Dentre vários pressupostos, a coragem é imprescindível para ser um ateu. A condição do ateu é mais do que a de um filho que ousa viver livre das rédeas do seu pai, pois pelo menos este filho aceita a existência do seu progenitor, mesmo buscando a sua independência.
Um ateu é um indivíduo que não só se rebela contra o controlo de um suposto pai como também não lhe reconhece a sua existência. Sendo assim, ele e mais ninguém assume a responsabilidade por todas as vicissitudes da vida. As dores e os prazeres do mundo são compartilhados e suportados entre indivíduos ateus sem mediação dos seres sobrenaturais. Nem Deus nem o diabo tomam responsabilidade pelas coisas que acontecem ao homem, quando o mundo é só dos ateus.
O desafio que se coloca perante estes homens está em eles serem seus próprios anjos e demónios, cientes de que a degeneração ou regeneração do mundo está em total dependência dos seus actos. Querendo, eles podem ser fabricadores do seu próprio paraíso, do seu próprio inferno ou do seu próprio apocalipse. Eles têm a chave que escapou entre os dedos de um deus inexistente. A escolha é, ao mesmo tempo, tão livre quanto pesada, pois toda a sua sustentabilidade obriga exclusivamente a força humana.
A reza de um ateu não é de quem pede que seja feita a Sua vontade, mas de quem deseja que o seu plano se concretize, tendo em conta que o seu sucesso e fracasso recaem sobre ele e sobre outros homens que coabitam o mesmo espaço. Quando se tem de pensar como um ateu, uma das questões sérias a considerar é “como seria o mundo, se os homens tivessem de viver entre eles sem nenhuma influência sobrenatural em suas vidas?” a resposta é dependente do tipo do compromisso que o homem ateu mantiver com o mundo. Se o compromisso for de instrumentalizar o mundo para satisfação do seu ego, então os homens estarão num mundo aos cuidados de um ateu nihilista.
E o que acontece com um ateu nihilista é que a sua responsabilidade para com o mundo é tudo menos moral. Um mundo sem princípios morais é um mundo que se projecta além do bem e do mal. Sendo assim, o que pode haver entre homens é um retrocesso ao estado natural onde a lei da força e o despotismo imperam as relações humanas. Mas, doutro lado, se houver um compromisso de reeducar o mundo na base dos princípios da razão, os homens estarão a construir uma era neo-iluminista cujos representantes são ateus humanistas – aqueles que entendem que a regeneração do homem não depende de uma causa sobrenatural, mas de um esforço humano em cooperação com outros seres humanos. Dai que a necessidade prioritária para um mundo cada vez mais benevolente seja um modelo de educação capaz de enaltecer valores que promovem a integração dos indivíduos na mesma esfera de convivência e a pacificação das relações interpessoais.
A ideia de que Deus não existe, para os ateus humanistas, constitui-se numa declaração de que no mundo não há outros anjos senão os próprios homens a quem cabe o inteiro dever de tomarem conta um dos outros.
Diferente de um mundo dos teístas onde a pratica do bem é a mando de um Deus que ora pune ora recompensa, o mundo dos ateus o bem é feito em nome do bem. Pelo menos, o ateu não espera que um ser sobrenatural lhe diga o que é certo e o que é errado, ele o faz por estar consciente do seu valor. O ateu tão pouco precisa de Deus para perceber que ajudar alguém a prosperar é melhor que o prejudicar e quanto mais sofrimento o homem passa, maior é a tendência de tornar-se desumano. Tudo quanto ele precisa para melhorar a condição humana é da razão e sensibilidade.
Em contrapartida, os religiosos tudo quanto precisam é da aprovação divina. Pouco tempo eles têm se dado a si mesmo para reflectir sobre as suas acções desde que estas cumpram com os mandamentos divinos. Os actos dos homens em quanto crentes nem podem ser qualificados de morais, como bem observou Kant, porquanto não têm como princípio a liberdade, mas a obediência a um ser divino que ameaça punir com o inferno ou recompensar com o paraíso. Então, que se diga que ser ateu é, de certa forma, uma predisposição para adorar a razão, pois na ausência da luz divina, não há outra melhor fonte de guia ao homem além da luz racional.
Ainda que soe a um chamamento ao iluminismo, afigura-se que se o mundo tivesse mais homens que olhassem para vida como um quebra-cabeça solúvel por meio da razão, este mundo tornava-se mais responsável. Ou seja, há mais preguiça ou indiferença para com o mundo da parte dos homens que creem num deus protecionista, omnipresente e omnisciente. Tal disposição espiritual desses homens justifica-se, quando antes um mundo caindo aos pedaços, alguém se pergunta por quê se preocupar em remediar, enquanto existe um deus todo-poderoso que querendo, num estalar de dedos, tudo volta a estar são e salvo.
Aquele que discordar de que crendo num Deus todo poderoso e protecionista não faz dos homens preguiçosos e, ou, indiferentes, ao menos será obrigado a admitir que se, de facto, existem anjos cuja missão é executar a vontade de Deus aqui na terra, então estes anjos são os próprios homens para que, após a vida, faça sentido serem conduzidos ao purgatório. É tão pouco convincente que Deus todo poderoso disponha de legiões para tomar conta do mundo, mas ao mesmo tempo exija que homens prestem contas sobre sua responsabilidade no cuidado do mundo. Ou Deus tem os homens a quem confia esta responsabilidade de cuidar o mundo ou Ele tem anjos que o devem fazer.
A pergunta metafísica mais substancial é o porquê das atrocidades em vidas inocentes quando existe um Deus todo-poderoso e justo capaz de dissipar o mal num estalar de dedos. Será que ele não se importa com a humanidade? Será a sua legião fraca? Ou será que nós, homens, ainda não conquistamos a consciência de que somos os únicos anjos que existem na face da terra e, por conseguinte, cabe a nós protegermos o mundo? Seja como for, o mais sensato que se pode esperar de um ateu é que ele seja responsável pelo mundo pela razão suficiente de ele não crer na existência dum ser sobrenatural capaz de proteger-lhe o mundo.
Se o ateu não crê num Deus que protege o mundo, então quem ele espera que tome conta do mundo, senão ele mesmo? Se ele se recusa a cuidar do mundo, que sentido da vida ele busca num mundo do qual ele não quer tomar parte?! Partindo da declaração de Nietzsche de que Deus está morto e foi o seu amor pelos homens que O matou, então, os homens deviam permitir-se uma morte nobre à semelhança de Deus: morrer pelo mundo – a sua genuína invenção.
Hélder Augusto
O Inconvencional