“O inferno são os outros”, dizia Sartre. Mas em aqui em Moçambique concretamente em Cabo Delgado, o inferno somos nós, com os nossos silêncios, os nossos cargos, os nossos cargos-fantasmas, e as nossas conferências e fóruns com doadores desse conflitos cheias de nada.
A guerra em Cabo Delgado já não é apenas no norte. O sul da província, antes visto como zona de refúgio, tornou-se agora o novo epicentro de ataques terroristas, campos de concentração improvisados e zonas de abandono estatal. Agora é zona sul da província, Chiúre-Velho, Mazeze, Nanduli, Natócua, Milamba: nomes de aldeias que já não são lugares, mas epitáfios de uma nação que virou campo de extermínio. São as novas geografias do horror. E mais: são símbolos do fracasso total de um regime que prefere perseguir críticos nas redes sociais do que enfrentar os verdadeiros inimigos da nação. E onde está o Estado? Onde está a Procuradoria-Geral da República? Claro está talvez ocupadíssimo a procurar um homem civil totalmente que pensa diferente. Será que o sangue de um camponês vale menos que o silêncio de um político?
Será que seis cabeças decepadas não merecem um processo judicial? Chamar o comandantes das forças e defesa e segurança a fim de vir responder o que estamos a falhar?
Seis camponeses foram decapitados em Natócua, no distrito de Ancuabe, e ataques simultâneos ocorreram em Chiúre-Velho e Mazeze. Populações estão a fugir a pé. As casas foram queimadas. O pânico reina. Sim, decapitados. Não é uma metáfora bíblica ou cena de filme de acção. É real. Como o sangue que ainda escorre pela terra quente onde colhiam milho. E o governo? O governo assiste. Cala. Fabrica relatórios. E telefona com as ONGs para irem dar passeadas e tirar fotos e mandar os seus doadores. E outros protege hotéis de luxo lá em Mecúfi.
Se fossem empresários, haveria discursos oficiais. Mas eram só camponeses. E como dizia Fanon: “A vida dos colonizados começa onde termina o interesse do colono.”
E os culpados? São os terroristas, dizem. Talvez que financia é o Venâncio Mondlane como o processo aparece. Mas quem os nomeou assim? Quem lhes deu armas? Quem lucra com a sua existência? E mais: onde está a Procuradoria-Geral da República agora? Vai continuar a fingir que a Constituição de Moçambique não cobre Chiúre, Ancuabe e Nanduli? A Força Local e os soldados do Ruanda encontram corpos. O povo encontra os restos. O Estado encontra desculpas.
“Chorar sobre os mortos é fácil. Viver com os vivos é que é guerra”, escreveu Cesare Pavese. E aqui, em Cabo Delgado, vivemos com mortos adiados. Caminhamos entre vivos com prazo de validade. As casas ardem, mas o Parlamento não aquece. O que se passa neste país é mais do que um conflito. É uma engenharia do medo. É necropolítica em estado bruto. É gestão da morte ao serviço dos interesses.
Veja bem, o Comando Norte das Operações Militares está instalado em Mueda, terra dos chefes, onde nada acontece. Por quê? Porque ali não se mata. Por que não está em Meluco, Mocímboa ou Quissanga, onde as mortes acontecem todos os dias? A resposta é simples: os vivos têm mais valor quando votam, mas os mortos são mais úteis quando calam os vivos. E Mecúfi? A terra sagrada dos projectos de elite. Lá não se queima nada. Lá o Hotel Diamond do Nyusi brilha mais que a dignidade dos refugiados. Todas às ONGs dê atenção urgente lá. Lá os peixes nadam em paz enquanto os homens correm nus pela mata, fugindo da decapitação.
E a PGR? Vai abrir processo contra quem? Contra os jornalistas que denunciam? Contra nós que escrevemos? Contra os aldeões que choram? Contra os terroristas que o próprio Estado já não tenta combater? Na televisão, ouço debates sobre terrorismo islâmico, como se fosse um vírus importado, e não um resultado da miséria, do abandono, do roubo, da exploração. São 349 mortos em 2024, diz o relatório do Centro de Estudos Estratégicos de África. Mas que centro é esse que não se desloca ao epicentro? Que estuda, mas não escuta?
Enquanto isso, a nossa Procuradoria investiga o quê? Memes? Venâncio? Panfletos? Oposição?
Anamalala é proibida de legitimar alegando ter nome ofensivo, mas os autores da decapitação camponesa continuam no mato, armados até aos dentes, alguns até com dentes de ouro.
Nietzsche escreveu: “Quem combate monstros deve cuidar para não se tornar um”. Mas quem ignora os monstros, torna-se cúmplice.
A verdade é brutal é o terrorismo que mata o corpo não é mais perigoso que o terrorismo institucional que mata a verdade. Um é armado de catanas. O outro é armado de silêncio, de orçamento, de discursos fingidos. Eu estou aqui. Vivo. Mas cercado pela morte. Eu vejo crianças a andar três dias a pé até Metoro. Vejo mães que enterram filhos no mato com as mãos nuas. Vejo a vida a desaparecer diante da indiferença de um Estado que só responde quando há microfones.
A quem serve a guerra? É inconcebível um Estado declarar que é impossível localizar os terroristas enquanto estes, todos os dias, publicam vídeos e imagens sem medo de serem rastreados. Mas quando um cidadão comum denuncia a situação pelas redes sociais, é imediatamente localizado, preso ou assassinado pelo próprio Estado. Para quê serve a tecnologia bélica? Para quê servem os drones? Os satélites? Servem para matar o terrorista ou para silenciar o cidadão que se queixa? Essa é a essência do necropoder: a capacidade de decidir quem vive e quem morre, quem é protegido e quem é descartável. Cabo Delgado é hoje um laboratório dessa política de morte.
Irmão… se estás à espera de silêncio, vais te decepcionar. Matem-me já, sim! Matem! Mas pelo menos saberão que um de nós teve coragem de falar o que vocês fingem não ver. Enquanto vocês se ocupam de tratores e VM7, o Estado Islâmico está a matar gente em Chiúre! Mas não… aqui, ninguém quer saber. Só se partilha piada de Lily Wayne, berração do humorista angolano, challenge do TikTok e fotinho bonita. Até os memes da criança cortada na Matola circularam mais. Julgaram, opinaram, riram e partilharam — só porque dava “engajamento”.
Mas quando é sangue do povo do Norte, aí ninguém vê, né? Aí já não querem saber. Aí já não toca no vosso coração? Vocês calam porque acham que falar é atacar o governo. Mas eu digo: Se o governo se ofende com o grito do povo, então esse governo é cúmplice da matança. Se a PGR se cala diante do terrorismo real, mas se excita para perseguir Venâncio Mondlane, então é preciso perguntar: Quem é mesmo o terrorista de Moçambique?
Epa, já está demais. O povo de Chiúre fugiu com crianças nas costas. Gente a andar no mato com panelas, bacias, bebés e fome. E vocês continuam nos vossos debates de salão, com hashtags e paletós, com promessas eleitorais e promiscuidade partidária. A pergunta é: Onde está o Chapo? Onde está a Frelimo?
Onde estão Graça Machel e Josina Z Machel? Ah, mas para reagir a escândalos sexuais das crianças na cidade da Maotala aparecem, né? Para marchas femininas com câmaras, aí estão.
Onde esta Forquilha? Assembleia da República? Onde está as Igrejas a publicarem vigílias? Ou operando milagres para Cabo Delgado? Onde estão os deputados? Os Momades? Mas para a guerra silenciosa no Norte… Silêncio total. Esse país precisa ser sacudido!
Os donos dos cães precisam agir. Porque os cães, nossos filhos militares, estão a morrer. E tu, que lês isso e finges que não é contigo: Também és cúmplice. Enquanto isso, o Estado Islâmico já publicou o ataque.
Está lá para o mundo ver. Menos vocês.
Vocês só sabem ver posts engraçados. Matem-me já. Mas com orgulho. Porque eu não calarei diante da desgraça. E se morrer por dizer a verdade — que seja. Mas morrerei com a alma limpa.
Então eu pergunto, em voz alta: Onde estão os processos? Onde estão os ministros? Onde estão os generais? Onde estão ex estadistas? Onde está a justiça? Talvez estejam todos a cuidar do próximo fórum sobre paz e desenvolvimento. Onde estão os comunicados da Frelimo? Onde está a voz do PR? E as ONGs? E a Igreja? O silêncio é o mais cruel dos crimes, já disse um sábio africano cujo nome nunca foi traduzido para inglês.
Moçambique não está em guerra. Moçambique está sob ocupação de interesses. A guerra é o álibi. A morte é o argumento. E o povo é apenas a estatística. Mas que fique escrito: os verdadeiros terroristas não estão apenas no mato – estão nos gabinetes, nas poltronas acolchoadas do poder, e no silêncio conivente dos bem-pensantes.