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Os netos de Ngungunyane: o complemento da história

É através dos nomes que se chega ao conhecimento que os homens têm.

João Paulo Borges Coelho

Ngungunyane é um nome importante, quando se fala da história de Moçambique dos últimos 150 anos. Quer por ter resistido à dominação colonial portuguesa até ao limite das suas forças, quer por ter travado tantas ofensivas contra os chopes, povo que desprezava, enfim, mereceu dos autores moçambicanos muita atenção. Por isso, temo-lo na escrita de Rui de Noronha, Ungulani Ba Ka Khosa, Guilherme de Melo, Paulina Chiziane e, mais recentemente, na de Mia Couto. Cada livro destes autores reivindica o fragmento da história que lhes pertence ao escrever sobre uma figura tão controversa, além dos consensos como foi e é Ngungunyane. Com efeito, esta figura não só inquieta escritores ou historiadores, há também actores apaixonados pela ideia de desbravar um campo fértil de que ela é feita. Assim, não espanta o interesse de se levar aos palcos a peça teatral Os netos de Ngungunyane, que, mais do que ser uma adaptação da trilogia As areias do imperador, deixa evidente a ambição de se buscar conhecimento perdido algures, em algum período do tempo, a partir do nome do imperador e dos valores semânticos aí subjacentes.

O espectáculo encenado por Bruno Huca tem cerca de 20 minutos e, além do encenador como actor a traduzir de forma categórica a ciência da representação, numa actuação incrível, ao nível dos melhores, também conta com as actrizes Rita Couto e Sufaida Moyane. Embora curto, este é um trabalho de teatro muito denso, no qual se convida o espectador a procurar rostos, lugares e episódios na sua memória, no que sabe e ouviu dizer.

A peça até começa sugerindo um bailado, algo que ganha relevo nos movimentos corporais dos actores. Mas logo se percebe que é outra coisa de enorme qualidade. Concorre para o efeito a excelente conexão do trio, que consegue mergulhar num submundo e de lá retirar tantas alegorias relacionadas com o actual momento enfrentados pelos moçambicanos, por exemplo, no Norte do país, com “essas guerras que não começam, já vêm acontecendo”.

A principal pretensão deste texto teatral ainda em preparação é sugerir que a história do Imperador de Gaza não acabou, pelo contrário, continua, mas é preciso procurá-la no ADN da descendência que ele deixou em Moçambique e noutros cantos do mundo. Daí o título da peça e o enredo não se focarem nem nas lágrimas nem no sangue derramado. Vai além disso, complementado a história para a não repetir com excessos. Nessa tentativa de indicar o caminho conducente à moradia dos netos de Ngungunyane, numa encenação aparentemente simples, sem alteração do cenário inicial e quase sem variação da luz, o espectáculo envolve-nos num diálogo a altura do que Aristóteles considera seres superiores, quando se refere ao acto da representação na sua Poética. São discursos muito sólidos os proferidos pelos três personagens, os quais apostam nos recursos estilísticos como elementos fundamentais para tornar o enunciado algo aprazível de se ouvir. Desse investimento, a maior consequência, em alguns momentos, é mesmo essa de as frases sobressaltarem-nos por sugerirem uma realidade tão nossa quanto rotineira: “É assim que se procede em África. Dão-se oferendas aos grandes chefes”. À parte esta verdade, o personagem representado lindamente por Huca diz-nos: “Bebíamos para fugir de um lugar e tornámo-nos bêbados porque não sabíamos fugir de nós mesmos”. Há beleza…

Ora, neste jogo de buscar o passado como quem tenta preencher as lacunas do presente, instaura-se um conflito entre as próprias personagens que almejam encontrar a descendência de Ngungunyane, pois, a certa altura, surge na trama um momento de aceitação vs. recusa da descendência do imperador. Aí nos perguntamos quem são ou podem ser os netos de Ngungunyane e como a partir deles sempre podemos reconstruir os labirintos da história de Moçambique, com ou sem heroicidade.

Título: Os netos de Ngungunyane

Encenador: Bruno Huca

Classificação: 16

 

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