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“Os sete saberes para a educação do futuro”: os legados de Luís Bernardo Honwana

Foi-me incumbida a missão de fazer um depoimento em homenagem a Luís Bernardo Honwana (LBH), figura renomada e importante da história social e cultural de Moçambique.

Renomada pela mensagem que a sua obra deixa para gerações de tempos diferentes e pelo seu papel de escritor no que concerne à veiculação das suas ideias, consentâneas com as de uma maioria na sociedade, difundindo a causa da dignidade humana. Além disso, as publicações do seu primeiro livro destacam-no como dos precursores da moçambicanidade literária. A sua obra é um marco histórico, social e literário.

O presente jornal, no seu suplemento especial de 14 de Novembro de 2022, em comemoração dos 80 anos do autor, brindou-nos com uma rica matéria sobre este autor. Há também informação disseminada a partir dos arquivos da PIDE (que prendeu LBH em 1964) disponíveis na Torre do Tombo, em Portugal, aos quais não tive acesso. Decidi, por isso, não me centrar, estritamente, na sua biografia, nem nos feitos do autor, mas reler a sua obra Nós Matámos o Cão-Tinhoso, à luz do que ela pode iluminar na sociedade actual. Nessa perspectiva ainda há muito o que abordar.

Como todos sabemos, os símbolos sempre oferecem muitas leituras e estas vão-se tornado dinâmicas ao longo do tempo. Será interpretando esse livro, escrito pelo autor aos 22 anos, que demonstrarei o seu legado. Na verdade, irei homenageá-lo, a partir do que aprendi a fazer profissionalmente, que é também a forma como tive contacto com ele, a Escola, o saber, a ciência. Vim, na verdade, dizer obrigada pelos seus ensinamentos e pelo seu legado.

Sendo relativamente antigo (publicado em 1964), o livro Nós Matámos o Cão-Tinhoso (NMCT) continuava actual, pela sua mensagem e pelo que ainda pode oferecer para uma sociedade mais humanizada e mais humanizante; daí desejar interpretá-la em função dos “Sete saberes para o futuro”, preconizados por Edgar Morin (2002), porque, de facto, a obra ainda nos permite fazer leituras que podem ser um legado para as gerações actuais e vindouras.

Luís Bernardo Honwana é, através do seu livro Nós Matámos o Cão-Tinhoso, cânone literário no ensino secundário moçambicano, desde os anos 80. Abro um parêntesis, para recordar que o currículo escolar nacional, centrado em valores moçambicanos pós-independência, foi introduzido em 1983. Quer isso dizer que desde essa altura o trabalho de LBH é reconhecido no nosso país; embora, em tempos idos, Rodrigues Júnior – escritor e crítico, na época em que a obra foi publicada – tenha tentado minimizar o livro, afirmando que o seu autor, ainda que culto e inteligente, não tinha escrito uma grande obra.

LBH foi também publicado no Brasil pela editora Ática e muito recentemente pela Kapulana, cuja edição acrescentou o conto “Rosita, até morrer”. Por esta última editora, o livro foi publicado em celebração da “consciência negra”, pois a obra presta esse feito. LBH é cânone literário no Brasil.

O meu primeiro contacto com a obra do escritor foi a partir da escola. Nessa altura, este e outros autores eram ensinados a partir de excertos. Além disso, o texto literário era abordado a partir de uma perspectiva estruturalista, que preconiza a análise da gramática e das categorias da narrativa: tempo, acção, personagens, entre outros. Não havia, como há nos dias que correm e disso sou apologista, a análise literária que vai buscar subsídios à interdisciplinaridade, como por exemplo à leitura literária com vieses antropológicos, históricos ou filosóficos. Isso fez com que muitas das nossas interpretações sobre o sentido da obra fossem limitadas.

Por termos pouco conhecimento e porque os anos de submissão das nossas culturas à cultura portuguesa ainda se faziam sentir fortemente, lembro-me de colegas meus afirmarem que no conto “As mãos dos pretos”, por exemplo, que era dos mais ensinados na escola, o autor corroborava a ideia de superioridade racial e por isso é que destacava a supremacia dos brancos sobre os pretos. Poucos líamos a obra como uma crítica social a esse status quo. É uma obra que aborda uma opressão e um sistema, que consideramos em vias de ser suprimido. Lendo-a ao pormenor, podem ser encontrados símbolos que constituem focos de esperança para um renascimento ou para um diálogo intercultural.

É pela raridade ou ausência dessa possibilidade de analisar os diferentes sentidos que ela tem, algo que a escola ainda se nega a fazer (há estudos que o comprovam), que me parece pertinente destacar a mensagem que ainda se pode colher de NMCT. E socorro-me, tal como afirmei, dos saberes para a educação do futuro para a ler e destacar o que se pode assumir ser o legado de LBH, nomeadamente: as cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão; os princípios de um conhecimento pertinente; afrontar as incertezas; ensinar a condição humana; ensinar a compreensão; ensinar a identidade terrena e, por fim, mas não menos necessário, a ética do género humano.

 

As cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão

 Nos contos “As mãos dos pretos” e “Dina” estão representados diferentes tipos de ilusão e de erros que facilmente podem ser cometidos numa sociedade: o da superioridade cultural e racial, e da superioridade a partir de um estatuto. Tudo isso não passa de ilusões e LBH sugere a compreensão disso.

Em “As mãos dos pretos” todos os personagens intervenientes da história têm ideias que podemos designar de subversivas sobre a humanidade: as mãos dos pretos são mais claras que o resto do corpo ou porque são escravos e andavam com as mãos no chão como bichos do mato para não sujarem a comida dos seus patrões; ou porque Deus decidiu fazer pretos pintando-os com o fumo de uma chaminé; ou porque foram feitos de madrugada e só molharam as plantas das mãos e dos pés num lago de água fria, deixando o resto do corpo; ou porque viviam encurvados a apanhar algodão na Virgínia (EUA), etc. (cfr. pp 119-122, NMCT).

O grupo de personagens que faz essas afirmações inclui: o senhor Professor; o senhor Padre; a Dona Dolores; o senhor Antunes; o senhor Frias; a mãe da criança narradora. Exceptuando esta última mulher, todos os personagens convergem na ideia “determinista” de que os pretos são a raça criada por Deus para servir ou sofrer. É uma das mulheres do grupo, a mãe do narrador do texto, que enaltece a diferença entre os seres humanos. Ela demonstra que os homens têm a cor da pele diferente uma da outra, porque sim; porque tinha de ser assim. Ou seja, para mostrar a igualdade entre os homens.

À luz do que hoje é importante ensinar à sociedade pode-se dizer que não há relevância em se estabelecer supremacia de umas raças sobre outras. E há uma lição que fica: LBH coloca a sabedoria na boca de uma mulher, o que tem muito para nos ensinar e dizer. Tem havido movimento e lutas para se devolver à mulher o seu lugar de paridade humana ao lado do homem.

No conto “Dina”, continua o foco na mulher; desta feita, alertando para a ilusão e o erro do uso da força para a subjugar. Um capataz, representante do colono, no lugar de exercer a sua actividade de controlo de trabalhadores numa machamba, usa da sua força e do seu poder, violando uma mulher, aos olhos do seu pai. Este é um alerta à sociedade sobre um problema que ainda existe e que se deve ensinar a combater: a ilusão de haver vantagens em nascer homem e desvantagens em nascer mulher. Esta questão transcende o contexto opressivo da sociedade colonial a que o conto reporta e alcança latitudes e espaços hodiernos. Tanto ontem como hoje, imperativamente emerge a questão: haverá alguma culpa que as mulheres carregam? Está lançada neste conto a ideia da importância de se estudar o outro, conceito hoje caro e premente nas ciências sociais.

Para encerrar este tema, o legado que nos fica de LBH é o de que os homens são todos iguais, não interessa a sua cor de pele, nem o seu estatuto ou poder físico. As diferenças entre as pessoas, como ensina Confúcio, têm a ver com os hábitos que têm – e eu acrescentaria com as possibilidades adquiridas nos contextos em que vivem. Obrigada, LBH.

 

Os princípios de um conhecimento pertinente

Hoje, as ciências sociais ensinam a “pensar globalmente e agir localmente”. Isto diz-nos muito se lermos o conto “Nhinguitimo”. Dois sinais permitem verificar a importância de ensinar ou abordar o conhecimento pertinente sobre os acontecimentos locais: rolas e ventos.

As rolas são representadas como aves práticas e vigilantes, entre as várias outras mencionadas no texto: andorinhas, abutres, sécuas usam o seu engenho para se alimentarem de bagos de milho. E fazem-no seguindo o trajecto dos lavradores das machambas. Sabem como e onde ir buscar comida. São estratégias aprendidas a partir de uma observação atenta para a sobrevivência. É um conhecimento de não humanos, mas pertinente de se aprender enquanto humanos que somos.

Por outro lado, as rolas anunciam a chegada dos ventos fortes e dos perigos do nhinguitimo. Além disso, há no texto a revelação de uma distribuição de terras entre colonos e nativos, sem o conhecimento dos efeitos dos ventos sobre as plantações. O Sr. Rodrigues, patrão, tinha uma plantação menos produtiva que a do seu empregado, o Vírgula Oito, um analfabeto. Esse patrão, ao descobrir a prosperidade do seu empregado, usa o seu poder, não o conhecimento, para adquirir a colheita da plantação do seu empregado.

O que é que isso nos diz hoje? Que é preciso, primeiro, saber ler os sinais. As rolas anunciam a época das colheitas e a chegada dos ventos do nhinguitimo, ventos fortes. São um sinal de que, a par do conhecimento dos serviços meteorológicos, podem ajudar em estratégias sobre novas formas de agir; ou seja, o conhecimento local não tem de ser desvalorizado em detrimento do conhecimento de quem tem melhor conhecimento ou força. Quem tinha a melhor terra era o empregado analfabeto, Vírgula Oito, que sabia observar fenómenos naturais, a partir da sabedoria e da repetição de eventos naturais. Observar a repetição de eventos é algo mencionado no texto, que as rolas faziam. Além de tudo, é criticado o uso da força para intrujar o outro e disso colher dividendos.

O legado que LBH nos deixa é saber ler os sinais da natureza (as rolas e o seu trajecto, por exemplo), i.e., resultado da observação repetida do mesmo evento; mais o conhecimento, por parte do Vírgula Oito, sobre o melhor lugar para plantar, percebendo localmente os fenómenos naturais. Pelo conhecimento sobre as terras, tinha a melhor parte para se fazer uma plantação. Era indígena. Ou seja, o conhecimento local deve ser valorizado. É um conhecimento pertinente, a par do conhecimento universal ou científico. Nenhum deve sobrepor-se ao outro. Ontem como hoje transcendendo lugares e tempos, esta lição perdura e permanece como um desafio para todos nós! Obrigada, LHB.

 

 Afrontar as incertezas

Nesse conto “Nhinguitimo”, os ventos são uma metáfora sobre a incerteza. É preciso fixar a época certa para se lançar a semente à terra, a partir da observação atmosférica. Quem não conhece a época das tempestades, incorre no desperdício das suas plantações. É importante viver em estado de alerta. Ainda assim, para o que pudemos constatar nos últimos anos, o facto de se conhecer um fenómeno como a “peste negra”, não implicou saber lidar com o coronavírus, quando este se apoderou da humanidade. Ou seja, os ventos podem sempre trazer surpresas. A vida é uma constante incerteza. Com isto fica a ideia de que, se não vivermos atentos ou se não melhorarmos o conhecimento que temos sobre as coisas, os que aparentemente têm poder apoderam-se dos nossos bens, das nossas terras, no caso do conto em alusão. Obrigada, LBH.

 

Ensinar a condição humana

Edgar Morin destaca a importância que existe de se estabelecer o significado do que é “ser humano”, de se ensinar a complexidade das identidades dos seres humanos. Para ele, “a condição humana deveria ser um objecto essencial de todo o ensino (NMCT, pág. 17).

Se nos ativermos ao anteriormente dito neste texto, tudo leva a crer que a grande sugestão do autor de NMCT é relativa ao cuidado que deveríamos ter com o outro, com os seres humanos e não o temos. Não temos consciência da unidade da essência humana e da diversidade dos seus saberes e das suas formas de estar na vida; daí as classificações que fazemos ou que estabelecemos. Nos dias que correm, na nossa sociedade, por exemplo, está quase que instaurada a ideia de que “se alguém não está connosco, está contra nós”. Não sabemos lidar com as diferenças. Obrigada, LBH, por deixar sinais, na sua obra, sobre a necessidade de nos revermos como humanidade!

 

Ensinar a compreensão

Se prestarmos atenção ao conto Nós Matámos o Cão-Tinhoso, entre os mais estudados na obra de LBH, constatamos que aos homens ainda é necessário ensinar a compreensão de uns sobre os outros, ensinar a importância da compaixão e da empatia pelo outro.

Nesse conto, há um menino pobre a quem não é permitido jogar, porque já se sabia de antemão que não teria condições para jogar a dinheiro. É preto e pobre, é estigmatizado. Por isso, foi colocado de parte e só entraria se os que estivessem a jogar estivessem a perder. Há também um momento de um outro jogo que é referido e que, vendo que o administrador perdia, o menino se ri; nisto, o perdedor cospe entre o cão-tinhoso e o menino. O conto traz a representação de que tanto o cão quanto o menino significam a mesma coisa e esse é um problema ainda existente na humanidade. Ainda não aprendemos a lidar com as diferenças de estatutos sociais. Estigmatizamos, oprimimos, desrespeitamos. Vivemos equivocados, presos em estereótipos. Esta questão não é apenas na dimensão de sistemas sociais, já de antemão estigmatizadores e opressores, entra também na dimensão das relações interpessoais. (NMCT, pp. 21-22).

Ora, este tem sido um grande cavalo de batalha no ensino do que é ser-se humanos, no ensino do que deve ser a igualdade entre os homens, independentemente do seu estatuto social ou económico; ou ainda no ensino dos processos comunicativos entre as pessoas. Lendo sobre isso, na obra de LBH, fica clara a referência para a importância de se ensinar a compreensão do respeito e do cuidado entre os seres humanos. E sobre estereótipos, há que se procurar certezas e não os tomar sempre como certos. Obrigada, LBH por este legado ainda por vir.

 

Ensinar a identidade terrena

Ao se referir à identidade terrena, Morin lembra-nos do que, na minha óptica, pode ser analisado a partir dos poemas “É preciso agir”, de Bertold Brecht (1898-1956) e “No caminho, com Maiakóvsky”, de Eduardo Alves da Costa (1960), que referem que os problemas de uns são os problemas de todos; ou seja, um problema de um país pode atingir repercussões graves e passar a ser um problema mundial, i.e., os efeitos do colonialismo não se fazem sentir apenas nas colónias. A “Revolução dos cravos” resulta de os efeitos do colonialismo não se terem feito sentir só nas colónias. Era, também, um problema para as pessoas no país colonizador.

Obrigada, LBH, por nos recordar que enquanto houver seres humanos sofrendo no mundo, não existe humanidade e que ela se constrói de pedaços de lugares e de gente inteira. Não podemos ficar sem acção perante os problemas do outro.

 

A ética do género humano

 As democracias ensinam-nos ou deveriam ensinar-nos o exercício da cidadania. De tal sorte que defender um indivíduo deveria ser defender a espécie humana. É importante formar consciências que defendendo cada pátria, defendam a cidadania terrena e, por fim, o género humano. É preciso interpelar os Estados para que cuidem dos seus cidadãos, educando e responsabilizando-se pelo bem comum e sobre si próprios.

É importante ainda que cada um de nós, cidadãos, artistas e escritores trabalhemos em nome do que podemos aprender nas relações humanas. E esta é a grande sugestão de toda a obra Nós Matámos o Cão-Tinhoso.

Obrigada, LBH por nos ensinar, tal como John Donne, que “a morte de cada homem diminui-me, porque eu faço parte da humanidade”.

Enquanto autor e enquanto cidadão, LBH tem-se preocupado com a valorização das culturas moçambicanas. Não sendo um exclusivo seu a necessidade desse resgate de valores tradicionais africanos, ouvi-lo de um assimilado abre caminhos para a compreensão de que a busca desenfreada de outras civilizações deverá ser conjugada com a procura de nós próprios.

Obrigada, LHB por nos mostrar que uma atitude equilibrada entre o que é nosso e o que é dos outros, pode ensinar-nos o princípio da interculturalidade, da reciprocidade ou da equivalência entre valores culturais diferentes, princípio no qual a convivência cultural é pacífica e sem supremacia de uns sobre os outros. É disso que a humanidade carece.

Neste ponto, tomo emprestado os dizeres de Nelson Mandela: “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor da sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender e, se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar.” Obrigada, LBH por nos sugerir que uma sociedade na qual as pessoas amem o seu próximo pode ser uma sociedade melhor. É essa a educação na qual teremos de trabalhar hoje, para deixar um futuro alicerçado em valores humanos.

 

Referências

Edgar Morin. Os Sete Saberes para a Educação do Futuro. Lisboa: Instituto Piaget. 2002.

Luís Bernardo Honwana. Nós Matámos o Cão-Tinhoso. Lisboa: Edições Cotovia. 2008.

Sara Jona Laisse, ensaísta. Docente na Universidade Católica de Moçambique.

Contacto: saralaisse@yahoo.com.br.

 

 

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