para a economia do futuro.
Resumo introdutório: Moçambique enfrenta uma crise fiscal sem precedentes, marcada por dívida pública elevada, baixa capacidade tributária e pressão social crescente. No meio desse cenário, a União Europeia introduz o Mecanismo de Ajustamento de Carbono nas Fronteiras (CBAM), um imposto sobre emissões que impactará directamente as exportações moçambicanas de alumínio, aço e cimento. Este artigo defende que o país deve aproveitar essa realidade global para implementar uma tributação verde nacional, recuperando soberania fiscal e gerando receitas importantes para investimentos sociais e climáticos. Com base no caso exemplar da Mozal, que produz alumínio com energia limpa, e na experiência de países africanos que reformaram com sucesso os seus sistemas fiscais, apresenta-se uma proposta estratégica, técnica e política para transformar a crise em oportunidade de desenvolvimento sustentável com o potencial de gerar aproximadamente USD 200 milhões por ano, competindo com os impostos vindos da indústria de Oil & Gás.
Entre Crise e Oportunidade: Moçambique no Divisor de Águas Fiscal
Nas últimas décadas, Moçambique viveu sucessivos ciclos de crescimento, estagnação e crise fiscal. Hoje, mais uma vez, o país confronta-se com uma dura realidade: um Estado excessivamente endividado, dependente de ajuda externa e com fraca capacidade de gerar receita interna. O boletim oficial recentemente publicado pelo Ministério das Finanças sobre a dívida pública, relativo ao primeiro trimestre de 2025, não deixa margem para ilusões propositadas: o stock total da dívida do Governo, em representação do Estado, ultrapassa 1 bilião de meticais, com um crescimento trimestral de 2,7% impulsionado sobretudo por dívida interna, alimentada por sucessivas emissões de bilhetes do tesouro e crédito do Banco Central.
Há quem diga que a dívida não é um problema. De facto, pode não ser. Ora vejamos: em 2024, a dívida total dos EUA alcançou cerca de 36,4 biliões de dólares, o que corresponde a 98% do PIB (no final do ano fiscal). Contudo, a dívida deve ser analisada à luz de diferentes variáveis, sendo que, no meu ponto de vista, a principal é a capacidade de geração de receita e o risco. Aliás, este é o princípio fundamental para qualquer avalista de crédito.
No caso actual de Moçambique, a esta fragilidade fiscal acima mencionada somam-se pressões crescentes sobre a despesa pública (sobretudo o peso da massa salarial), tensões político-institucionais (crise social pós-eleitoral), volatilidade cambial, escassez de divisas no mercado formal e choques externos como alterações climáticas e guerras geoeconómicas. Este facto permite concluir que, para além do risco, o espaço de manobra da política fiscal é cada vez mais estreito. E, ainda assim, com esses alertas vermelhos, continuamos a tratar o debate fiscal como se fosse apenas uma questão de cortar despesas ou esperar pela próxima tranche de financiamento internacional do FMI, Banco Mundial ou de um outro bom samaritano de alma caridosa e cheia de boas intenções.
Alias, reduzir os gastos públicos como salários, subsídios, investimentos e transferências sociais pode parecer uma solução rápida para conter o défice orçamental, mas não resolve a raiz da crise fiscal que Moçambique enfrenta hoje. Na verdade, este tipo de medida, aplicada de forma cega, pode agravar o problema em vez de o mitigar. A despesa pública moçambicana já é, proporcionalmente ao PIB (cerca de 23%/PIB), inferior à média da África Subsaariana (cerca de 29% em média), o que indica que o problema não está no excesso de gastos, mas sim em outros pontos da política fiscal. Por outro lado, cortar salários ou reduzir serviços públicos essenciais como saúde e educação poderá paralisar ainda mais o Estado e aprofundar a percepção de abandono, sobretudo entre os mais pobres.
Continuando, lendo a Proposta do Plano Económico e Social e Orçamento do Estado (PESOE) 2025 de cima para baixo, podemos afirmar com alguma segurança que o comboio entrou em marcha de colisão. Ora vejamos, o PESOE 2025 prevê uma redução orçamental em vários sectores estratégicos, nomeadamente: (i) Educação: redução de 3,7% face ao orçamento de 2024; (ii) Saúde: redução de 2,2% em relação ao ano anterior; (iii) Infra-estruturas (estradas, habitação, saneamento): redução de 14,5%; (iv) Abastecimento de água e recursos hídricos: redução de 18,3%; (v) Energia: corte significativo de 21,9%. Estes cortes significam que, por exemplo no sector da educação, o Estado passa a contratar menos professores, deixando de fora centenas de milhares de crianças que potencialmente irão engrossar a massa populacional analfabeta e com impacto negativo na produtividade geral do sector económico nacional.
O caso do Gana é ilustrativo. Em 2022-23, o país iniciou cortes agressivos na despesa pública no âmbito de um programa de austeridade, mas a medida teve efeito contrário: provocou convulsões sociais, greves generalizadas e protestos populares, enquanto os indicadores macroeconómicos continuaram a deteriorar-se.
Por outro lado, aumentar impostos sem uma base fiscal sólida e sem contrapartidas visíveis também pode ser desastroso. O Quénia é um exemplo recente. Em 2023 e 2024, o governo aprovou uma série de aumentos fiscais e introduziu novos impostos para tentar estabilizar as finanças públicas, mas a população respondeu com protestos massivos violentos e rejeição social, forçando o recuo de várias medidas.
Porém, se cortes públicos, por exemplo, não são o único caminho que vai dar à Roma, que outras opções estratégicas merecem maior atenção por parte dos formuladores da política fiscal em Moçambique? A crise actual pode e deve ser vista como uma oportunidade para repensar profundamente a forma como o Estado arrecada receitas, com criatividade, soberania e visão de longo prazo. Um desses caminhos passa, paradoxalmente, por um mecanismo externo: o Mecanismo de Ajustamento de Carbono nas Fronteiras (CBAM) da União Europeia (EU), que entrará em vigor em Janeiro de 2026.
Antes de avançarmos no detalhe sobre a solidão CBAM, permita-me, caro leitor, fazer uma pausa para destacar a questão da visão estratégica por parte das nossas lideranças acima mencionadas. Nós sabemos e temos a certeza de que os nossos líderes, no exercício das suas funções, carregam consigo boas intenções e amor à pátria, mas isso não salva o Romano da queda. (Engraçado que uma das causas da queda do poderoso Império Roma foi a crise económica-fiscal). É preciso definir o rumo ou então mudar a forma de ver as coisas. Já diz o velho ditado: “Quem não sabe para onde vai, qualquer caminho serve”. Por outro lado, como é amplamente reconhecido na psicologia, mudar a forma como vemos uma situação (coisa) pode transformar a própria realidade dessa situação. Portanto, é urgente e imperioso olhar para os desafios com uma nova lente. Dito isto doutra forma, os “limões” já estão nas nossas mãos. Cabe agora transformar esses limões em limonada, em vez de lamentar. As soluções devem partir de nós, gestores públicos, nós, moçambicanos, nós, académicos, nós, alunos, nós, carpinteiros, e nós, camponeses. Cabe aos “outros” enquadrar-se.
Voltando à vaca fria, a CBAM obriga os exportadores de produtos como alumínio e aço a pagarem uma taxa equivalente ao preço das emissões de carbono aplicado na União Europeia (UE). Se o país de origem não tributar essas emissões, o pagamento será feito na fronteira europeia. Contudo, é aqui onde mora a oportunidade. Se o país de origem já tiver um imposto sobre o carbono, o exportador é creditado por esse valor, ficando, assim, isento de pagar o referido imposto na UE (seguindo o princípio de não dupla tributação). Pagando o imposto CBAM em Moçambique, o operador é automaticamente isento de pagar nas fronteiras da UE. Em outras palavras, o imposto será cobrado de qualquer forma. A única escolha é quem fica com a receita: a UE ou Moçambique.
O caso da Mozal, a maior exportadora do país, é paradigmático. Produz alumínio com base em energia hidroeléctrica (considerada limpa), o que confere uma vantagem comparativa relevante num mundo que caminha para penalizar a produção poluente. Com o CBAM, o alumínio moçambicano, de baixa intensidade carbónica, pode tornar-se ainda mais competitivo nos mercados europeus. Contudo, se Moçambique não tributar as emissões na origem, perderá uma potencial fonte de receita significativa e, mais uma vez, verá os lucros de um recurso nacional escaparem para fora.
Este artigo defende que, para sair da sua crise fiscal histórica, Moçambique precisa urgentemente de expandir a sua base tributária e captar receitas onde elas existem, inclusive no comércio internacional e nas emissões de carbono. O CBAM é um exemplo de como a geoeconomia climática pode ser transformada em fonte de arrecadação doméstica, se o país agir com inteligência estratégica.
Não se trata apenas de responder a uma nova regra europeia. Trata-se de compreender que o futuro da política fiscal nos países em desenvolvimento dependerá cada vez mais da capacidade de se adaptar a um novo contexto global: um contexto em que a descarbonização da economia e a justiça fiscal se interrelacionam. E quem se antecipar colherá os frutos.
Respire fundo três vezes, agora vamos entrar em detalhe no que acima foi dito…
Uma dívida que ameaça a soberania fiscal
No final dos anos 1990, Moçambique enfrentou a maior crise fiscal, com uma dívida externa superior a 6 mil milhões de dólares, representando cerca de 200% do PIB. Foi reduzida no âmbito da Iniciativa HIPC, tendo o Clube de Paris perdoado parte substancial do montante.
Vinte e quadro (24) anos depois, Moçambique vive hoje uma das maiores crises fiscais da sua história recente. No primeiro trimestre de 2025, o stock da dívida pública do Governo Central atingiu 1,07 biliões de meticais, o equivalente a cerca de 80% do Produto Interno Bruto (PIB). Este rácio coloca o país numa zona de alto risco de sobre-endividamento e fragiliza profundamente a sua posição financeira internacional.
(Estar numa zona de alto risco de sobre-endividamento é como uma família que vive de salários baixos, mas acumula dívidas para manter as despesas básicas, como escola das crianças, alimentação e transporte. No início, o crédito ajuda a sobreviver, mas, com o tempo, a dívida cresce tanto que o salário já não cobre nem os juros. A família começa a pedir emprestado só para pagar outras dívidas. Os bancos deixam de emprestar, os vizinhos perdem a confiança, e até comprar fiado na mercearia se torna difícil. Para continuar a viver, essa família é forçada a cortar despesas essenciais, como alimentação ou saúde, e acaba por entrar em colapso. O mesmo acontece com o Estado: quando a dívida cresce além da sua capacidade de pagamento, o país perde credibilidade, acesso a crédito e liberdade de escolha. E quando isso acontece, quem mais sofre é o cidadão comum, com salários em atraso, escolas sem carteiras, centros de saúde sem medicamentos e estradas por acabar.)
A actual dívida de Moçambique está repartida entre dois grandes blocos: 58,6% é dívida externa, contraída junto de parceiros multilaterais e bilaterais como o FMI, Banco Mundial, China ou Portugal; e 41,3% corresponde à dívida interna, essencialmente formada por Bilhetes e Obrigações do Tesouro adquiridos por bancos e instituições financeiras domésticas.
Embora ambas tenham utilidade estratégica, a dívida externa tem condições mais favoráveis taxas de juro mais baixas e prazos mais longos (em média 10-30 anos), o que permite algum alívio no serviço da dívida. Em contrapartida, a dívida interna é no inverso mais onerosa e imediata, com juros mais elevados (quatro vezes mais altos do que os juros da divida externa), maturidades curtas (3-5 anos em média) e impacto directo sobre a liquidez interna, retirando espaço ao crédito produtivo e pressionando o sistema financeiro nacional. Num contexto de baixa capacidade de arrecadação, esta estrutura torna-se insustentável. Neste contexto, o país caminha para uma situação em que contrai nova dívida para pagar dívidas antigas, um ciclo que reduz a soberania orçamental e compromete o futuro das gerações vindouras.
A fragilidade da receita fiscal e os seus efeitos sociais
A arrecadação de impostos em Moçambique continua a ser estruturalmente baixa. Para ilustrar, o país arrecada entre 13% e 15% do PIB em impostos. Esta é a dita pressão fiscal (economistas adoram expressões disruptivas para dizerem coisas básicas), ou seja, a proporção da riqueza nacional que o Estado consegue transformar em receita pública. Em países como a África do Sul ou Cabo Verde, essa pressão fiscal ultrapassa os 25%. Como exemplo ilustrativo: se o PIB for de 100 mil milhões de meticais, o Estado arrecada apenas 13 a 15 mil milhões em impostos, um valor claramente insuficiente para financiar saúde, educação, segurança e infra-estrutura. O Governo está a “sofrer” por não cobrar bem os impostos.
Essa fragilidade é particularmente grave em momentos de crise, como o actual. Sem receita suficiente, o Estado torna-se incapaz de intervir em momentos críticos. Um dos reflexos mais imediatos da crise fiscal é o aumento do custo de vida, pois o Governo não tem capacidade para subsidiar bens essenciais ou controlar os preços. Alimentos da cesta básica como arroz, óleo e farinha registaram aumentos de 15% a 25% entre 2024 e 2025, enquanto os salários da função pública permanecem estagnados. Famílias moçambicanas, já duramente pressionadas, enfrentam o dilema entre alimentar-se ou pagar transporte público, vulgo chapa.
Essa situação, aliada ao descontentamento generalizado com a gestão pública danosa, desencadeou em parte protestos espontâneos no período pós-eleitoral em 2024, sobretudo nos subúrbios das principais cidades, com destaque para Maputo, Beira e Nampula. A erosão da legitimidade do Estado, quando este falha em responder às necessidades básicas, vê-se reduzido a um papel simbólico, pode alimentar novas formas de instabilidade social. Por outras, o país vive, assim, um círculo vicioso: sem receita suficiente, o Estado não investe; sem investimento não há progresso, aumenta o descontentamento; e o descontentamento mina a estabilidade, afastando o investimento privado e agravando ainda mais a crise fiscal.
É preciso levar a sério as mudanças em marcha no cenário global
A conjuntura internacional também é desfavorável. Fenómenos como a crise da migração, crise de habitação, desemprego e, principalmente, o ressurgimento na arena política ocidental dos partidos da extrema levam-nos a pensar que o ciclo da “ajuda fácil” parece ter terminado ou, pelo menos, caminha para o fim. Os doadores tradicionais estão a redireccionar fundos para as suas prioridades domésticas e a exigir maior responsabilidade e resultados concretos. Por outro lado, os mercados financeiros internacionais tornaram-se mais selectivos e mais caros, com taxas de juro elevadas e prazos mais curtos.
Em 2025, no início do seu segundo mandato, o Presidente Donald Trump criou o Departamento de Eficiência Governamental (DOGE), liderado por Elon Musk. Uma das primeiras medidas foi o corte súbito e sem aviso prévio da ajuda externa gerida pela USAID. Esta agência, com mais de 63 anos de actuação, operava em mais de 100 países com um orçamento anual de cerca de 23 mil milhões de dólares. Os cortes afectaram áreas críticas como saúde, educação e segurança alimentar. Muitos programas foram suspensos de um dia para o outro, deixando países vulneráveis sem apoio essencial.
Portanto, há uma mensagem inequívoca para os países, e para Moçambique em particular, de que é urgente repensar com seriedade a eficiência e a eficácia da despesa pública, exigindo uma gestão mais responsável, transparente e orientada para resultados. Mais do que nunca, o Estado precisa de reforçar a sua independência fiscal e assumir plenamente o seu papel de Zaqueu moderno, não como mero cobrador de impostos.
Ruanda: um exemplo africano de como é possível mudar
Nem todos os caminhos levam ao colapso. Há exemplos positivos em África. O caso do Ruanda é um dos mais notáveis. Nas últimas duas décadas, o país reformou profundamente a sua arquitectura fiscal, investindo na digitalização da administração tributária, com sistemas electrónicos de declaração, cobrança e fiscalização que reduziram drasticamente as barreiras burocráticas e principalmente a evasão. Alargou a base tributária com políticas simples, mas eficazes, para captar receita de pequenas e médias empresas. E, sobretudo, fez da transparência e do reinvestimento social dos impostos uma prioridade, o que aumentou a confiança dos cidadãos no sistema.
Como resultado: entre 2012 e 2022, a pressão fiscal do Ruanda passou de 13% para mais de 17% do PIB. No mesmo período, a dependência de ajuda internacional caiu de 75% para menos de 35% do orçamento nacional. Estas receitas adicionais foram canalizadas para educação, saúde e infra-estruturas, consolidando um Estado funcional e resiliente. Este exemplo, mostra que reformar a política fiscal é possível, mesmo num país com escassos recursos naturais. Porém, requer vontade política, visão estratégica e coerência institucional, três elementos de que Moçambique também dispõe, se souber aproveitá-los.
Na vida real, às vezes é preciso usar os ombros dos outros para enxergar o fim do rio….
O CBAM como catalisador de novas receitas
A partir de Janeiro de 2026, a União Europeia irá aplicar integralmente o Mecanismo de Ajustamento de Carbono nas Fronteiras (CBAM). Este mecanismo obriga empresas que exportam para a UE a pagarem um imposto sobre as emissões de carbono associadas à produção dos seus bens, de forma a garantir que os produtos estrangeiros não tenham vantagem competitiva face aos produzidos na Europa, onde já existe um custo regulado para as emissões. (Uma protecção aduaneira à vista. Onde está a OMC? Desculpa: é carbono, não proteccionismo.)
O CBAM incide inicialmente sobre seis sectores intensivos em carbono: aço, alumínio, cimento, fertilizantes, electricidade e hidrogénio. Importadores desses produtos na UE terão de adquirir “certificados de carbono” equivalentes ao preço do carbono europeu (cerca de 96 USD/ton CO₂ em 2023), a menos que os países de origem já tenham aplicado um imposto equivalente.
Sistema económico “ou tributamos nós, ou tributam eles”
A actual arquitectura do CBAM oferece a Moçambique uma oportunidade rara: a possibilidade de recolher receitas internas sem perda de competitividade internacional. Exportadores que paguem o imposto no país de origem não sofrerão prejuízo face aos seus concorrentes, porque o valor será descontado na fronteira europeia. Em outras palavras, se Moçambique introduzir um imposto nacional sobre carbono, os exportadores serão creditados por esse pagamento e não precisarão de pagar novamente na Europa. Assim, o país pode: (i) criar uma fonte de receita fiscal climática, alinhada com as exigências internacionais; (ii) evitar a perda de divisas, que seriam canalizadas para o orçamento europeu; (iii) reforçar a sua posição negocial internacional, mostrando compromisso com a transição verde. Mais ainda, num contexto de fragilidade orçamental e dívida elevada, esta é uma alavanca inteligente, justa e tecnicamente viável.
Caro leitor, imagine uma situação hipotética em que lidera uma associação que produz e vende tomate, religiosamente, a uma cooperativa de produtores hortícolas. De forma repentina, a cooperativa decide introduzir uma nova taxa sobre o tomate e a cebola, à qual chama Taxa de Limpeza (TL), alegadamente para cobrir os custos de higienização antes do empacotamento. Com o objectivo de demonstrar transparência e alinhamento com as normas locais de comércio, a cooperativa permite que a TL seja paga fora das suas instalações. Coincidentemente, a sua associação é reconhecida no mercado por fornecer o tomate mais limpo disponível. Ainda assim, a taxa é obrigatória e não admite exceções, (afinal, a sua associação não é a única fornecedora) e sobretudo, a cooperativa é o único mercado existente. Perante esse cenário, restam-lhe apenas duas opções: (i) permitir que os seus associados sejam tributados pela cooperativa, que depois usará esse dinheiro para investir no seu próprio país e, futuramente, emprestar-lho com juros e sem condições favoráveis; ou (ii) criar a sua própria taxa interna, utilizar os recursos para pagar dívidas à cooperativa e investir parte no aumento da produtividade dos seus próprios membros.
Não precisa de pensar muito para ver que a segunda opção é a mais estratégica, visto que cria maior autonomia e controlo dos recursos, retorno directo e, sobretudo, reforça a legitimidade do gestor ao demonstrar capacidade de auto-regulação e gestão responsável. Em linguagem de teoria dos jogos, é o movimento no xadrez que evita submissão total ao sistema do outro jogador e transforma a regra imposta numa vantagem estratégica, virando o jogo a seu favor.
O estranho caso da Mozal
A Mozal, uma empresa dedicada à fundição de alumínio nos arredores de Maputo, é o maior exportador industrial de Moçambique (contribuir com 28-30 % das exportações totais; cerca de 75 % das exportações manufactureiras e aproximadamente 3,2-5% do PB). A empresa produz alumínio de alta qualidade com base em energia hidroeléctrica proveniente da Hidroeléctrica de Cahora Bassa, o que confere à sua produção uma baixa intensidade carbónica em comparação com concorrentes que utilizam carvão, como na China ou Índia, uma vez que usa uma energia limpa. Apesar da elevada produção, beneficia-se de regime fiscal especial, mantendo uma contribuição modesta de cerca de 0,5 % da receita fiscal total do Estado.
Segundo dados de um estudo do International Growth Centre (IGC), uma instituição de pesquisa aplicada criada pela Universidade de Oxford em parceria com a London School Of Economics (LSE), a Mozal está entre as operações mais limpas do mundo no sector do alumínio. Esta situação confere-lhe duas vantagens decisivas no contexto do CBAM: (i) competitividade em preço: ao não ter de pagar elevados certificados de carbono na UE, o alumínio moçambicano será mais atractivo; e (ii) potencial de receita doméstica: se Moçambique tributar as emissões de forma proporcional, a Mozal poderá pagar localmente sem impacto nos seus custos finais.
Uma das maiores virtudes do CBAM, para países como Moçambique, é a simplicidade administrativa do modelo de receita tornando simplesmente viável para o nosso país. Ao incidir sobre grandes exportadores industriais concentrados, como a Mozal ou outras fábricas de cimento e aço, o imposto pode ser: a) aplicado selectivamente apenas sobre sectores abrangidos; b) cobrado directamente no ponto de exportação, com base em dados já exigidos pela UE; e c) monitorado com baixo custo, por meio de parcerias com a indústria e a Administração Tributária.
Receita climática como novo pilar da política fiscal
Continuando… a implementação de uma tributação sobre carbono nas exportações estratégicas não deve ser vista como uma medida isolada, mas como o início de uma nova arquitectura fiscal baseada em justiça intergeracional e sustentabilidade. Moçambique enfrenta riscos graves devido às alterações climáticas como ciclones, secas e cheias são cada vez mais frequentes e custosos. Ao internalizar o preço do carbono e reinvestir parte dessas receitas em resiliência climática, energias renováveis ou transportes sustentáveis, o país poderá alinhar-se com os compromissos do Acordo de Paris e simultaneamente reforçar a sua capacidade de investimento público.
Oportunidade fiscal com impacto imediato
Moçambique tem a oportunidade única de implementar um imposto nacional sobre as emissões de carbono associadas às exportações de bens intensivos em energia, como alumínio, aço e cimento. Este imposto, ao incidir sobre um número reduzido de empresas exportadoras de grande escala como a Mozal seria de fácil administração, com baixa evasão e elevado potencial de arrecadação. Segundo a análise do IGC, a introdução de um preço do carbono em linha com o CBAM europeu (cerca de 96 USD por tonelada de CO₂) não afectaria negativamente a competitividade da Mozal, pois a sua intensidade carbónica é baixa e o custo do carbono já seria inevitável nas fronteiras europeias.
Nesse sentido, tributar internamente é um acto de soberania. Deixar que a União Europeia recolha esse potencial fundo equivale a ceder receita fiscal sobre recursos e produção instalados em território moçambicano de “mão beijada” uma incoerência fiscal inaceitável num país em crise orçamental.
Chegados a esta fase, é importante responder a uma questão central: como implementar um imposto verde nacional? Para responder a esta pergunta, o nosso artigo fez uma análise das evidências científicas trazidas pelo relatório acima mencionado. Assim, a proposta é simples e tecnicamente viável. Eis os elementos essenciais da medida: (i) case de incidência: apenas empresas exportadoras de sectores abrangidos pelo CBAM (inicialmente alumínio, aço e cimento); (ii) fato gerador: emissões de CO₂ associadas à produção exportada; (iii) alíquota: indexada ao valor do mercado europeu de carbono, com eventual ajuste para protecção da indústria nascente; (iv) créditos fiscais internacionais: as empresas seriam credenciadas para deduzirem esse imposto do que pagariam na EU; (v) Gestão: sob alçada da Autoridade Tributária, com apoio técnico do Ministério do Ambiente e da indústria. Este imposto seria o embrião de uma estrutura de tributação ambiental progressiva, começando nos grandes emissores e podendo ser expandido gradualmente para outros sectores poluentes e consumo doméstico.
Uma outra questão relevante seria: quanto se pode arrecadar? Um exercício estimativo: A Mozal exporta, em média, cerca de 570.000 toneladas de alumínio por ano. Considerando uma intensidade média de emissões da sua produção em torno de 4 toneladas de CO₂ por tonelada de alumínio, isso representa aproximadamente 2,3 milhões de toneladas de CO₂ por ano. Com um imposto nacional equivalente a 96 USD por tonelada de CO₂, isso daria uma arrecadação bruta potencial de cerca de 220 milhões de USD por ano mais de 14 mil milhões de meticais anuais ao câmbio actual. Este montante representa quase 1/3 do total da dívida interna emitida pelo Governo em um trimestre. Trata-se, portanto, de uma fonte de receita significativa, estável e previsível, numa conjuntura em que o país luta para pagar salários e manter os serviços básicos em funcionamento. Este valor poderá crescer se decidirmos tributar outras indústrias abrangidas pela CBAM.
No entanto, se o país não agir, a Mozal será obrigada a pagar esse imposto na fronteira europeia e a receita irá directamente para o orçamento da UE. Trata-se de um caso emblemático de perda de soberania fiscal por inacção.
Este artigo recomenda que a introdução de um imposto verde deve vir acompanhada de mecanismos de equidade, transparência e de combate à corrupção. Algumas recomendações fundamentais: a) Criação de um Fundo Nacional de Transição Verde, para onde reverteriam as receitas do imposto, com regras claras de alocação; b) Aplicação das receitas prioritariamente em sectores sociais e ambientais: electrificação rural, transportes sustentáveis, adaptação climática e compensações para comunidades afectadas; c) Auditoria pública e participação social, com publicação regular dos montantes arrecadados e gastos; d) Não aplicação retroactiva nem sobre produção destinada ao consumo interno, evitando penalizar empresas ou consumidores locais. Com essas garantias, a tributação verde deixa de ser apenas uma medida fiscal e passa a ser um instrumento de transformação estrutural e justiça intergeracional.
Num momento em que a legitimidade do Estado é questionada, a criação de um imposto nacional sobre carbono associado às exportações reforça a autoridade pública sobre os recursos nacionais e projecta Moçambique como um país alinhado com as novas dinâmicas da economia internacional. A medida também melhora a posição do país perante credores, investidores e doadores: demonstra capacidade de inovação fiscal, compromisso com o ambiente e disposição para mobilizar recursos internos sob três critérios centrais para qualquer nova parceria financeira no actual contexto global, ou seja, é uma estratégia que fortalece o Estado.
Condições de sucesso a considerar
A adopção de um imposto nacional sobre carbono, como ferramenta de justiça fiscal e transição climática, não depende apenas do mérito técnico da proposta, mas de um conjunto de condições estruturais e políticas que garantam a sua viabilidade e sustentabilidade. Trata-se de uma reforma com implicações profundas na forma como o Estado se financia, se posiciona perante os seus parceiros e responde às exigências de uma economia verde emergente. Para que tal medida seja implementada com sucesso, Moçambique deve assegurar cinco pilares essenciais que envolvem liderança política, capacidade institucional, legitimidade social, articulação internacional e um quadro legal estável e previsível. Esses elementos são mutuamente dependentes e constituem o alicerce sobre o qual se pode construir uma reforma fiscal transformadora. Abaixo segue uma a explicação detalhada de cada pilar:
- Vontade política e liderança estratégica: a primeira condição para o sucesso de um imposto nacional sobre carbono é a existência de vontade política clara ao mais alto nível do Estado. Não se trata de uma mera medida técnica ou fiscal, trata-se de uma reforma com implicações estratégicas para a soberania, a justiça social e o posicionamento internacional de Moçambique. A liderança política deve ser capaz de:
- Assumir a narrativa pública de soberania fiscal e justiça ambiental;
- Mobilizar o Parlamento para aprovar o enquadramento legal necessário;
- Resistir a pressões de grupos de interesse, que poderão tentar minar a proposta por temerem precedentes tributários.
- Capacidade institucional da Autoridade Tributária: A Autoridade Tributária de Moçambique (AT) será um actor central. Para implementar eficazmente o imposto sobre carbono associado às exportações, a AT deve:
- Dispor de uma unidade técnica especializada em fiscalidade verde e comércio internacional;
- Ter acesso a informação actualizada sobre emissões e fluxos de exportação, em cooperação com os Ministérios da Indústria, Energia e Ambiente;
- Estabelecer mecanismos de certificação e verificação das emissões, em articulação com as exigências da União Europeia.
- Legitimidade social — Comunicar, ouvir, reverter em benefícios: nenhuma reforma fiscal sobrevive sem legitimidade social. A implementação de um imposto nacional sobre o carbono deve ser acompanhada por uma estratégia de comunicação robusta e inclusiva, que:
- Explique à população que o imposto não será pago por famílias nem pequenas empresas, mas sim por grandes exportadores que de qualquer forma já pagarão à UE;
- Destaque os benefícios directos que o país colherá, ao reter receitas e reinvesti-las no território nacional;
- Demonstre de forma concreta como essas receitas serão aplicadas, em áreas como educação, energia rural, infraestruturas verdes e resiliência climática.
A criação de um Fundo de Transição Verde com participação da sociedade civil será uma âncora importante para garantir transparência e confiança pública.
- Cooperação internacional e alinhamento com parceiros – Ao mesmo tempo, Moçambique deve dialogar com os seus principais parceiros comerciais e técnicos, incluindo:
- A União Europeia, para garantir reconhecimento pleno do imposto nacional e evitar dupla tributação;
- Agências multilaterais como o FMI, Banco Mundial e PNUD, para mobilizar apoio técnico e institucional;
- Organizações regionais como a SADC e a UA, para incentivar abordagens comuns à tributação verde e evitar competição desleal entre países vizinhos.
- Um marco legal sólido e sustentável – Por fim, será necessário aprovar um enquadramento legal claro, duradouro e tecnicamente robusto, que:
- Defina a base tributável com critérios mensuráveis e alinhados com normas internacionais;
- Estabeleça a forma de cálculo, cobrança e dedução do imposto;
- Determine os critérios de isenção ou diferimento temporário para sectores emergentes;
- Crie mecanismos de actualização automática da alíquota com base no preço do carbono na UE.
Este marco legal deve ser protegido de interferência política ou mudanças frequentes, garantindo previsibilidade e confiança para os investidores.
Notas finas: Moçambique encontra-se diante de uma escolha histórica. Por um lado, carrega o peso de uma dívida pública insustentável, uma base tributária estreita e um Estado fragilizado na sua capacidade de investimento e resposta social. Por outro lado, abre-se diante de si uma nova realidade global — marcada pela transição energética, pela tributação das emissões e por mecanismos como o CBAM europeu.
O que este novo cenário internacional oferece não é apenas um desafio — é, sobretudo, uma janela de oportunidade fiscal e estratégica. A possibilidade de tributar as emissões de carbono nas exportações nacionais, antes que outros o façam, permite ao país recuperar uma parte da sua soberania orçamental e alinhar-se com os padrões da economia do futuro. O caso da Mozal demonstra com clareza: há activos nacionais que, pela sua natureza limpa e estratégica, conferem a Moçambique uma vantagem comparativa real. Mas essa vantagem só se materializa se o Estado for capaz de agir criando mecanismos fiscais inteligentes, simples, justos e com retorno social claro.
Mais do que uma proposta técnica, o imposto sobre carbono nacional deve ser entendido como um acto de afirmação política e moral: de que o país está disposto a assumir o controlo da sua política fiscal, a proteger os seus recursos, a antecipar tendências globais e a construir um futuro mais resiliente e inclusivo.
Adiar essa decisão é perder receita, depender mais de credores e aprofundar o ciclo de vulnerabilidade. Assumi-la, pelo contrário, é transformar a crise fiscal num ponto de viragem histórica.
Mais vale nós do que eles….