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O problema da arte não é saber como é. É como fazê-la.

Por: Filimone Mieigos

 

O problema da arte não é saber como é.

É como fazê-la.

José Craveirinha

 

Certa vez, tal como hoje, o Zeca emboscou-me, claro, filho de turra sabe emboscar. E aqui estou, num domingo igualzinho ao primeiro numa exposição sobre o Sontinho. Todos os domingos são santos, mas os nossos são Sontos.

Não é sem razão que o meta título desta exposição é um poema sobre a arte e a sabedoria que lhe está subjacente, da pena do próprio Sontinho, o poeta José Craveirinha: O problema da arte não é saber como é.

É como fazê-la.

Nascido num sonto (domingo) dia melhor não haveria para explicar essa coisa de como fazer arte, particularmente nas telas do Zeca.

Pois, como fazê-la?

Em primeira instância, essa coisa do “como fazê-la ”, tem muito que se lhe diga. Aliás, depende do ângulo do motorista. Portanto, não tem nada a ver com a marca do automóvel, tão pouco com a estrada ou picada por onde o carro anda. Assim é a arte na perspectiva do “como fazê-la”. O artista é o soberano motorista do my love na madrugada do processo criativo. Segue em frente, vira à esquerda, pisca à direita e faz marcha à ré sempre que lhe der na real gana. Assim são os que sabem como fazê-la, seguem os espíritos do ser. Portanto, “Como fazê-la”, está primeiro que tudo na poesia de quem a faz, o artista. Depois, virão os especialistas, os académicos, os críticos, os jornalistas culturais e por aí adiante para do mesmo modo, e com arte, terem que enfrentar a mesma questão: como fazê-la?

Cada sentença sua cabeça assim é que é, ao avesso. Não vá o diabo fardar-nos de unanimismos. Se aceitarmos, não sei por que carga de água, estar em comunhão de pareceres ou de vontades nas artes, estaremos a ser outra coisa que não nós próprios. Não é assim como se faz arte.

Como se faz é como cada um revela o seu direito de vontade no andamento da emoção. Resulta claro, o artista representa e elabora mentalmente, cada um à sua maneira.

Por exemplo, esta exposição é à maneira do Zeca, é a sua elaboração sobre um sonho que se vai dissipando, embora sempre presente e imortalizado na tela.

Na pintura do Zeca, a chave de rodas na poesia do cromatismo, a subtileza no volante do pincel, o espelho retrovisor na magia do sentimento, a técnica na leveza do traço, são o som da composição que avoluma o Binga da sua criação artística. Qual drone voando na Mafalala, literalmente seguindo a mesma utopia do Sontinho, o seu norte. Isso mesmo, pessoa que se preze tem norte, mal de nós se tal não fosse. Aí seria outra coisa: “ai a passividade animal!”.

A sombra titular (não tutelar) é um decalque ao sentimento do grande poema Maria. No caso, é o filho de Maria, o Zeca, a presenciar a ausência sempre permanente do poeta, por assim dizer, agora feitos três: Zé, Maria e Stélio.

Na lonjura da tela tacteamos o bonacheirão do tio Zé namorando sua Maria, enquanto os dois assistem Stélio a saltar as barreiras da vida.

Chapéu preto, gola à maneira, sapatos como sempre bem engraxados, calça com vinco, e aquele bigode matreiro que o Zeca recria na sua própria face e nos seus quadros, esse é o tio Zé que povoa estes quadros. Afinal não fosse o poeta subversivo, coisa que o Zeca vivenciou e por conseguinte assume e inoculou.

O acentuado negro no cromatismo desta exposição, o som do escuro sugere essa presente ausência dos seus.

E ainda bem, porque a pergunta “como fazer” é respondida em uníssono pela família: “se faz fazendo-se tendo presente as nossas raízes já de si fasciculadas”.

Pois é, tal como sabemos, uma raiz fasciculada tem vários eixos, ramificados ou simples, mais ou menos iguais na espessura e no comprimento. Não é possível distinguir o eixo principal dos secundários.

É como quem diz uma verdade a la palisse: os frutos sejam de que árvore for, não caiem muito longe do seu perímetro. É assim que se vai reconstruindo uma reciprocidade, um dar e receber na base da ancestralidade, no próprio chão da árvore. Tais são as raízes que prendem a terra às nossas árvores porque a terra não pode esvair-se-nos entre os dedos, como se de água se tratasse.

Assim se manifesta a poesia do Zeca nestes quadros que têm raízes profundas e uma muito bem conseguida trans-geracionalidade nascida por debaixo dessa frondosa árvore, o embondeiro da Mafalala.

Então a arte não é essa maneira de dizer com pincéis, palavras, gestos, acordes, ou seja lá o que for, aquilo que de outro modo não seria possível dizer?

Isso responde, em boa parte, a questão como fazê-la. Estas telas dizem-nos da sinédoque do augúrio vivenciado num passado não muito distante. Uma pátria. Uma campeã olímpica. Uma cidadania. Sermos nós.

Sabemos que persistem os milícias Fakir. Do mesmo modo sabemos que é verdade que se re-configuram “essas palmas induvidosas que palmeiam os discursos dos chefes”.

Claro que a pergunta persiste: “Uma população que não fala não é um risco?”

“Deixem-me ser tambor”. É assim que eu faço, replica o Zeca nas suas altifalânticas telas:

Siavuma!

 

Sonto, 29 de Maio, Kanfumo 2023

 

 

 

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