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“O nosso cinema tem de sair da situação de mendicidade”

A produção de um filme é sempre uma grande preocupação para os cineastas dos PALOP. E busca do financiamento está no topo dessas preocupações. Para Zezé Gamboa, a falta de vontade política na África subsaariana é dos grandes factores que conduz os realizadores a uma situação de mendicidade. Por isso, o cineasta angolano, autor de O grande kilapy, defende, nesta entrevista, que é chegada a altura de os governos investirem na sétima arte.

 

Maputo tem organizado mostras de cinema com filmes de realizadores africanos. Qual é a importância deste tipo de iniciativa para si?

Logo à partida, a grande importância disso reside na circulação de filmes, porque nós nos conhecemos muito pouco em África. E acho que as mostras que acontecem em Maputo seriam ainda mais impactantes se passassem em outros países de língua portuguesa.

 

Quais são as dificuldades que limitam a circulação de mostras de cinema entre os PALOP?

Organizar uma mostra não é assim tão fácil. É preciso que haja uma logística para o efeito e apoios que garantam a aquisição dos filmes e a participação dos cineastas.

 

Na última mostra que passou no Scala, os filmes foram todos financiados pela União Europeia. Ou seja, nenhum realizador dos PALOP e Timor Leste teve (apenas) um suporte de uma entidade nacional. O que isto quer dizer?

Quer dizer que os nossos países devem se preocupar mais com a cultura e com o cinema. É muito importante que os nossos países tenham uma vontade política e uma atitude pro-activa em relação aos nossos cinemas. Nós vamos tentando sempre ter apoios no estrangeiro. Isto é, o filme tem uma identidade nacional, mas nunca o cunho financeiro é dos nossos países.

 

Nos últimos dois anos, Moçambique produziu quatro filmes, o que se considera muito bom. Com estes números, será possível que Moçambique e Angola, realidades com as mesmas dificuldades, conseguiam competir com países como Senegal, Burquina Faso ou Nigéria?

É complicado. No cinema, quanto mais produzes, maior é a possibilidade de teres qualidade. Por exemplo, Bollywood faz mil filmes por ano, e apenas 40 ou 50 é que são bons. A Hollywood produz por aí 450, 500 ou 600 filmes ao ano e serão mais ou menos 40 ou 50 bons. Portanto, fazer quatro filmes com as dificuldades que se fizeram, já é louvável e quase heroico. Agora, o que é importante é haver continuidade de trabalho. Em Angola, por aí em 2004, conseguimos produzir uns três filmes em pouco tempo. Mas e depois? Essa é a grande questão, até porque sempre vai surgindo uma nova geração de cineastas que também precisa de apoio. Portanto, vamos produzindo filmes como se pode, mas esta não é uma situação recomendável, pois estamos sempre dependentes dos outros. Sempre começamos a ter apoio de fora, o que coloca o nosso cinema numa situação de mendicidade, e uma das coisas que contribuem para que assim seja é que as leis não saem do papel nos nossos países.

Por que passam os realizadores mais novos, se mesmo para os cineastas como Zezé Gamboa ou Sol de Carvalho a situação é difícil?

É muito complicado para eles. A malta nova aguenta com muita coragem e com muitos sacrifícios que lhe é imposta.

 

As dificuldades que os cineastas jovens têm, nos PALOP, são as mesmas que teve a geração de Zezé Gamboa há 30 anos?

Não. Aí há um factor que difere tudo. Há 30 anos, e mesmo há 15 anos, havia um país que apoiava muito o cinema africano: a França, que abria muitos concursos para apoiar os cineastas africanos. Isso acabou e as dificuldades aumentaram. Depois de acabarem com esses concursos, eles criaram um fundo em que colocam eu, Licínio, João Ribeiro, e etc., a competir com grandes realizadores franceses. Ou seja, os trocos de 250 mil euros, que para nós já ajudaria muito, os consagrados vão buscar. E aquilo que eles precisam para tomar um champanhe, é o que nós necessitamos para fazer o nosso trabalho. Portanto, a lógica mudou.

 

A entrada da União Europeia não suplanta, digamos, essa “retirada” da França?

Não, porque os concursos da União Europeia não são anuais. E os concursos da União para o cinema estão fechados há três ou quatro anos. É muito tempo. Enquanto o da França era anualmente. E mais, os países francófonos, mesmo com as mesmas dificuldades sociais que nós, os PALOP, estão muito à frente porque a França sente-se na obrigação de continuar a apoiar, ainda que muito menos. Além disso, no Senegal, por exemplo, o governo criou um fundo de 3 milhões de dólares para o cinema. Esse é um valor de base, que permite os cineastas senegaleses começarem a trabalhar. Ou seja, as antigas colónias francesas em África perceberam que a França está a fechar-se e estão a criar condições que potenciem instituições nacionais ligadas, no caso, ao cinema. Por exemplo, Burquina Faso é pobre, mas tem fundo para o cinema. Mesmo o Quénia, aqui perto, também tem, creio, 2 milhões de dólares. Não é muito, mas é alguma coisa. Nos nossos países (PALOP), nem isso há.

 

Mas temos condições nos nossos países de apoiar o cinema de modo que os cineastas não recorram a fundos estrangeiros?

O problema aqui é um: vontade política. Se houver vontade política, fecham-se os filmes. Se não houver, a questão primária continuará a ser: “não há dinheiro”.

 

Mas temos condições financeiras, na sua opinião?

Sim, temos. Até porque quando pedimos dinheiro fala-se muito da Educação e Saúde, mas sabemos que esses sectores não melhoram… Para mim, a Educação e a Saúde são, de facto, dos sectores mais importantes de um país. Ma se não melhoram, não entendo por que não se financia o cinema. Outra coisa, se formos a ver, o reconhecimento dos nossos países, através do cinema, é mais eficaz do que através da Saúde. Não vejo os nossos médicos super conhecidos no mundo. Mas vejo a malta das letras e do cinema. Portanto, há um problema e o problema, volto a dizer, é vontade política. É preciso investirmos na Cultura e na Educação.

 

Já agora, como é esta coisa de contar a história do seu país a partir da ficção? Estou a pensar em O grande kilapy.

De facto essa história é verdadeira. Mais tarde eu encontrei o verdadeiro João, retratado no filme, e colhi as peripécias dele e de pessoas amigas. Depois dessa pesquisa surgiram os elementos para o guião.

 

Os seus filmes têm a particularidade de contar com participação de artistas de vários países. Por exemplo, em O grande kilapy estão Luís Carlos Patraquim (guião) e o actor Alberto Magassela. O que explica?

Acho isso muito mais interessante do que fazer um filme apenas com angolanos. Com pessoas de várias nacionalidades tenho mais possibilidade de aprender e isso é uma experiência boa. Gosto desse laboratório linguístico proveniente de diferentes geografias. É complementar.

 

Consigo, como acontece a selecção dos actores com os quais trabalha?

Há um feeling dentro de mim que me ajuda a perceber quem pode fazer bem determinados papeis. Claro, depois há um casting que é definitivo. No caso de Lázaro Ramos até foi diferente. Eu não o conhecia na altura em que estava a trabalhar para o Kilapy. Uma amiga minha disse-me que conhecia alguém que faria bem o papel de protagonista. Vi umas coisas dele e aí não saiu mais da minha cabeça.

 

Ele enquadrou-se com facilidade?

Com facilidade não, que ele é de uma cultura diferente. Tivemos de o orientar. Mas os bons actores como ele são inteligentes e conseguem mergulhar no universo que lhes é dado com muita naturalidade.

 

E tiveram de trabalhar o sotaque dele…

Sim, embora não tenha ficado bem do jeito que eu queria. Nesse tipo de casos, os americanos colocam o actor a trabalhar o sotaque com alguém uns três meses antes do filme começar. Infelizmente não foi o nosso caso. Foi um problema de produção.

 

Quais são as suas grandes preocupações cinematográficas?

Primeiro, a minha preocupação é fazer um grande filme e, depois, lutar para que vá a um grande festival de classe A, porque a partir daí sempre se consegue grandes voos. E eu consegui isso. Levei o filme ao Festival de Toronto.

 

Sugestões artísticas para os leitores do jornal O País?

Sugiro a obra de Mia Couto e de Paulo Flores.

 

 

 

 

 

 

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