Foi recentemente publicada no Boletim da República (BR) e, presumivelmente, já se encontra em vigor, a nova Lei da Família, aprovada pela Lei n.º 22/2019, de 11 de Dezembro, que revogou, expressa e totalmente, a anterior Lei da Família, concretamente, a Lei n.º 10/2004.
Por imperativos de economia espacial, doravante, tratá-las-emos somente pelas [correspondentes] siglas nominativas: “NLF” no que concerne à nova Lei da Família e “ALF” no que tange à antiga Lei da Família.
Esclarece-se que, acima, fizemos referência explícita a uma “presumível” vigência da NLF, em virtude de constar da NLF que a data da respectiva publicação corresponde ao dia 11 de Dezembro de 2019, mas, no entanto, aquela não foi a precisa data em que o respectivo BR foi, pela Imprensa Nacional, disponibilizado ao público e, se tomarmos em consideração que a NLF estabelece um período de vacatio legis de 30 dias (artigo 442 da NLF), significa que no momento em que se grafa o presente artigo, já nos encontraríamos sob o domínio de vigência da NLF, caso o diploma tivesse sido facultado exactamente na data constante do diploma legal (11 de Dezembro de 2019), visto que já se teriam ultrapassados os mencionados 30 dias de vacatio legis. Entrementes, tendo aquele BR sido somente disponibilizado em Janeiro de 2020, e atentos ao horizonte temporal que delimita a referida disponibilização e a publicação deste artigo de opinião, logicamente que o período nele consagrado de vacatio legis não foi ainda atingido, não se podendo, neste diapasão, afirmar-se, com propriedade, que ela já se encontra efectivamente em vigor.
A união de facto, por se traduzir num palco onde confluem interesses imateriais (ligados ao sentimento de afectuosidade existente entre os companheiros e, sobretudo, por estar no epicentro das relações jurídico-familiares – da união pode advir a filiação, que se consubstancia numa das fontes do Direito da Família a par do casamento, adopção e afinidade – e ainda aqueles efeitos pessoais da união de facto, como os da presunção da paternidade/maternidade) e interesses patrimoniais (enquadrando todos os bens e direitos avaliáveis pecuniariamente, adquiridos no governo da relação), assume importância capital no que se prende com a necessidade da correcta interpretação das disposições legais e do pensamento legislativo (elemento teleológico) que inspirou o legislador a legiferar num determinado sentido e não noutro.
Com efeito, nunca é demasiado lembrar (de forma a nunca esquecer), que o petit gateau da União de Facto são os seus efeitos patrimoniais e, relativamente a estes, o problema de tratamento legal emerge, em grande medida, após a dissolução da relação (onde, de forma incisiva, cada um os ex-companheiros se digladia com o outro com o fito de fazer ingressar na sua esferas individual os bens adquiridos na constância da relação ou ainda persistindo casos em que um dos ex-companheiros tenciona fraudulentamente se assenhorar de bens de que tem perfeito conhecimento de que foram adquiridos pelo outro companheiro antes da constância da relação de união de facto). É, insofismavelmente, esta a circunstância que mais engrossa o volume processual dos tribunais, quando se está em face de um litígio judicial decorrente de uma união de facto.
Os efeitos patrimoniais acima aludidos podem resultar de um cenário onde os companheiros estão ambos vivos ou ainda depois da morte de um deles, caso em que se se produzem efeitos sucessórios e, por via disso, o regime da união de facto terá de ser conjugado com as disposições da [recentemente] aprovada Lei das Sucessões (Lei n.º 23/2019), na parte atinente a administração da herança e critérios de elegibilidade do cabeça-de-casal, classe dos sucessíveis e qualidade de herdeiro, direito à meação, etc., e sem perder de vista o disposto sobre a matéria noutros diplomas legais, v.g., o Código de Processo Civil (CPC) relativamente ao processo de Inventário (artigo 1326 e ss CPC,) o Regulamento da Segurança Social Obrigatória aprovado pelo Decreto n.º 51/2017, na parte respeitante aos familiares com direitos às prestações por morte, a repartição do subsídio por morte, pensão de sobrevivência diferidos ao unido de facto sobrevivo (seja ela pensão de sobrevivência vitalícia ou temporária), ou ainda na parte disciplinadora da Habilitação de Herdeiros (artigo 87 e ss do Código do Notariado).
A primeira grande alteração carreada pela NLF consta dos pressupostos da união de facto. Se a definição constante da NLF (artigo 207) coincide com a que já vinha plasmada na ALF (artigo 202), no sentido de qualificar a união de facto como sendo a ligação singular existente entre um homem e uma mulher, com carácter estável e duradouro, que sendo legalmente aptos para contrair casamento não o tenham celebrado, entretanto, na NLF, o legislador alterou os limites quantitativos de tempo que se devem verificar para que se possa estar diante da figura da união de facto.
Com efeito, ao abrigo da ALF, união de facto pressupunha a comunhão plena de vida pelo período de tempo superior a um ano sem interrupção. Agora, nos termos da NLF, aquela comunhão deve verificar-se por um período superior a três anos sem interrupção (artigo 207 da NLF).
O legislador fez coincidir o requisito temporal de produção de efeitos patrimoniais da união de facto – três anos – com o período em que, os cônjuges devem, obrigatoriamente, estar casados caso pretendam lançar mãos a separação judicial de pessoas e bens por mútuo consentimento (artigo 194 NLF) ou ao divórcio não litigioso (n.º 2 do artigo 200 NLF).
Além da alteração dos pressupostos conducentes à produção de efeitos patrimoniais, o legislador enuncia, na NLF, pela primeira vez e de forma expressa, que a união de facto releva também para efeitos sucessórios e outros previstos em demais legislação (uma enunciação, diga-se de passagem, pleonática e redundante, pois, ainda que o legislador não o frisasse, os efeitos sucessórios produzir-se-iam na mesma, porquanto eles obtêm-se ope legis, i.e., por força da Lei, desde que verificados os elementos constitutivos que, à luz da Lei (ex: Lei das Sucessões, Regulamento da Segurança Social Obrigatória), provocam aqueles efeitos.
Na NLF, o legislador regulamentou o regime da uniao de facto, introduzindo as figuras do reconhecimento administrativo da existencia e cessação da união (artigos 209 e 210 da NLF) e reconhecimento judicial da existência e cessação da união (artigo 211da NLF). No domínio da ALF, a prova da união de facto era essencialmente testemunhal, no sentido de ser necessário o depoimento confirmativo de terceiros que atestassem que um determinado casal teria residido em plena comunhão de vida por um período superior a um ano.
Ainda que seja do conhecimento público que, a pedido de somente um dos companheiros, as Autoridades Administrativas e/ou Municipais, emitiam documentos confirmativos daquela união, e pretendiam que tais documentos valessem como documentos autênticos nos termos do artigo 371 do Código Civil, que, como se sabe, possuem uma punjante força probatória, na medida em que fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora, no dizer de TOMÁS TIMBANE (sic): considerando que a união de facto é uma situação que as autoridades locais não terão acompanhado, pode, pois, dizer-se que não se trata de facto atestado “com base nas percepções da entidade documentadora”; então o documento não faz prova plena, podendo arguir-se e provar que a união de facto não existiu ou que não existiu durante determinado período (In Reconhecimento Judicial da União de Facto, Monografia, 2010, p. 15).
Por isso, a possibilidade legal de reconhecimento administrativo da existência da união de facto, atestada por certificado passado pela autoridade administrativa da área de residência dos companheiros, mediante declaração destes, feita conjuntamente, desde que estejam reunidos os pressupostos previstos no artigo 207 da NLF, traduz-se numa medida que evita o enviesamento e falsidade das declarações que antes, do domínio da ALF, eram passadas por Autoridade que não tinham acompanhado a união de facto e, como se não bastasse, somente a pedido de um dos companheiros.
Se se aplaude a instituição do reconhecimento administrativo, o mesmo já não se poderá dizer do reconhecimento judicial (artigo 211 NLF), nos termos do respectivo n.º 3, o pedido de reconhecimento da existência ou cessação da união de facto pode ser cumulado com os pedidos relativos à efectivação dos efeitos da união de facto, com as necessárias adaptações.
Ora, esta previsao ínsita no n.º 3 do artigo 211 da NLF traz problemas insanáveis sob o ponto de vista processual, pois, sabe-se, de forma sobeja, que a efectivação dos efeitos da união de facto é realizada, mormente, através da acção especial de divisão de coisa comum (artigos 1412 e 1413 do Código Civil) que, nos termos do artigo artigo 1052 do CPC, segue a forma de processo especial. Por sua vez, o reconhecimento judicial da existência ou cessação da união de facto segue a forma de processo comum (n.º 2 do artigo 460 do CPC).
É proibido cumular esses dois tipos de processos (especial e comum) da mesma forma que se proíbe a cumulação da acção de divórcio litigioso com a acção destinada a partilha de bens do casamento que se pretende pôr fim através do antedito divórcio.
A propósito, refere ABÍLIO NETO (sic): «é doutrina dominante ser a coligação admissível quando a diversidade de forma de processo, derivada unicamente do valor, se verifique entre acções de processo comum ordinário e sumário. Já a cumulação não será possível entre acções especiais, nem entre estas e acções com processo comum» (In Código de Processo Civil, reimpressão, Almedina, Coimbra, 1994, p. 65)
Ora, o processo pode ser comum ou especial (n.º 1 do artigo 460 do CPC) e, por sua vez, o processo comum é ordinário e sumário (n.º 1 do artigo 461 do CPC). O processo especial aplica-se aos casos expressamente designados na lei; o processo comum é aplicável a todos os casos a que não corresponda processo especial (n.º 2 do artigo 461 CPC).
O que é cumulável são acções de processo comum (ordinários com sumários), mas nunca se pode cumular processo especial com processo comum, pois cada processo especial tem a índole de forma excepcional de processar, contraproposta à forma comum. Noutros termos: cada processo especial é único e, em confronto com o processo comum, uma excepção à regra.
Uma nota final relativamente as uniões de facto já constituídas e as uniões de facto iniciadas na vigência da ALF:
Nos termos preceituados da NLF, ficam salvaguardados os efeitos das uniões de facto que, à data da entrada em vigor da NLF, já preenchiam os pressupostos de relevância previstos na ALF, ou seja, aquelas relações que já se tinham constituído com carácter estável e duradouro, em comunhão plena de vida pelo período de tempo superior a um ano sem interrupção.
Por sua vez, e sentido oposto, a NLF é imediatamente aplicável às relações que à data da sua entrada em vigor não preencham os requisitos de relevância como uniões de facto previstos na ALF, o que equivale dizer que todos os casais que já residem juntos à altura da entrada da NLF, mas que não tenham perfeito um ano ininterrupto de convivência mútua, só se considerarão unidos de facto após perfazerem três anos de comunhão plena.
Advogado
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