O País – A verdade como notícia

Os elefantes (in)visíveis de Mia Couto*

É curioso como às vezes a memória da morte vive muito

mais tempo do que a memória da vida por ela roubada.

in O deus das pequenas coisas, Arundathi Roy.

 

Há duas semanas, recebi uma chamada do meu amigo Celso Muianga. Nada alarmante. Eu e ele falamos com alguma regularidade: de literatura, de política e de tanta coisa que se passa pelo mundo fora. Felizmente, somos críticos um do outro e o Celso é um dos editores que mais aprecio em Moçambique. No entanto, dessa vez, a chamada não era para nenhuma cavaqueira, tratava-se de uma imposição: – San José, em nome da Fundação Fernando Leite Couto, quero-te convidar para seres um dos apresentadores do novo livro do Mia, O caçador de elefantes invisíveis, de que te falei. Depois disso, o silêncio dos dois lados da linha prolongou-se por uns sete segundos. – San José, estás comigo ou aí na Tenda dos Milagres? Tenda dos Milagres é a maneira como o Celso trata ao tribunal que julga o afamado “caso das dívidas ocultas”, precisamente, numa tenda montada na Cadeia de Máxima Segurança da Machava, lá pertinho de casa, no Bairro Infulene. Ao invés de qualquer resposta, contra-ataquei: – Ó, Celso, que convite é esse, meu, como é que se apresenta um livro do Mia? Talvez pela amizade, o editor deixou de ser delicado e respondeu ríspido: – Não sei. Veja isso com o Pila. Liga-lhe. Ele será o outro apresentador.

A chamada durou mais ou menos três minutos. Quando terminamos de falar, fiquei meio nefelibata, tentando juntar sentidos à volta daquele convite. Poxa… tentei ligar de volta ao Celso para lhe dizer que aquilo não iria funcionar. Não via lógica nenhuma em apresentar o que quer que fosse do Mia. Mas fiquei calmo. Convencido de que aquilo não passava de uma brincadeira de mau gosto, resolvi descontrair-me, até porque a qualquer altura receberia uma chama do mesmo contacto a dizer-me: – Estou a gozar contigo. Descansa, camarada. Na verdade, pretendo saber se consegues vir cobrir o lançamento do livro. Como temos muita restrição no espaço, estamos a confirmar com todos os potenciais presentes. Isso foi o que imaginei. Todavia, entre a imaginação e a realidade, há uma margem mínima às vezes significativa.

O Celso não me ligou novamente – teimoso ele. Eu fiquei quieto, tentando esquecer o convite. Dois dias depois, Elton Pila é que me liga: – Dos Remédios, o Celso falou contigo? Pronto. Compreendi que não havia nenhuma brincadeira ali. – Sim, ligou-me há dois dias. Então é mesmo a sério a cena do Mia? O Pila respondeu que sim. – Mas como é que a malta apresenta o livro do Mia, man? O meu colega jornalista não teve dúvidas. – Ó, Dos Remédios, não sei. Mas o segredo é começar com um agradecimento.

Então pronto, seguindo o conselho do meu amigo Elton Pila, aqui ao meu lado, antes de falar deste novo livro do Mia, O caçador de elefantes invisíveis, primeiro quero agradecer ao Celso Muianga e à Fundação Fernando Leite Couto por este desafio. Para mim, é um enorme privilégio estar aqui a dizer algumas palavras sobre este conjunto de contos de um autor que tanto admiro. Cresci lendo Mia Couto. Primeiro, na célebre revista Tempo e, mais tarde, nos livros. Mia é dessas pessoas que os meninos da minha geração via pela televisão e dizia: – Quando eu crescer, quero falar tão bem e ser como aquele senhor com nome de mulher. Então, quando fui convidado a estar aqui convosco,  percebi, já agora Pila, que é possível estarmos com os nossos heróis da palavra cá terra.

Indo ao que realmente interessa, quando penso na escrita miacotiana, observo que a guerra é um fenómeno recorrente. Por exemplo, em Terra sonâmbula, em O último voo do flamingo ou neste O caçador de elefantes invisíveis. A pergunta que acho oportuna é: porquê? No lugar de uma resposta assertiva, vêm-me à memória um pensamento de Francis Fukuyama, no seu O fim da história e o último homem. Nesse livro, o intelectual norte-americano defende que “a experiência demonstra que, se os homens não puderem lutar por uma causa justa por esta ter triunfado numa geração anterior, acabarão por lutar contra ela. Lutarão por lutar”. Em outras palavras, Fukuyama sugere que a humanidade é instável e que no dia em que a paz for dada como adquirida, os homens são capazes de saírem à rua para se manifestar a favor da guerra. Se calhar, assim seria porque, segundo Thomas More, no seu Utopia, “os príncipes preferem a arte da guerra às artes benfazejas da paz”. E todos nós podemos ser príncipes, nesse sentido atroz referido por More e por Maquiavel.

Em grande parte, O caçador de elefantes invisíveis aparece a lembrar o talento que o Homem tem em semear guerras e instabilidades daí subsequentes. Logo, com a paciência de quem caça uma presa, Mia Couto captura do seu país e, sobretudo, da realidade humana, essa volubilidade interior, já denunciada por Fukuyama, para ficcionar uma realidade em si catastrófica. O escritor recusa ser uma ilha no seu território. Por isso mesmo, a sua ficção traz do Norte de Moçambique as dores e os dramas para quem a vida, depois do terror, é um milagre quotidiano.

Naquela noite dormimos todos de pé, apertados uns contra os outros, por entre as quatro paredes do edifício da administração. Edifício é um modo de dizer: um espaço vazio, sem tecto, sem portas nem janelas. As paredes, todas esfarrapadas, eram o que restava da única casa de alvenaria da nossa aldeia. Ali nos refugiámos, as famílias todas de Kalimbué, tentando escapar a mais um ataque dos terroristas (p. 51).

A passagem acima é do conto “A fumadora de estrelas”. No enredo, as personagens deixam-se contaminar, sem hipótese, pelo medo na mesma proporção que perdem o chão da sua existência.

Lá fora, escutavam-se os disparos. Cada tiro resgatava os olhos de Esmeraldino, as pálpebras cerradas como se não quisesse voltar a ver o mundo. E fomo-nos espremendo de tal forma que ninguém se podia mover. Sorte a nossa não haver tecto, caso contrário teríamos morridos asfixiados (p. 52).

No universo da história os disparos não constituem apenas um conjunto de sons, são imposições ao silêncio, à fatalidade geradora de incertezas colectivas. O pior é quando naquela pequena repartição da administração, noite sombria, com os terroristas a espalhar ódio pela aldeia, Kadira entra em serviço de parto. Como impedir o bebé de chorar e assim salvar a vida de toda gente escondida? Nesse instante, o possível choro que tão bem anuncia a vitalidade dos recém-nascidos rapidamente transforma-se num símbolo de morte: “A pobre Kadira continha as lágrimas, mordia as dores, engolia os gemidos. No fundo, ela sabia: uma mulher pode parir em silêncio, mas ninguém pode impedir o choro de um bebé que nasce. As contas eram fáceis de fazer: a vida daquela criança iria acabar com a vida de todos nós” (p. 55).

Entre os gritos subentendidos das vítimas do terrorismo em Cabo Delgado, Mia Couto vai além da superfície para ficcionar histórias que ajudam a compreender o trauma dos deslocados. Ao escritor não interessam, necessariamente, histórias dos que partiram, isto é, a memória da morte – conforme diria Arundathi Roy –, mas o efeito dessas partidas nos sobreviventes. Veja-se, por exemplo, o caso de “O vestido vermelho”. No conto, a guerra arranca da protagonista o marido e o seu unigénito. Desesperada em voltar a ser mãe, a mulher resolve correr o risco de ir à procura do filho, porém, pelo caminho, soldados armados a impedem de reconquistar todos os significados auspiciosos à volta da maternidade.

“O vestido vermelho” é mais um conto no qual se observa o interesse do escritor pela memória da vida, afinal efémera e, muitas vezes, muito circunstancial. Além disso, no universo diegético Mia Couto introduz o que é evidente em “A culpa”, enredos sobre relações familiares repreensíveis. Não é difícil encontrar um pai que humilha ou coarcta a liberdade da esposa ou do filho. Em muitos contextos, o lar familiar, em O caçador de elefantes invisíveis, é um lugar de ressentimentos. Ao longo dos contos, há quem opte em escutar mal, de modo a evitar conflitos com o pai autoritário e de difícil trato. Este cenário até propõe um paralelismo entre episódios domésticos e o quotidiano social. Mia parece propor uma relação quase umbilical entre os dois contextos, como se as suas narrativas também pretendessem sublinhar a reciprocidade entre o ambiente doméstico e o meio circundante. Ou seja, como ter uma sociedade saudável se no sentido mais particular a casa é um lugar feito de tantas outras instabilidades?

Não obstante a fronteira que separa os laços de afecto, O caçador de elefantes invisíveis é um lugar cheio de sinceridade, onde a inocência se desencontra com a realidade crua. Gustavo, em “Um país sem nome”, depois de perder a mãe ainda imberbe, recusa-se a voltar a ser criança, como se houvesse escolha para essa condição. O pai faz o que pode para o menino se divertir com os filhos dos vizinhos. Sem dar hipótese à iniciativa paterna, o miúdo responde: “Os meninos da minha idade fazem-me triste”, (p. 167). A fim de contornar essa tristeza, Gustavo ainda evita ver programas televisivos infantis e, no ápice da evasão, inventa um país, no qual o abraço é algo tangível, mensurável.

Através da posição surreal de Gustavo, ao distanciar-se da realidade que o magoa, o narrador tece uma convicção que é visivelmente assumida por Mia Couto. Isto é, à semelhança do país inventado por Gustavo, Moçambique precisa de sonhos enquanto dimensão produtora de discernimento. A ficção miacotiana, com efeito, é uma experiência oportuna e necessária para quem se interessa (com profundidade) nos vários países existentes no interior de Moçambique. Aqui a ficção é um farol exposto ao lusco-fusco, potente na iluminação e na reinvenção dos espaços sobre os quais a narrativa inevitavelmente assenta.

Assumindo que a palavra tem o poder de fazer desaparecer e reaparecer as coisas, como adianta Maurice Blanchot no seu O espaço literário, no caso de Mia Couto, esse reaparecimento refere-se a substâncias e a eventos presentes, mas ainda desconhecidos. A proposta é simples: ampliar o campo visual do leitor acomodado na sua própria monotonia, dando relevância a eventuais insignificâncias. Desse modo, não se fica no mesmo lugar ao lê-lo. O caçador de elefantes invisíveis é um movimento cíclico e, às vezes, tenebroso. No livro, a humanidade é posta em diálogo e nem sempre a boa comunicação é um dado conquistado. Pensemos, por exemplo, no primeiro conto, “Um gentil ladrão”. Aí o diálogo é uma coisa difícil porque as personagens são incapazes de compreender uma a outra. Um enviado dos serviços de saúde vai a uma presumível aldeia para testar a temperatura de um homem habituado a perder ente queridos para a morte. Ambos falam a mesma língua, mas até a língua torna-se um monstro quando a realidade que separa os interlocutores é abismal. Consequentemente, num acto que deveria contar como medida preventiva contra a COVID-19, o protagonista da história vê-se num iminente assalto. O homem não sabe de pandemia nenhuma, daí adivinhar nos gestos do visitante iniciativas de um ladrão. Nesse belíssimo exercício literário, Mia é sarcástico ao incitar que a gentileza é tão rara no mundo que já não é normal cuidar do outro. Logo, “depois de anos de tormento, reconcilio-me com a humanidade: um ladrão tão desajeitado só pode ser um bom homem”, (p. 16), afirma o protagonista.

O carácter afável do agente da saúde, embora destrambelhado, faz com que o anfitrião anseie por uma segunda visita, para o premiar por lhe ter arrancado da solidão. Sempre dura. Que o diga Bernardo, escritor que, cumprindo a prerrogativa “fique em casa”, vê-se incapaz de sobreviver sem gente por perto. Habituado a isolar-se na escrita, Bernardo aprende a valorizar as relações humanas e nós com ele. Para sobreviver à “Imortal quarentena”, terá de ter por perto a sua empregada doméstica Esperança Maluane.

Portanto, não há nos contos do livro super personagens ou distantes do dia-a-dia. As personagens das histórias são produto do plano real, concorrendo para tornar as realidades moçambicanas, com a devida amplitude, inteligíveis.

De facto, O caçador de elefantes invisíveis é um movimento em câmara lenta, suficientemente lento para quem não abdica de pensar o espaço através da sua posição no tempo. Com a paciência de quem sabe esperar pelo momento ideal, Mia capta cenários agora deslocados daquele trabalho sobre a reconstrução da língua portuguesa tão comum em Vozes anoitecidas ou em Cada homem é uma raça, outros livros de contos. Ao escritor, neste O caçador de elefantes invisíveis, já não interessa a oficina sobre a morfologia da palavra, mas sim a estrutura do pensamento das personagens, às vezes, ilógico aos olhos dos mais precipitados.

Sem dúvidas, há aqui um interessante trabalho sobre a emoção, a dor, a expectativa e a incerteza. As histórias de Mia são fortes pretextos para pensarmos o contexto doméstico, comunitário e desse país que urge reinventar, pois, de outro modo, irá desaparecer do mapa-mundo como calha no seu O último voo do flamingo ou em Nação pária, de Adelino Timóteo.

Finalizando, pode ser que se divirtam e aprendam durante a leitura deste livro. Seja como for, nestas histórias encontrarão um ficcionista que ascendeu para uma outra dimensão na forma como gere a força anímica das personagens e no modo cristalino com que trabalha a sintaxe e a semântica das coisas.

Muito obrigado por me ouvirem!

 

*Texto resultante da apresentação feita na cerimónia de lançamento d’O caçador de elefantes invisíveis, de Mia Couto, dia 13 de Outubro de 2021. Aqui redigido de cor e ampliado.

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