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O jardim dos caminhos que se bifurcam*

Muita da pintura abstracta é, de facto, pintura literária, a expressão de ideias.

in Um mundo de estranhos, Nadine Gordimer.

 

Os artistas plásticos têm a particularidade de exprimir em imagens o que, eventualmente, é redutor em palavras. Nos movimentos tácitos do pincel, o pintor esmera-se em alcançar uma harmonia demiúrgica, geralmente, a condizer com um estado emotivo: pretendido ou sugerido. Com efeito, entre o vazio e o absoluto, a ideia e a finalidade, denota-se, no campo visual, a representação pessoal das condições do inconsciente expresso simbolicamente, o que em Jung se resume a uma palavra: sonho.

No universo das cores esteticamente concebidas, parafraseando Adler, as funções primordiais do sonho incluem pensamento e sensação, claro está, transbordando sentidos como analogia da vida. Quer dizer, ao contrário do que Freud diria, o sonho não é absolutamente egoísta, mas profunda partilha (às vezes) experimentalista do estado da alma. Categoricamente, é nessa concepção que Languana situa a sua oficina, enquanto dimensão intangível do corpo e do mensurável.

Na sua mais recente individual de pintura, exposta na Galeria da Fundação Fernando Leite Couto, o artista realça que o seu “jardim dos caminhos que se bifurcam é a imagem incompleta, mas não falsa”* da existência. Na verdade, o jardim languaniano é a metonímia inversa de um mundo em convulsão, um lugar de pretensas animosidades políticas, ideológicas, económicas e culturais. Tendo em consideração um contexto adverso, depois da individual Conversando com o silêncio, novamente, Languana pinta, mais ou menos como Génesis procede com o Éden, uma dimensão degradante, mas subvertendo-a de conteúdo.

Nas suas representações, esquivando-se do horror e de todos níveis de indecência, da miséria, da leviandade e da consternação, o autor elege o Homem e a geográfica como fragmentos de uma narrativa escassa: na forma e no procedimento.

Dito de outro modo, Languana põe a rosa no lugar da arma, a sensualidade na ganância, a nudez na imperfeição e a infância no caos, até porque Nadine Gordimer prevê: “os psicólogos dizem que as brincadeiras das crianças são um longo ensaio para a vida”.

A partir dos seus Jardins de sonhos, o artista fixa projectos sintécticos sobre as coisas que realmente importam, intersectando, em geral, a abstracção das suas aguarelas sobre papel e a realidade envolvente. No seu conjunto, telas como “Esmola”, “Encontro de compadres”, “Todos de costas voltadas” e “A cadeira de leite e mel” reflectem o misticismo de um povo tradicional-animista, que encara a razão e a crença no mesmo nível de complementaridade.

Não obstante as frivolidades de algumas molduras, nas escolhas técnicas do tipo de material e nos acabamentos, às vezes com o papel mal esticado, Jardins de sonhos apresenta um autor sensível à configuração de um ecossistema suportado pelos distintos anseios do Homem. Com a excepção dos jogos de equilíbrio igualmente sustentados pelo carácter narrativo das telas, em Languana nada é total. Ao artista importa mais sugerir, com a coerência daí resultante, do que definir. Quiçá por isso, em algumas ocasiões, nota-se uma vaga de substâncias que, aparentemente, se consolida com tinta-da-china e com técnica mista. Nesses casos, a cor, enquanto elemento vibrante, desaparece. Há-de ser por essa razão que as telas “Cão de guia”, “Apocalipse”, “Brincadeira de criança” instauram uma atmosfera melancólica, em que a incerteza relativamente ao futuro das figurações é dominante. Naquelas três telas a preto e banco, Languana, como Amin Maalouf, parece subscrever que “o homem é tão vulnerável perante o Destino que mais não pode do que ligar-se a objectos rodeados de mistério”.

Finalmente, nas suas variadas estruturas e proporções, com ou sem mistérios, as obras de Languana são bifurcações do ser colectivo, a textura de um fiel jardineiro que, em silêncio, encontra nas artes plásticas a particularidade de intervir no seu território físico. Para o efeito, o artista inventa flores, fragmenta e distorce, recria e modifica, propondo, assim, uma realidade consentida e inadiável.

 

Título da exposição: Jardins de sonhos

Autor: Languana

Galeria: Fundação Fernando Leite Couto

Classificação: 17

 

* Título e excerto original de Jorge Luís Borges, in Ficções.

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