O molusco é um animal invertebrado. Um animal sem coluna vertebral, geralmente mole e adaptável, que se molda facilmente ao ambiente à sua volta. Vive protegido por uma concha externa ou por uma carapaça emprestada, movendo-se lentamente, evitando confronto directo e sobrevivendo por acomodação. Este conceito da natureza serve como metáfora perfeita para um tipo de figura que se tem proliferado na esfera política e pública moçambicana: o molusco político.
O molusco político é o político e o cidadão sem firmeza de carácter nem ideias próprias, que se move de acordo com os ventos do poder. Não pensa por si, não argumenta, não propõe. Apenas obedece, repete e agrada. Ele funciona como uma caixa de ressonância, em virtude de não ter ideias próprias, não pensar por si e não argumentar. Está sempre à procura de aprovação — do chefe, do partido, da maioria — mesmo quando isso significa trair o interesse público ou a sua própria consciência.
O molusco político não se posiciona com clareza, prefere o conforto da ambiguidade. Foge do confronto de ideias, pois teme o dissenso. A sua presença na política não contribui para o debate democrático, mas apenas para o prolongamento do status quo. Está ali para manter-se, e não para transformar.
A verdade é que o molusco político não aparece do nada. Ele não surge como o raio que cai do céu azul. Ele começa a ser formado na infância, na esfera doméstica. Cresce em lares onde não se ensina a questionar, onde a obediência cega é confundida com respeito, e onde discordar dos mais velhos é visto como rebeldia. Nestes contextos, não se cultivam o espírito crítico nem a autonomia de pensamento. Forma-se, assim, o molusco social, que depois encontra na política o palco ideal para continuar a não pensar.
No entanto, nem tudo é sombrio. Felizmente, há também jovens a crescer em lares onde se promovem valores nobres, onde se ensina a reflectir, a duvidar com responsabilidade, a indagar com curiosidade e a tomar posição com argumentos. Estes são espaços — muitas vezes em famílias mais conscientes ou em certas escolas privadas do país — onde se valoriza a formação do carácter, a coragem de pensar de forma diferente e a honestidade intelectual. Nesses contextos, está a ser forjada uma geração de cidadãos e futuros líderes com espinha dorsal, capazes de dizer “não” quando é preciso e de propor caminhos quando todos se calam.
A presença massiva de moluscos políticos enfraquece profundamente a democracia moçambicana. Num Parlamento ou num partido em que o domínio do debate de ideias está sob comando de figuras com padrão de actuação dos moluscos políticos, sem ideias nem convicções, não há espaço para o verdadeiro debate político. As decisões tornam-se meras formalidades, e a política transforma-se num teatro de aparências, onde se diz o que agrada aos superiores, e não o que serve ao povo.
Estas figuras, quase amorfas, apressam-se em adjectivar o chefe ou superior hierárquico com expressões como filho mais querido da nação, pai da democracia, presidente do povo, visionário incomparável — fazendo-o crer que é o único ser pensante, o único com soluções para todos os desafios da Pátria.
São aduladores de ofício. Fazem as lideranças políticas acreditar que o cargo que ocupam lhes confere dons sobre-humanos, visão profética, infalibilidade papal.
A forma de agir dos moluscos políticos — seres escorregadios, rastejantes e dissimulados — é a lisonja desmedida. E, por meio dela, constroem muralhas à volta do poder, cultivando o culto da personalidade e criando fantasmas que só eles vêem: inimigos invisíveis, suspeitos permanentes, traidores imaginários.
Estes inimigos, na verdade, não existem senão no mundo fantasmagórico tecido com saliva bajulatória e medo. É um teatro de sombras onde o molusco se move com mestria, qual encantador de serpentes, sibilando ao ouvido do chefe apenas aquilo que deseja ouvir.
No mundo dos moluscos políticos, impera uma narrativa maniqueísta: o “nós” e o “eles”. O “nós” representa os puros, os santos da corte, os defensores das causas nobres — mas apenas na aparência. São os que se curvam sem questionar, que batem palmas antes de o chefe terminar a frase, que sorriem sem saber porquê.
O “eles”, por sua vez, são para o molusco político a encarnação do mal. São os que ousam pensar por si, que se atrevem a analisar os factos com espírito crítico, que corrigem, que questionam — e, por isso, devem ser silenciados, isolados ou esmagados.
Importa sublinhar que os moluscos políticos não são exclusividade de um partido ou corrente ideológica. Estão espalhados por toda a parte, infiltrados em todos os partidos políticos, e grassam livremente na nossa esfera pública como erva daninha em solo fértil. São mestres da metamorfose: mudam de pele, de discurso, de convicções conforme sopra o vento do poder. Ajustam-se às lideranças como um parasita se ajusta ao corpo do hospedeiro. Alimentam-se da vaidade alheia. Engordam à sombra da bajulação.
Cabe às lideranças agir com sobriedade e sabedoria, neutralizando a acção destes seres, sob pena de deixarem-se comandar por eles e terminarem o seu percurso de forma inglória.
Quem sempre termina mal são as lideranças que os alimentam — lideranças que acabam desacreditadas, desfiguradas e sem legado. Os moluscos, esses, sobrevivem. Saltam para o próximo ciclo de poder, prontos para repetir a encenação com novos protagonistas.
Esse é um dos nós de estrangulamento da nossa democracia: a recusa de muitos cidadãos em terem coluna vertebral. Preferem curvar-se, contorcer-se, dissolver-se na conveniência do momento a manter-se de pé, mesmo porque o preço da verticalidade é o isolamento ou o sacrifício.
Além disso, os moluscos alimentam a cultura do medo e da mediocridade. Como não ousam criticar nem inovar, bloqueiam o surgimento de novas ideias e de lideranças autênticas. Eles implantam verdadeiras máquinas trituradoras nos partidos políticos, nas instituições onde se implantam e nos corredores do poder. As máquinas do “nós” e do “eles”. Vale tudo para manterem-se nas graças do chefe: mentir, desvirtuar a realidade, caluniar, omitir ou criar intrigas. O modus operandi é andar de gabinete em gabinete não para propor políticas, reformas ou debater ideias, mas para falar mal de um colega, assassinar reputações, minar a confiança entre companheiros de trincheira. Estão dispostos a tudo para manter o lugar que ocupam, mesmo que isso signifique o silêncio perante a injustiça ou a perpetuação do erro.
Num país com desafios tão profundos como Moçambique — pobreza, desigualdades, corrupção, polarização política, falta de oportunidades — não devia haver espaço para políticos sem coragem. Precisamos de líderes com coluna vertebral; gente que defenda ideias próprias, que argumente com clareza, que se oponha quando é necessário, que diga a verdade mesmo que custe caro; políticos íntegros, que inspirem confiança por aquilo que são e não apenas por quem os apoia. Os sábios dizem que, na política, a ética é como uma peça de roupa emprestada: alguns a vestem com orgulho, outros apenas a usam quando convém.
A política não pode continuar a ser o lugar onde se sobrevive por conveniência. Tem de voltar a ser o espaço onde se serve com convicção.
A política tem de ser o lugar onde se serve com convicção, porque, no seu sentido mais nobre, é o exercício da responsabilidade colectiva, da construção do bem comum. Não é, nem pode ser, uma arena de intrigas, de ambições miúdas, de jogos sujos travestidos de estratégia.
Quando se entra num gabinete para falar mal de um colega, assassinar reputações e minar a confiança entre companheiros de trincheira, já não se está a fazer política — está-se a jogar à sombra do poder, a trair princípios, a corroer a alma das instituições.
A política exige convicção, porque sem ela reina a conveniência. E onde reina a conveniência germinam os moluscos políticos: aqueles que vivem da intriga, do elogio fácil, da manipulação silenciosa, do “sim, chefe” como senha de acesso aos favores. Servir com convicção significa: dizer a verdade, mesmo quando é amarga; defender ideias, não interesses pessoais; discutir projectos, e não pessoas; corrigir, em vez de conspirar; construir, e não corroer.
A convicção é a bússola moral que separa o estadista do oportunista, o líder do bajulador, o construtor da Nação do parasita institucional.
Se a política não for lugar de serviço convicto, torna-se espaço de vaidades e vinganças, de jogos de máscaras e decadência moral — um teatro onde os piores actores ocupam os melhores lugares e os melhores são expulsos do palco por não saberem representar a farsa. E, no fim, todos pagamos o preço. Porque quando a política deixa de ser feita com convicção deixa de ser feita para o povo e passa a ser feita contra ele.
A solução para os problemas do país não virá com mais obediência cega nem com mais silêncio estratégico. Precisamos de menos moluscos e mais seres humanos inteiros. De menos repetidores e mais pensadores. De menos bajuladores e mais servidores públicos com coragem e espinha dorsal.
A solução para os problemas do país não reside na violência urbana ou rural nem na destruição insensata do pouco que temos — e que foi erguido com sacrifício, suor e esperança.
Não há redenção nacional na raiva desgovernada, nem futuro colectivo na fúria cega que atira pedras contra as próprias janelas da casa comum.
A solução para os nossos dilemas não virá da desobediência civil destrutiva, que arrasta o país — e com ele os moçambicanos — para um estado ainda mais miserável do que o presente. Rebentar os trilhos por onde ainda se tenta caminhar, queimar os barcos antes de atravessar o rio, destruir antes de propor — tudo isso é negar o futuro.
A solução para os problemas do país também não virá da instalação subtil — mas corrosiva — de uma ideologia fascista e divisionista, que desenha trincheiras de ódio entre o “nós” e o “eles”. Esse veneno semeado no discurso e na prática afasta-nos, polariza-nos, empurra-nos para os extremos e mantém a nação em permanente tensão, numa ebulição constante — como um barril de pólvora à espera apenas que alguém acenda o fósforo ou risque o isqueiro.
Não é esse o caminho. Nunca foi.
Moçambique precisa de um projecto nacional com visão, coragem, justiça e diálogo, que una os que pensam de forma diferente e reconcilie os que foram feridos pela história. Um país não se liberta com pedras nas mãos, mas com ideias firmes, instituições sólidas e lideranças com carácter.
A mudança verdadeira não virá dos gritos, mas da capacidade de escutar. Não brotará da violência, mas do compromisso com a justiça. E não se afirmará na destruição, mas na construção corajosa de um futuro onde caibamos todos.
O país precisa de instalar uma nova cultura política. Formar uma nova cultura política passa, acima de tudo, por investir na educação para a cidadania, em casa e nas escolas. Passa por criar espaços onde se possa discordar sem medo, debater com profundidade e construir com honestidade. Só assim deixaremos de produzir moluscos sociais — e, por consequência, moluscos políticos — para, finalmente, dar lugar a líderes com firmeza, com visão e com verdadeiro compromisso com Moçambique.