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O poder

Os braços estão levantados como que buscando súplica divina. A torrente de água roça-me as axilas. Não me faz cócegas. Faz-me chorar. São lágrimas que me nascem no coração, trituram-me a alma e desembocam continuamente na própria água assassina.

Passei horas lutando por proteger a minha palhota. Ela desabou. Os seus destroços flutuam errantes e ajudam a água a fazer mais vítimas.

Passei horas lutando por salvar a Marina, minha filhota linda. Ela sucumbiu. A sua alma ainda habita o meu ser, mas o corpo está a caminho do oceano à velocidade da torrente.

Passei horas lutando pelo meu filho Chomunoha. Também partiu. Tentava ajudar-me a salvar a irmã quando tropeçou e se perdeu debaixo das águas. 

Passei horas lutando pela minha esposa Ndakayiyenyi. Chorávamos juntos pelos nossos pequenotes, quando uma chapa de zinco num voo rasante resolveu aterrar precisamente no seu pescoço. Ainda tentei acudi-la, mas a água fez o resto. Arrastou-a num rasto de sangue contra o qual nada pude fazer.

Agora luto pela minha vida. Luto pelo futuro. Mas que futuro? O futuro é cada minuto que se segue. É cada passo que dou. É cada lufada de oxigénio que inspiro.

A água já não só me roça as axilas. Galga-me os ombros a caminho do pescoço. Em breve vou perder o chão. Tenho de tomar uma decisão de vida. Decisão rápida. Não há nenhuma árvore por perto. Estou rodeado de pequenas plantas que há muito se renderam à fúria das águas. Sobra-me o edifício da sede do Posto Administrativo que é para onde todos os caminhos vão dar. Vejo-o a reluzir à distância de uma vida. Nunca soube nadar. Arrasto-me rezando para que nunca deixe de ter pé. Há dois focos nesta caminhada. Primeiro são os pés, que a cada passo se devem manter firmes num chão movediço. Depois é a cabeça, que deve fintar cada pedaço do entulho que vem com a água.

O nível do líquido da morte atinge-me rapidamente o pescoço. Apenas a cabeça subsiste fora.  A muito custo alcanço a escadaria do edifício. Está apinhada de gente. Homens e mulheres.  As crianças há muito que deixaram de ter pé. Foram todas içadas para o tecto, a única tábua de salvação.  

Procuro um ponto de apoio numa janela escancarada. Por ela descubro que o interior está completamente inundado. Documentos oficiais levitam na água. Com toda a força que me resta, pego na aba superior do edifício e num impulso hércule coloco-me fora da água. Uma ampla placa de betão, completamente repleta de gente, enche-me a visão. O tecto está despido de chapas de cobertura. Todas elas seguiram viagem pelos ares. Terá sido uma delas que vitimou a minha Ndakayiyenyi? Só Deus sabe.

Sobra pouco espaço para anichar-me. Tanta é a gente que busca cada milímetro quadrado deste tecto para salvar a própria vida. Há alguma solidariedade para com os que ainda trepam. Muitos, sobretudo mulheres e idosos, precisam de nossa ajuda cá em cima para lhes dar o impulso que falta para subir. Uma mão segurando na do outro é o gesto suficiente.

Volto a olhar para baixo tentando uma vez mais estender o meu apoio. Surpreendo-me com o brilho de uma careca famosa aqui da povoação. É a cabeça do Chefe do Posto: o homem mais importante. O mais poderoso. O mais temido. O homem que anda sempre de ombro esticado e queixo levantado para encurtar a distância com Deus, de quem se assume seu representante na comunidade. Hoje os seus galões murcharam e pede ajuda. Quer que lhe estenda a mão e lhe dê a força que necessita para alcançar o tecto.

Dou-lhe a minha mão sim. Ele segura-a com toda a firmeza. A sua vida está agora nas minhas mãos. Todo o seu poder agora de nada vale. Toda a sua petulância de nada conta. Toda a fanfarronice murchou. Se eu o largar ele cai que nem uma pedra e morre afogado porque, como eu, não sabe nadar.

Puxo-o para mim com toda a energia e o homem tomba no tecto. É das últimas pessoas que aqui chegam. Lá em baixo a água já ultrapassou a aba superior. Ninguém mais tem pé. Quem não está aqui connosco ou conseguiu pendurar-se em alguma árvore ou foi então arrastado na direcção do abismo.

Nada mais nos resta que não seja esperar ou que as águas parem de subir e vazem rapidamente, ou por alguma ajuda que venha dos céus. Enquanto isso vamo-nos agarrando uns aos outros numa espera que pode durar dias ou semanas.  

O Chefe do Posto está aqui connosco. Também em pânico. Também ofegante. Trémulo, segurando a minha mão. O seu futuro é tão incerto quanto o meu. Novas questões emergem do meu pensar. Afinal de contas o que será o poder? São as pessoas? Os edifícios? Os carros? Ou as construções que erguemos na nossa consciência?

Seja qual for a resposta, o ponto é que pela primeira vez, sinto que o poder não é mais que uma abstração. O temido Chefe do Posto aqui choraminga comigo. Aqui apanha chuva comigo. Aqui sofre com o vento comigo. Aqui passa fome comigo.

Estamos todos aqui apinhados. Homens, mulheres e crianças. Agarrados uns aos outros, respirando o mesmo ar, vivendo a mesma agonia e todos decalcando na calçada do desespero um amanhã sem horizonte à vista. Pior ainda: estamos todos por cima do edifício da sede do Posto Administrativo. O edifício do poder. Esfomeados, frágeis e esfarrapados, mas por cima do poder! Sorrio de esguelha e abafo a alma.

 

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