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“O Xiquitsi tornou-se um elemento importante na sociedade musical moçambicana”

Kika Materula é Directora Artística da Temporada de Música Clássica – Xiquitsi. Nesta entrevista, explica por que considera que o Xiquitsi tornou-se um elemento importante na sociedade musical moçambicana. A artista refere-se ainda às conquistas do projecto nos cinco anos de existência e que esta quarta-feira realiza a segunda série da quinta temporada.

O Xiquitsi celebra cinco anos de existência. Como descreve este tempo com música ao peito?

Quando há cinco anos recebi o convite da Kulungwana para dar continuidade ao Festival Internacional de Música Clássica que já acontecia em Maputo, com o qual já colaborava, na altura disse que não. Não me interessava ser directora de mais um festival apenas. Com todo o valor e mérito que já tinha. Na altura tinha a minha carreira em Portugal e não me interessava em vir a Maputo tantas vezes para fazer apenas um festival. Então propus aliar ao festival a vertente formação, inspirada no El Sistema, com os grandes músicos que vinham e continuariam a vir a Maputo para trabalhar com os nossos alunos. Com esta dimensão já fazia todo o sentido para mim voltar para o meu país, trabalhar, investir e deixar frutos. E assim tem acontecido desde há cinco anos.

Como foi o processo de criação do público?
Lembro-me que no primeiro ano foi muito difícil. Não tínhamos público. Mas hoje, cinco anos depois, temos salas cheias de concertos e os nossos telemóveis não param de tocar. Temos jovens e crianças a aprenderem música, a tocarem e a viajarem pelo mundo por causa da música. Hoje, a realidade musical moçambicana é completamente diferente do que foi porque nós contribuímos para o efeito.  

Em termos de performance, o que será da formação nesta segunda série?
Nesta série vamos poder ver alunos com dois e com cinco anos de formação. Vamos ouvir a obra de um compositor moçambicano formado no Xiquitsi, num concerto totalmente dedicado à vertente formação com os nossos músicos convidados. Portanto, vamos poder ouvir uma obra composta pelo violino solo de Estevão Chissano.

O que implica para o Xiquitsi, em termos de ensaios e concretização dos concertos, trazer músicos de altíssima qualidade como Luís Magalhães ou Maya Egashira?
A parte dos ensaios para mim é a mais fácil, na medida em que são todos excelentes músicos, o que me facilita quase 80% do trabalho. A concretização e até chegar ao concerto é a parte mais difícil, mesmo porque custa arranjar um buraco na agenda dos músicos que trouxemos. Também é difícil em termos de salas para concertos porque não temos tantas preparadas a 100%. Tendo em conta a realidade financeira que todos sabemos que Moçambique está a viver neste momento, é um grande desafio conseguir fazer o trabalho todo. Mas eu já sabia das dificuldades do meu país quando comecei com este projecto.

Foi a pensar no poder das artes que decidiram investir num projecto de inserção social?
Sem dúvidas. E, hoje, muitas missas, festas do bairro não deixam de acontecer sem o elemento música clássica, está sempre presente. Tenho visto os nossos alunos a actuarem em casamentos ou com cantores moçambicanos. Os nossos alunos já contribuem para o desenvolvimento das comunidades, nas missas da igreja, festas de aniversário ou a gravar álbuns. O Xiquitsi tornou-se um elemento importante na sociedade musical moçambicana. Foi a pensar em dar uma profissão aos nossos jovens e um orgulho às famílias deles, afinal estamos num país em que muita gente pensa que está condenada a manter o nível baixo de vida porque os pais não são nem médicos ou advogados. O Xiquitsi veio transformar essa realidade. Hoje temos jovens que acreditam e que sabem que se trabalharem podem chegar a altos voos. Como eu, que conheço o mundo porque estudei e o meu talento levou-me… É o que está a acontecer com os nossos alunos.

Actua como promotora e artista. Destas vertentes, há alguma que a dá mais gozo?
Eu sou, em primeiríssimo lugar, e penso que em último também, músico. Sempre quis fazer, gosto de fazer música e não me vejo sem fazer… Naturalmente, tendo em conta o cargo que ocupo, é normal que no meu festival não toque muito porque tenho outras responsabilidades para pensar. Se eu pudesse apenas tocar, seria maravilhoso. Mas, infelizmente ou felizmente, não posso. Agora, também é minha paixão organizar a Temporada de Música Clássica. A parte pedagógica é outra grande paixão. Gosto muito de ensinar e, às vezes, tenho tanta pena porque não me sobra tanto tempo para dar aulas.

O Xiquitsi tem, neste momento, 200 alunos distribuídos em naipes. Como se gere tanto talento junto?
O talento revela-se naturalmente e não estou preocupada, todos os dias, é o identificar. Para mim, todos os meus alunos são talentos e são grandes seres humanos. Neste momento, nós temos um grupo de alunos no FestCoros. Mesmo sem estarem a actuar como Xiquitsi, orgulha-me ver que eles têm pernas para andar.

O Xiquitsi é o maior projecto da Associação Kulungwana. O que isso quer dizer?
Significa esforço e trabalho diário, despesas, transporte, alimentação, aulas; implica importar formadores, preparar concertos com músicos internacionais, vindo de todas as partes do mundo; muitos gastos e termos muito apoio dos nossos patrocinadores e uma satisfação imensa.  

Por quê não faltar a esta série de concertos do Xiquitsi?
Porque vamos ver aquilo que de melhor os moçambicanos do Xiquitsi sabem fazer.

Sugestões artísticas para os leitores do jornal O País?
Sugiro o Ciclo de Cinema Europeu a decorrer no Franco-Moçambicano.

Perfil

Kika Materula realizou concertos de Norte a Sul de Portugal, em Espanha, Alemanha, França, Dinamarca, Suécia, Angola, Moçambique e Brasil. Em 2001, venceu a XVI edição do Prémio Jovens Músicos na categoria de oboé. Tocou a solo com a Orquestra de Câmara de Cascais e Oeiras, Orquestra Sinfónica da Bahia e com a Johanesburg Festival Orchestra. É professora convidada do Projecto social Neojibá (Brasil). Em Maio de 2016 foi condecorada com a medalha da Ordem de Mérito pelo Presidente da República Portuguesa.

 

 

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