Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara!
in Ensaio sobre a cegueira, José Saramago.
Quanto mais me aproximava, mais tudo ao redor se desvanecia. Era como se só nós dois existíssemos, presos em diálogo silencioso e misterioso. Senti uma presença que me puxava, uma força invisível que me mantinha atenta como se quisesse me contar algo. Eu não sabia o que estava prestes a descobrir, Eu não sabia o que aquele momento traria. O que eu sabia, porém, é que aquilo exigia meu olhar.
“Eu não sabia”! Este é o título da obra que agora ocupa a minha mente, desafiando-me a descobrir o que, afinal, eu ainda não sei!
Ao primeiro aspecto, o quadro de Titos Mucavele exibe uma verticalidade notável, em que as figuras dominam o espaço central e a composição parece compacta, como se a própria textura do quadro pressionasse as figuras para dentro de si.
Afinal, o que elas “não sabiam”? Talvez não soubessem o peso de carregar o desconhecido ou a falta de compreensão sobre as forças que moldam suas vidas.
Mucavele faz uso de uma paleta que combina tons terrosos e metálicos, entrelaçados com rosas pálidas e vermelhas, que surgem nos corpos das figuras. Esses tons rosados, que predominam nos corpos, suscitam uma sensação de fragilidade, como se a pele das personagens estivesse exposta ou ferida. É uma cor que remete à carne viva, ao sangue sob a pele, à própria essência da vida que pulsa por baixo da superfície. Por outro lado, a textura áspera do fundo da obra, de tons cinzas, sombreados e verdes sujos que envolvem as figuras formam um cenário quase sufocante, como se o ambiente ao redor delas estivesse comprimido, sem luz ou ar, enfatizando uma ideia de peso emocional. Por conseguinte, a oposição entre essas cores, isto é, rosa que sugere vida e cinza que sugere desgaste, gera uma tensão cromática que reflecte o estado emocional das imagens.
O pintor trabalha com um estilo muito expressionista, com uma tendência à deformação das figuras, não para afastar o espectador da humanidade das personagens, mas, sim, para intensificar a força emotiva.
Esse uso da deformação, com cabeças alongadas, pescoços finos e corpos estendidos, gera uma dissonância visual que nos faz perceber as personagens como figuras que carregam um fardo existencial pesado.
Ora, o vaso presente nas mãos de uma das figuras é outro aspecto com forte conotação. Na história da arte, vasos são frequentemente associados a símbolos femininos de nutrição, fertilidade e preservação.
Aqui, o vaso pode ser interpretado como um recipiente de memórias, segredos ou responsabilidades que a mulher carrega consigo, sem plena consciência de seu conteúdo.
No entanto, o gesto das mãos das duas figuras é suave, mas também possui uma firmeza inquieta. As mãos se tocam de forma que não se sabe ao certo se é um gesto de apoio ou de controlo. Será que uma das figuras tenta evitar que a outra derrame os segredos contidos no jarro?
Ou será que, ao contrário, a figura que segura o jarro é quem precisa de apoio para carregar esse fardo?
Esse gesto ambíguo entre as duas personagens nos faz questionar a natureza dos seus laços e o que realmente significa não saber, talvez ambas não saibam, mas a sensação de ignorância compartilhada cria uma dependência mútua, onde uma apoia a outra nesse estado de desconhecimento.
Adicionalmente, os cabelos dessas figuras não são apenas um adorno, mas revelam um diálogo oculto. O formato quase espinhoso, com pontas erectas e angulosas, pode simbolizar a rigidez ou a adaptação necessária para sobreviver em um ambiente hostil.
Os olhos semicerrados, que quase se fecham, parecem indicar uma rejeição ao que está diante delas, ou uma aceitação relutante do que não se pode mudar. Esses corpos “não sabem” porque não podem ou não querem ver o que as rodeia, ou seja, a sua alienação é tanto uma defesa quanto uma prisão. A maneira como os corpos se fundem em apoio sugere um vínculo inquebrável entre elas.
O uso da luz e da sombra é subtil, porém eficaz. As imagens emergem de um fundo sombrio e indefinido, como se fossem reveladas à medida que a luz as toca. A iluminação, não naturalista, mas simbólica, parece emanar de dentro, especialmente nos rostos, sugerindo uma energia em processo de manifestação.
Essa luz interna é um reflexo da complexa realidade do posto administrativo de Namanhumbir, no distrito de Montepuez, Sul de Cabo Delgado, onde a exploração de rubis deveria iluminar o caminho para o desenvolvimento comunitário. No entanto, o brilho prometido não se concretiza, pois os 2.75% das receitas destinadas aos projectos de desenvolvimento permanecem ausentes.
Assim, a promessa de progresso, que deveria ascender das sombras da exploração mineral, revela um panorama de optimismo não realizado, onde a luz inspiradora parece falhar em alcançar a verdadeira transformação esperada pela comunidade.
Eu não sabia que com óleo sobre tela, de 40×60 cm (2021), era possível transmitir tanta informação em um só quadro.
O trabalho de Titos Mucavele, que integra a exposição colectiva intitulada “Horizontes partilhados e múltiplos olhares”, na Fundação Fernando Leite Couto, até 4 de Outubro, exemplifica como a arte pode revelar dimensões significativas e provocar reflexão social.
Juntamente com obras dos artistas plásticos Famós, Júlio Xirinda, Markos P’Fuka, Pekiwa e Saranga, este quadro não só enriquece a nossa compreensão sobre a condição humana, mas também destaca a diversidade e a envergadura das perspectivas artísticas contemporâneas. Portanto, o impacto do quadro, e da exposição como um todo, é a capacidade de convidar o espectador a explorar novas formas de percepção e a reconhecer a arte como um meio vital para a comunicação e o diálogo. Com efeito, se retém que uma única obra pode oferecer um espelho para os níveis de vivência humana e expandir nossa visão.
Eu não sabia! E agora eu sei!