Por: Jorge Ferrão e Patrício Langa
Em 2022, o ensino superior em Moçambique completa 60 anos. Com efeito, foi a através de um decreto-lei 44530 de 21 de Agosto de 1962, que foram criados os Estudos Gerais Universitários em Moçambique e de Angola. Surgiam assim as primeiras instituições do ensino superior (IES) nos países africanos de língua oficial Portuguesa.
Seis décadas podem representar um tempo históricosignificativo para um país fundado em 1975, masincipiente para o ensino superior como instituição milenar competindo apenas com a igreja em termos de antiguidade. O termo ensino superior, aqui, é tomado como se referindo a todas as formas de educação terciária, pós-secundária, incluindo a do tipo universitária, politécnico. De facto, se nos atermos ahistória do ensino superior antigo, a África pode até reclamar-se o berço deste tipo de educação antes de mesmo de Cristo, coma Academia de Alexandria no Egipto fundada em 331 AC.
As famosas Universidades de Timbuktu, actual Mali, fundada em 1100, a Universidade do Cabo, fundada em 1829, mas também as universidades de Cartum, o Sudão(1902), Makerere no Uganda (1921), Ibadan (1948) na Nigéria, e Nairobi (1956) no Quénia são a evidência de que o ensino superior nos países de expressão Portuguesa fora de Portugal (PALOP) ainda esta no seu despontar.
Com a excepção do Brasil, cuja historia indica que a primeira instituição de ensino superior foi a Escola de Cirurgia da Bahia, criada em 1808 e a posterior as faculdades de Direito de São Paulo e de Olinda, em 1827, os PALOP tiveram que esperar até ao inicio da década de 1960 pelo ensino superior.
Nos casos de Moçambique e Angola o percurso inicia com um processo respaldado na mudança da política colonial em relação às colônias, a crescente demanda dos colonos e assimilados, associada a pressão inestimável das Nações Unidas que apelava a criação de mais condições de ensino, nas então colónias portuguesas do ultramar. Ainda assim, o ensino superior nestes países nasce com o pecado original da exclusãodos nativos.
Assim, celebrar seis décadas de ensino superior constitui em si um acto de regozijo, particularmente, quando se faz num contexto de independência do jogo colonial relativamente consolidado. Não obstante, os avanços, os desafios são reflexo de um subsistema da educação ainda emergente, num país que ainda busca seu rumo no concerto das nações. Em 60 anos em média criamos 6 novas universidades a cada década. Os desafios que temos em seis décadas muitas vezes olvidam que se equiparam as mesmas aspirações de sistemas nos quais cada década nossa equivale a um centenário. Alias, no Hemisfério Norte, de onde nos inspiramos e herdamos a ideia moderna do ensino do superior, as IES são ate milenares. Sem ser complacentes, precisamos ser condescendentes em qualquer que seja a avaliação das seis décadas. Até porque mais do que a própria avaliação e dos critérios que mais precisamos nos ocupar nas próximas décadas.
Tais desafios incluem um sistema que procura definir o seu caracter, com IES com maior pendor para a docência em detrimento da investigação, corpo docente em processo formação, necessidade de estudos específicos sobre o desenvolvimento do subsistema, e melhoria dos processos de formulação de políticas mais assertivas, entre outros. Tal como Angola, não admira, pois, que tenhamos percorrido a mesma trajectória, experimentado desafios muito semelhantes e, fundamentalmente, que o processo de consolidação se mostre, ainda, muito distante do seu final.
Sendo que o ensino superior se caracteriza não só pelo ensino, mas também pela pesquisa, extensão e inovação para a produção de conhecimento com impacto na sociedade, a comemoração dos 60 anos deste subsistema em Moçambique é uma oportunidade ímpar para se repensar o subsistema, as instituições e o seu papel na transformação da sociedade. Nesse repensar, cabe um debate profundo sobre as políticas do ensino superior, o lugar da pesquisa e extensão na formação dos estudantes, a formação de docentes, que, conjugados, e num contexto de inovação, concorrem para a qualidade almejada neste subsistema.
Entre avanços e retrocessos, desafios e oportunidades o ensino superior passou por diferentes processos de continuidade e rupturas. O esforço e empenho de jovens académicos, com todas as limitações, esteve sempre presente e tem sido o garante das mudanças, aprimoramentos e paradoxalmente dos problemas correntes. Não existem dúvidas e nem reservas que as IES nacionais foram as grandes responsáveis pela formação da maior parte do capital humano em Moçambique, que providencia e garante serviços essenciais ao Estado, sector privado, familiar e noutras esferas económicas, culturais e até na manutenção dos serviços dos ecossistemas.
Todavia, prevalecem questões estruturais, de governaçãoe coordenação do sistema, atitudes autocráticas e de poder discricionário dos gestores, tanto nas IES públicas como nas privadas. Os investimentos em infraestrutura, planos temáticos e curriculares são fundamentalmente desenquadrados, o tempo de formação questionável, esquemas de corrupção, e, coincidentemente, aascendência e precedência da política sobre a academiaou, por outras, a politização da academia que desvirtua o sentido da autónima “real” (e não apenas no papel) das IES que, noutros contextos, paradoxalmente tende a ser protegida pelo Estado.
Apesar dos avanços em termos de acesso ao ensino superior, com a expansão geográfica de IES um pouco por todo país, fruto da visão de política pública dos diferentes Governos, a base de conhecimento que sustenta os processos decisórios sobre o ensino superiorassenta em convicções fortes, com princípios normativos– do dever ser – em contraste com fraca evidência produzida através de estudos de base. Os quadros normativos e reguladores do sistema revelam um problema fundamental dum sistema político descentralizador na retórica, mas com tendênciascentralizadoras e autocráticas na prática. Com efeito, trata-se de um sistema que emula a sua insciência na medida em que se envolve num ciclo vicioso de relatórios técnicos comissionados e produzidos por agências de consultoria generalistas e profissionalizadas, que subcontratam, a preço rendeiro, académicos cuja autoridade e legitimidade radica do simples facto de advirem das IES.
Vivemos uma encruzilhada. Por um lado, a pressão das demandas duma sociedade cada vez mais ciente e crente dos benefícios do retorno do investimento no ensino superior, apesar duma apreciação e avaliação baseada no bom senso, informada por uma visão redutora e instrumentalista do ensino superior como o trampolim da mobilidade social através do emprego formal, no Estado, e nas Organizações não Governamentais (ONGs), mercado preferencial para a transação da reputação dos títulos e credenciais académicas.
Por outro lado, a saturação prematura dos lugares de emprego, particularmente, no aparelho do Estado, mas também nas ONG com maior proeminência, que prematuramente desfazem a ilusão da empregabilidade, dos graduados, num sistema cuja taxa de participação entre Jovens dos 18 aos 24 anos não atingiu sequer 10% em sem mil habitantes, reforça o estado de crise do sistema. Este paradoxo gera a ilusão da escassez, mobiliza empreendedores educacionais a criarem novas IES, por razões adversas a educação como bem-público, mas funcionam na propalada lógica neoliberal da mercantilização e co-modificação da educação, abordada por um de nos (PL), noutros escritos.
As IES, e, em particular a universidade, no conceito mais genérico, sempre teve um sentido de utopia e de um espaço de encontro de tradições e quebra de horizontes do conhecimento humano. A universidade é, igualmente, um espaço onde se cultivam a sociabilidade com a diferença de pensamento, com o pluralismo democrático, e igualmente, a esperança da humanidade. Esperança porque a sociedade deposita confiança nos processos deliberativos associados ao pensamento crítico, em principio, que radica da formação superior.
Assim, a universidades seriam, também, ao longo destes 60 anos, parte do projecto de consolidação da unidade nacional e representatividade dos diferentes grupos sociolinguísticos, suas tradições e utopias. As IES constituem espaços convencionais onde a expectativa seria a criação do designado ‘bildung’, quer dizer, à preparação da pessoa humana visando produzir cidadãos responsáveis, maduros, autônomos e capazes de refletirem sobre os seus próprios problemas, e da suasociedade e Estado.
Este exercício constitui o lançamento de um repto. O repto da oportunidade que ocasião que se aproxima com a efeméride do sexagenário nos oferece para repensar o ensino superior no país.
Lançamos o repto neste mês de Novembro, demasiado simbólico e representativo para o ensino superior, quando celebramos o dia mundial da ciência e o dia dos estudantes, que enfrentam as vicissitudes de um sistema de ensino superior emergente. Os impactos da pandemia que escancarou em 2020, as fissuras e fragilidades diante das restrições, incapacidade e outras aporias que provaram o quão longo será o caminho a percorrer na edificação de um ensino superior robusto.
Mas do que se queixar da ausência do obvio, que a pandemia, apenas veio desnudar, estes tempos oferece-me como aqueles que podem ser da reinvenção. Sim falta tudo para muitos, e há tudo para poucos, mas há também a oportunidade da ausência do padrão, da tradição, pois tudo e experimental. Portanto, se a inclusão digital parece ser um problema de fundo, não poderemos negligenciar o potencial da inclusão social.
Ao celebrar os 60 anos do ensino superior teremos de entre outras que tipo de ensino superior para que tipo de sociedade queremos.
Celebrar estes 60 anos tem de assumir um papel bem mais profundo e contundente. Redefinir o papel e a função do ensino superior num contexto de múltiplas necessidades sociais e humanas, para que as IES continuem impondo-se e respondendo aos desafios da sociedade com recurso ao pensamento crítico a esta tão caro. Não poderemos continuar dissociados da quarta Revolução Industrial, do advento da ciência artificial, da robótica e nem a redefinição da grelha de cursos que mais condicentes com as novas profissões. Estes tempos apontam para cenáriosverdadeiramente desafiadores, e que obrigarão Moçambique a repensar na direcção do seu ensino superior de forma geoestratégica e mais estruturada.
Nos próximos anos, os desafios serão acrescidos. Os impactos das sociedades de conhecimento colocam competências tecnológicas e digitais como activos ultra importantes. Seguir as novas tecnologias e os efeitos da revolução cientifica e tecnológica, evitará que sejamos marginalizados e esquecidos pelo tempo.