Por: Rudêncio Morais
“Temos dois olhos. Onde com um contemplamos as coisas do tempo, efémeras, que desaparecem, e com o outro contemplamos as coisas da alma, eternas, que permanecem” Angelus Silesius (1624-1677)
Quando o dia foi aos poucos se transvertindo tímido, deixando-se embeber pela noite, a vida pareceu ser retrabalhada no almofariz africano, carregado das nossas essências existenciais no corpo sólido do amor que sabe a música. Parecíamos imersos num barco a vela feito, todo ele, a partir dos segredos que tecem a instrumental da música que nos veste de gente, vestiu-nos o jazz em noite de oração profunda, um autêntico “love center” se nos emergiu e murmurava de longe o mar, abraçando-nos em terra firme na qual atracado o barco musical nos comunicava a genuflexão dos nossos ancestrais para com os deuses da música.
A noite se nos foi sendo uma viagem, um regresso aos tempos da Associação Moçambicana do Jazz no corpo da poesia sinfônica que não se esvai, e permanece intacta na alma da gente, preenchendo, vez por outra, a estrutura óssea que se nos existe por dentro, embalou-nos a amizade, o companheirismo e a fraternidade nutrida no corpo da música.
Por vezes, o silenciado se nos descia trêmulo, cristalizando momentos de um caminhar entre as ausências e as presenças além Moçambique que as músicas nos convidavam a celebrar esse bater das asas, das saudades, como diz o professor Rubem Alves, fazendo-nos acreditar que a saudade nasce quando existe amor e ausência, esse vazio que a música preenche unindo-nos ao universo, estando em tudo e em todo lugar, se para Rudêncio Morais a música é filha, mas também Mãe do Silêncio, Aurélio Ginja, descreve, no prefácio do ecoar musical da gente (livro do Falso Poeta) que é no coração do silêncio que as músicas mais sublimes desatam gentilmente os nós dos nossos mais secretos sentimentos. Foi assim, que entrelaçados entre o silêncio e a música, revisitamos a alma, nesse trabalho interior, esculpindo o imaginário colectivo de quem nunca está sozinho. Diz o poeta que “Música é vida interior. E quem tem vida interior jamais está sozinho.
Ávidos em regressar a terra, ao _mucume_ que, alentando a saudade, nos cobre desde pequenos, e depois de viajar na palma da Alma da música, numa interpretação sublime do Abel, que nos devolveu a década 70 para reviver “Hotel Califórnia” sucesso dos The Eagles, uma voz rasgou a meio a sala fazendo-se ouvir de imediato …
– Tio Zé, Tio Zé…
E, se nos apareceu o Zé Barata, num profundo namoro dividido entre a guitarra e a voz, sendo a língua e os ilimites das batidas dos nossos corações, rejuvenescidos no sopro do talentoso do Mahu, um sinal de esperança e de transcendência dos fazedores da música.
A terceira sessão dos amantes do Jazz, foi um sinal inequívoco de que é preciso moldar o barro com as mãos, só assim ele carregará dentro da forma concebida parte da nossa essência e a alma dos oleiros da música.
05.03.2023|