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O passageiro do assento número 13-A

Aquele vôo das Linhas Aéreas de Moçambique com destino à cidade de Pemba registava um atraso de quatro horas _ o que era comum.
Os candidatos a passageiros barafustavam, gesticulavam e pediam a decapitação dos pilotos, do chefe-de-escala ou de fosse quem fosse que criava tamanho embaraço. Aos balcões e na sala de embarque o pessoal de terra pedia tranquilidade e compreensão pelo inconveniente e aludia a avarias nos motores, que era contraproducente viajar nas condições mecânicas em que a nave se encontrava.
Estabilizados os ânimos e com a garantia de segurança dos engenheiros foi autorizado o embarque dos passageiros. Alguns daqueles haviam abandonado o projecto de viagem, argumentando diversos pretextos.
_ Não arrisco voar naquela sucata_ uns diziam.
_ Pode dar-se o caso de termos de regressar à proveniência com outra ameaça de avaria. Boa viagem, meus senhores… _ sinal de profunda desconfiança doutros.
Uma assistente de bordo recebia os passageiros conformados à porta de entrada da nave com sorrisos abertos que aliviavam o desconforto da longa espera e das incertezas da jornada iminente. Do alto da escadaria de acesso assiste à subida dos mesmos com um olhar atento e profissional. A experiência de carreira de quase dez anos conferia-lhe atributos que transmitiam tranquilidade aos utentes dos serviços da Companhia.
Aquele passageiro passou por ela e correspondeu à saudação de boas-vindas com uma vénia pronunciada e um sorriso que a cativou. Não era todos os dias que recebia cavalheiros corteses e compreensivos uns, outros revestidos de lustros de “very important persons” cheios de petulância e exigentes de serviços quase em regime de exclusividade. Aquele saudara-a com as mesuras de um passageiro simples, descontraído e até arredio ao contacto com os olhos dela.
Ele ocupou o seu lugar no assento número 13-A, junto à janela. Arrumou o sac-à-dou no compartimento sobre o assento e ajustou o cinto de segurança, conforme recomendação já tradicional em todos os vôos. A seu lado o lugar encontra-se desocupado, o que lhe confere movimentos livres e conforto no espaço que ocupa.
A assistente de bordo que o saudara à entrada entra em atribulações de memória. Tem uma sensação de, remotamente, ter-se cruzado com aquela personagem. Onde e quando? Em alguma celebração de algum matrimónio ou aniversário, de algum baptizado, só poderia ser. Os modos são-lhe familiares. Busca alguma pista na memória; todavia, as recordações evadem-se na penumbra do passado.
No momento de demonstração dos procedimentos de segurança aquela hospedeira fá-lo no corredor, exactamente na fila dos assentos número 13. Desvia olhares esguelhados à figura daquele homem, fá-lo repetidamente, como se algum magnetismo emanasse daquela figura e a distraísse. Findo o ritual, solicita que corrija o aperto do cinto de segurança, dobra-se sobre ele e, ela própria, ajuda-o a fazê-lo. Dele aspira a fragrância de um perfume familiar, uma água de colónia francesa de marca Poison que acentuou as suas angústias. Seria uma nova paixão ou algum arrebatamento do espírito que vinha reacender os sobressaltos da viuvez? Porque ela o era, completava sete anos, depois do acidente de viação em que o esposo pereceu, naquela viagem fatal de regresso de uma missão de serviço na Estrada Nacional Número 1. Ele era um cavalheiro jovial, ambicioso em fazer uma carreira de jornalismo com brilho e marca, atento às trepidações de uma sociedade em transformação, acérrimo crítico dos desvios dos políticos e às estratificações da sociedade onde a marginalização dos pobres era óbvia e obscena. Aquele homem tinha algo de comum com o defunto esposo. Tamanha semelhança física e nos procedimentos seria demasiada coincidência. Mas ele morreu, e os defuntos não ressuscitam.
Ela regressou ao sector privado das hospedeiras, esbaforida, cheia de palpitações. Bagos de suor suspendiam-se na testa, outras escorriam pelo pescoço abaixo e balbuciou:
_ É ele…é ele…_ as palavras encalham na garganta. Toma assento e, com uma salva de gorgolejos, prossegue_ É ele…é ele!…só pode ser ele!…
_ Suzi, de que estás falar? De quem estás a falar?_ espanto das colegas assistentes de bordo pela súbita transformação que testemunham. Tratar-se-ia de alguma alucinação que se operava na mente da colega Suzi? Esta agita-se com desconforto, um tremor sacode-lhe o corpo e continua a prelecção. Os olhos rolam nas órbitas, como se enxergassem algo sobrenatural.
_ Tragam água com açúcar, urgente! _ comandou a chefe da equipa. Aquela era uma solução de efeitos assegurados para o alívio de emoções fortes. A Suzi tomou o xarope com sofreguidão. Os lábios tremiam no auge dos murmúrios.
_ De quem está a falar, Suzi? _ barragem de perguntas que vinham das bocas das colegas.
_ É o passageiro do assento número 13-A _ a Suzi conseguiu articular.
_ O que tem ele de especial?_ pergunta que se calava na boca da assistente-chefe Mila, veterana na Companhia e conhecedora de personalidades atormentas. Também já o fora e era-o a seu modo.
_ É ele sim, o meu marido! _ disse a Suzi, a soletrar as palavras.
_ Suzi, o teu marido faleceu há muitos anos. Os mortos não ressuscitam _ consternação da senhora Mila. Envolve a Suzi com um abraço e sopra-lhe ao ouvido palavras de conforto e conformação a um passado que já ia longínquo. Crê que a colega Suzi sofre de algum episódio de uma súbita histeria ou de alguma alucinação visual._ Deixa-me confirmar o seu nome.
A senhora Mila deslocou-se ao assento número 13-A. Com um sorriso protocolar e rosto iluminado solicitou ao passageiro o cartão de embarque. Sem hesitações aquele retirou o mesmo da carteira e entregou-o à hospedeira-chefe. Esta leu-o mentalmente e devolveu-o ao passageiro.
_ Suzi, aquele passageiro chama-se S. Ruben e embarcou no Maputo. O seu destino é o Aeroporto da Beira. Podes crer que não é o teu marido. Há muita gente parecida uma à outra e isso, muitas vezes, causa transtornos e muita confusão. Podes estar tranquila. Descansa porque a tua indisposição não tem razão de ser.
A viagem continuou sem sobressaltos. Todavia, a Suzi conjecturava possibilidades de o defunto esposo ter tido um irmão gémeo ou algum parente consanguíneo com o mesmo, que o defundo não tivesse conhecido ou revelado a sua existência.
A aterragem no Aeroporto da Beira foi algo acidentada. Os motores rugiam com muito estrondo, des-sincronisados e fumarentos. Alguns passageiros arrependiam-se pela aventura de viajar naquela aeronave. Outros transpiravam profusamente, fluxos de adrenalina fluiam nos corpos pela incerteza de segurança no acto de aterragem que, finalmente se consumou sem incidentes de maior.
Tal como os demais, aquele passageiro do assento número 13-A, aprontou-se para o desembarque. Passou pela hospedeira Suzi e sorriu para ela. Agradeceu a hospitalidade e ofereceu-lhe um sorriso aberto que, em definitivo a derrubou.
_ Oh, esse diastema, meu Deus! É ele!…É ele!…Só pode ser ele!_ novo abalo no fingido sossego da mente da Suzi. Aquele diastema na linha dos dentes superiores era uma marca hereditária na família do defunto esposo. E ele transmitira o sinal à filha Nelly.
Durante o troço do vôo entre as cidades da Beira e de Pemba a Suzi conferiu a lista de nomes dos passageiros embarcados no Aeroporto de Maputo. Seguiu com os dedos trêmulos, linha a linha, os nomes registados. A ansiedade comandava o acto. Chegou ao fim da mesma e não identificou o nome de um passageiro com o nome de S. Ruben.

*
* *
Na manhã seguinte àqueles assombros durante o vôo a Suzi dirigiu-se ao cemitério de Lhanguene para apurar dos eventos relacionados com a identidade daquele passageiro e da eventualidade de o esposo encontrar-se vivo.
Identificou a campa onde o esposo fora sepultado. Não se equivocou, embora nas últimas temporadas não fosse tão assídua nas visitas à mesma, por circunstância várias. Era a campa número 3771 T.
A princípio ficou atarantada com a localização do sepulcro. Rondou o lugar com espanto. A placa de identificação encontrava-se meio derrubada, espetada sobre um montículo de terra fresca. Deduz que alguém violara o lugar, a pedra do epitáfio jaz derrubada na cabeceira. Dir-se-ia que houvera uma violação, o estado do lugar assim o sugeria.
A Suzi sobressalta-se. Apressadamente dirige-se aos escritórios do cemitério para indagar e colher esclarecimentos sobre o que presenciara.
_ A campa do meu marido foi violada!_ disse ao oficial em serviço, o senhor Marcos Matimele, com as palavras atabalhoadas e emoção na voz.
_ Qual é o número da campa?
_ 3771 T _ ela soletrou.
O senhor Matimele ergueu-se do assento e dirigiu-se aos arquivos para verificar a situação oficial daquele lugar de enterro. Volveu-se para a queixosa e disse:
_ A campa não foi violada. Exumámos o corpo do seu ocupante, de nome Silvano Dias Tembe para acomodarmos a urna da esposa. Como é protocolar, e esse foi o pedido dos familiares, o corpo da esposa deve ser enterrado na mesma sepultura que o seu marido _ disse o oficial a mudar a posição do palito com que escarafunchava os dentes.
Ela experimenta uma sensação de lividez na pele do rosto, o coração batuca estrondos no peito, uma vertigem rodopia e inverte o sentido de rotação do seu equilíbrio.
_ Quer dizer que a esposa do defunto morreu? Como ela se chamava?_ gaguejo no quesito.
_ O nome da defunta é Suzana de Castro Tembe. Não sei se a senhora soube, mas ela foi uma das vítimas daquele acidente de aviação que aconteceu a semana passada no Aeroporto de Pemba. Infelizmente, no mesmo não houve sobreviventes e a senhora Suzana de Castro Tembe foi uma das vítimas. Agora temos lá um pedreiro a reconstruir a campa com as urnas do casal. A senhora como se chama?
_ O meu nome é Suzana de Castro Tembe_ gorgolejo na surdina do pronunciamento do nome.
O oficial Matimele reergue-se da cadeira giratória e dirige-se para a saída do escritório. Aí reencontra-se com o vício de fumar. Em quinze minutos consumira dois cigarros para readquirir alento e admitir aquela realidade óbvia e inacreditável que se lhe revelava à vista: a de uma alma que ainda peregrina no universo dos vivos, inconformada com a condição de defunta. Regressa ao escritório. Lá não encontrou a senhora Suzana de Castro Tembe. E conjecturou:
_ Quem sabe?!… Porventura, ela regressou ao recolhimento da sua nova morada: a campa número 3771 T!

*

In “O Livro dos Mortos”, inédito.

 

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