Linda é a mulher e o seu canto, ambos guardados no luar
Cecília Meireles
Leitmotiv é um termo alemão, que, ao nível literário, designa “motivos centrais que se repetem numa obra, ou na totalidade da obra, de um poeta” (Wolfgang Kayser, 1958). Entretanto, de acordo com Massaud Moisés (1974), “a recorrência de um objecto no decurso de uma obra não constitui, por si só, um leitmotiv: para sê-lo, é preciso que o reaparecimento envolva uma significação especial”. Em Os poros da concha, de Sangare Okapi, temos no “corpo” e no que o envolve, os motivos, os temas ou fundamentos primários do que norteiam o espírito do poeta, transformado nessas entidades intangíveis, ora alimentadas de ambiguidade, nos versos, ora de sugestões polissémicas.
Diríamos que este livro, como é habitual em Okapi – veja-se, por exemplo, Inventários de angústias ou apoteose do nada –, o poeta segue uma trajectória linear, paradoxalmente, com percursos paralelos, no qual avança sempre recuperando o que já foi dito nos versos anteriores. Estamos a querer destacar, neste Os poros da concha, a prevalência da repetição quase constante da palavra, todavia, não como pretexto para gerar a anáfora. Não. A repetição em causa surge como forma de garantir a abundância de uma série de imagens que dão azo à manifestação espontânea dos sujeitos de enunciação. E como se impõe na lírica, a expressão de sentimentos cor-de-rosa é uma realidade, no caso, a fundir-se com observações, às vezes, carnais, de quem pensa mediante o que os olhos captam. Na repetição a que nos referimos cabem termos como: corpo, voz, lábios, língua, pele, coxas. Nada acidental. Bem visto, aquelas são sugestões do que realmente importa: a contínua inserção de uma imagem que se sabe completa, da mulher, mas projectada aos fragmentos, talvez numa tentativa de se evitar protótipos pré-estabelecidos quanto à caracterização dessa musa inspiradora.
Portanto, o facto deste livro ter no “corpo”, nas suas alusões e circunstâncias, um leitmotiv desvenda, pelo menos, uma atmosfera da qual emana o poder criativo de Sangare Okapi, um poeta, aqui, com muito cuidado no processo de lapidar a palavra e com mais cuidado ainda na sua combinação.
Os poros da concha é um bom livro do ponto de vista do rigor vocabulário. Por isso, o poeta consegue sugerir situações eróticas sem baixar o nível da linguagem ou sem dizer o que é bom de imaginar: “estirpe e tese teu corpo/ alguma realidade oculta/ ou doce vagem insepulta// à vista apetecível o ninho/ na blusa lis em desalinho” (p. 29). Onze páginas antes, encontramos o seguinte texto: “atalhados sentidos na erecção do caule// maduro o fruto adocicado entre as coxas/ ou húmido o musgo na bexiga que a mão/ te alcança nua e secretamente vegetal” (p. 18). Erecção, caule, frutos e coxas são palavras agradáveis de ler neste livro constituído por 54 páginas. Há também o peito, os seios: “como o antílope pulando na savana rubra/ vejo-te os seios rijos no peito convidando/ a fome apetecida e excelsa sem candonga (p. 52).
Com efeito, há neste livro sujeitos muito sensitivos quanto à visão, que recorrem sempre ao meio ambiente, quando estão a emitir desejos e fantasias. Vejamos o seguinte poema: “quero a gruta mítica do corpo/ com seus escuros e vibrações/ para que arguta e nua no topo” (p. 27). Tal evento resulta na materialização da comparação enquanto recurso estilístico. Ao recorrer à natureza vegetal, animal, ao mar, ao sol, etc., Sangare Okapi goza em ser um poeta-ambientalista, enlevando a sua poesia à dimensão adulta, madura de facto. Mas, com isso, perde o efeito Camões, naquele emblemático poema “amor é fogo que arde sem se viver”.
Título: Os poros da concha
Autor: Sangare Okapi
Editora: Cavalo do Mar
Classificação: 14