Dizem os antigos: quem não sabe onde começou, também não sabe onde parar. E hoje decidi reflectir sobre muito daquilo que nos corrói por dentro — em cada esquina, em cada bairro, nas famílias, universidades, parlamentos, igrejas, conselhos municipais e até nas academias: a mediocridade.
Terão que me perdoar por longo texto, mas devemos escrever. Mas antes de filosofar bonito, vamos ao princípio. No tempo dos mais-velhos kwiyanga, chamava-se ntumuwa — aquele que andava sempre atrás dos outros, sem coragem de pensar com a própria cabeça. Era o que repetia o chefe, seguia a multidão, obedecia sem questionar. Medíocre é aquele que ocupa espaço, mas não exerce pensamento.
A palavra vem do latim medíocres, que significa “aquele que está no meio”. Não o meio como ponto de equilíbrio, mas como limbo — onde não se cresce, nem se desaparece. É o espaço da indecisão, da covardia intelectual, da falta de ousadia. A mediocridade é o confortável raso: sabe-se um pouco de tudo, mas nada em profundidade. Lê-se o título, mas nunca o conteúdo.
Fala-se o que se ouviu, nunca o que se pensou. A mediocridade, dizia Nietzsche, é a mais confortável das virtudes burguesas: acomoda-se no consenso, evita o desconforto do pensamento e se alimenta da vulgaridade colectiva. Moçambique, desde a sua independência, fez da mediocridade o seu principal projecto nacional. Não por acidente — por desenho.
É preciso definir a mediocridade não é ausência de talento. É o triunfo da preguiça mental, da incompetência assumida e do hábito de manter tudo abaixo do nível mínimo de dignidade
intelectual e moral. É o elogio do básico, a celebração do irrelevante, a consagração do vazio.
Quando a Frelimo tomou o poder, em 1975, havia duas possibilidades: fundar um país de excelência ou estabelecer um território de conveniência. Preferiram a segunda. Deram-se o direito de reescrever a história, de sufocar o dissenso e de forjar uma cultura nacional onde discordar é crime, pensar é perigoso e questionar é traição.
Transformaram o país num grande quartel ideológico onde a única coisa obrigatória era a obediência e a única virtude permitida era a mediocridade partidária. O intelectual virou inimigo, o questionador tornou-se traidor e o talentoso foi exilado. Amílcar Cabral já advertira:
“Nenhum povo se liberta se não libertar antes a sua cultura”, Moçambique não libertou. Pelo contrário, prendeu-a. Colonizou-a com slogans, bandeiras e discursos vazios. A Frelimo criou uma estética do medo e da submissão, onde se promovia o mais fiel e se silenciava o mais lúcido. A mediocridade tem raízes antigas. No tempo colonial, o “bom negro” era o que obedecia, calava e não fazia perguntas difíceis. O que apanhava num dia e voltava a trabalhar no outro. A obediência cega virou moeda de valor. E mesmo após a independência, os donos do poder mudaram, mas a lógica ficou: quem pensa é perigoso, quem questiona é inimigo. A mediocridade passou a ser aliada do poder.
Em 1975, a juventude tinha voz, marchava, exigia. Foram domesticados. O partido ocupou a
OJM, e para mulheres OMM, destruiu os grêmios literários e marginalizou jovens críticos.
Hoje, os jovens só se importam com festa, álcool (xhovaxongo) e fama no TikTok.
Mediocridade assumida e promovida com sucesso. O Estado investe mais em festas da juventude do sistema OJM e OMM do que em bibliotecas. Vejam só, antes às igrejas denunciavam injustiças. Na pós-independência foram perseguidas, igrejas fechadas, líderes presos. Depois reabilitadas, mas compradas. Hoje nos neocolonias são empresas de lucro, cúmplices do poder. Os pastores, padres e bispos tornaram-se aliados da mediocridade política.
Vendem esperança enquanto o povo morre na miséria.
A política moçambicana é um relicário de vaidades e um museu de impostores. Desde 1975,
este país foi entregue nas mãos de uma elite partidária que se auto-intitulou dona da libertação nacional, como se o povo moçambicano fosse apenas espectador da sua própria história. A Frelimo — esse nome que ocupa todos os corredores do poder — não se contentou em libertar o território; quis libertar também as consciências, padronizar os pensamentos e monopolizar o discurso patriótico. Criou-se a ideia de que questionar o partido era trair a pátria. Quem ousasse discordar não era adversário político — era inimigo da nação.
Os camaradas fundaram uma cultura de medo e de intimidação social. Instalaram nas aldeias, nos bairros e nas instituições públicas a vigilância mútua. Os vizinhos se espionavam, os colegas se denunciavam, os familiares se calavam. Até hoje, basta alguém levantar a hipótese de refundar o Estado ou de criar uma nova ordem política e logo ouve: “Isso é perigoso, camarada.
Deixe essas ideias, pode desaparecer…” E assim, não se tenta nada. Não se sonha com outra Constituição, não se propõe outro modelo de governo, não se refundam instituições. A cultura do medo virou religião civil. O discurso político oficial se repete desde 1975: “Nós, os
libertadores, fizemos a revolução, trouxemos a paz, construímos a unidade nacional.” Mas que unidade é essa? Que paz é essa? Que revolução continua a ser essa? A paz de Moçambique é de cemitério. A unidade é de obediência. E a revolução virou expediente para manutenção de privilégios.
A política tornou-se refém de veteranos e filhos de veteranos. O poder circula num pequeno clube de apelidos sagrados. As eleições são formalidades. Os candidatos da oposição são tolerados como figurantes para validar um jogo já decidido. E o povo, reduzido a plateia silenciosa, é chamado de patriota quando obedece e de divisionista quando contesta. Quem fala de mudança é rotulado de radical. Quem pede auditoria é subversivo. Quem sonha com uma nova independência mental é imediatamente acusado de conspirar com estrangeiros.
Moçambique vive hoje uma ditadura velada onde a mediocridade reina porque é funcional. O
líder medíocre não ameaça o status quo, não questiona as ordens superiores, não reivindica
autonomia. Por isso, os cargos públicos são ocupados por incompetentes, bajuladores e corruptos sem escrúpulos. E quem governa o país há 49 anos não tem nenhum interesse em refundar nada. Porque refundar o Estado significaria renunciar ao privilégio, ao poder absoluto e à narrativa única. E isso, eles não admitem. A cultura do medo sobrevive porque as instituições servem ao partido, e não ao Estado. A polícia protege o camarada, não o cidadão. Os tribunais julgam com base em ordens, não em leis. As assembleias de deputados existem para aplaudir, não para fiscalizar. O Estado moçambicano é, portanto, um condomínio de mediocridade politicamente conveniente. Um projecto de manutenção da estupidez colectiva, onde a ignorância é promovida a doutrina e o medo, a política de Estado.
Desde a independência, a segurança nacional nunca foi pensada como protecção do cidadão, mas como proteção do partido no poder. O Ministério do Interior e os Serviços de Segurança do Estado (hoje SERNIC, outrora SNASP) foram desenhados para vigiar, perseguir, intimidar e anular qualquer tentativa de divergência política ou social. A cultura do medo foi institucionalizada. Havia delatores em todos os bairros, nas igrejas, nas escolas e nos locais de trabalho. As pessoas foram educadas a não confiar umas nas outras, a desconfiar até do próprio irmão. O camarada-presidente era sacralizado, e o Estado confundido com a pessoa de Samora, depois com Chissano, depois com Guebuza, depois com Nyusi, e com Chapo. Seguindo com os ditos generais mornos, ministros e outros caducos infiltrados de dirigentes que lesa a pátria. Como dizia Foucault, onde há poder, há resistência. Mas onde há mediocridade, há medo institucionalizado. As leis, por sua vez, nunca foram feitas para organizar a convivência social, mas para legitimar os caprichos do partido no poder. A Constituição da República é usada conforme a conveniência do dia. Quando convém, ela protege direitos; quando incomoda, é ignorada, reinterpretada ou violentada.
O Judiciário moçambicano tornou-se, desde a independência, uma extensão da vontade política do Executivo. Os tribunais, salvo raras exceções, funcionam como braços armados do regime. Os juízes são indicados pelo próprio poder político e alguns já nem fingem mais neutralidade. As leis protegem os poderosos e oprimem os desobedientes.
Um camponês que rouba uma galinha para alimentar a família pode ser condenado a anos de prisão, enquanto um político que desvia milhões de dólares é tratado com deferência e mantém os seus privilégios intactos. As eleições, desde 1994, não são um exercício de soberania popular, mas uma farsa cronometrada, controlada e fraudada. A Frelimo nunca aceitou a ideia de alternância no poder. Os resultados são cozinhados na CNE, e quem contesta é reprimido, ameaçado ou eliminado. O povo vota, mas não escolhe. As autarquias foram criadas como uma promessa de descentralização, mas na prática funcionam como escritórios locais do partido. Os presidentes dos Conselhos Municipais são escolhidos não pela competência, mas pela fidelidade. Os recursos são centralizados e distribuídos com base em critérios partidários, e as autarquias da oposição são sabotadas desde Maputo. A Segurança Nacional protege mais as elites políticas do que o povo. Os tribunais fazem mais justiça aos ricos do que aos pobres. As eleições mantêm o mesmo partido há 50 anos. As autarquias são controladas como feudos.
E tudo isso é resultado de uma cultura de mediocridade política cultivada desde os tempos de Samora. Quando se misturou partido e Estado, selou-se a tragédia. Hoje, o cidadão moçambicano tem medo de falar, medo de questionar, medo de tentar refundar o país. O Estado tornou-se um condomínio de mediocridade consentida e sustentada por leis feitas à medida dos seus donos. Aquela geração de 1975 descobriu sua missão, mas a traiu ao fundar um Estado que priorizou o controle sobre o bem-estar. E assim seguimos: mediocrizados, anestesiados e domesticados.
Nas aldeias comunais, o primeiro que aprendeu a ler virou sábio, mesmo sem nunca buscar mais conhecimento. Nas igrejas, quem decorava versículos virava pastor ou, até mesmo catequista qualificado e os filhos logo deviam ir na missão dos missionários estudar. Nas cidades, quem falava português “bonito” sem sotaque virava doutor na hora. E o saber virou vaidade, não prática. A educação foi transformada em símbolo de mando, não de libertação. O saber virou repetição, não reflexão. Nas escolas, alunos criativos eram rotulados de “problemáticos, confusos”. Nas famílias, o filho curioso era silenciado. E o país inteiro aprendeu a calar, repetir e não se destacar.
E assim, Moçambique passou a cultivar a mediocridade como única política de Estado. Onde, a mediocridade virou estilo de vida — modus vivendi. Tornou-se cultura, método de sobrevivência, filosofia sem nome. No tempo dos nossos avós, quando se queria dizer que alguém era fraco, dizia-se: “é um homem do meio”. Um ser que não fede nem cheira. Que finge saber, mas teme pensar. Que segue os outros, com medo de traçar o próprio caminho.
A educação em Moçambique sempre foi tratada como arma, nunca como direito. No calor da neo(in)dependência, entre gritos de vitória e hinos revolucionários, prometeram escolas para todos, para “formar homem novo” mas não disseram o que se iria ensinar. A pressa em domesticar mentes foi tanta que preferiram abrir salas de aula com quadros de giz e professores sem preparo, do que permitir que os jovens lessem pensadores livres.
Expulsaram missionários, queimaram livros considerados reacionários, até a filosofia foi removido no sistema educacional, e ensinaram à criança que só há um herói: o camarada Presidente. A escola moçambicana desde 1975 deixou de ser espaço de debate para se tornar oficina de obediência. E partindo daí, deu início a deturbação e invenção da história nacional.
Quem ousava pensar diferente era denunciado como inimigo da revolução. A cultura de pensar foi vista como ameaça. Questionar era crime. Debater, traição. A mediocridade tornou-se celeiro ou seja, método de governo.
A década de 80 fabricou professores que apenas decoravam slogans. A de 90 de segunda república, preparou directores que aprendiam mais política partidária do que pedagogia. Os anos 2000 trouxeram consigo os “canudos de conveniência” — diplomas comprados, teses plagiadas e universidades abertas como padarias. De 2005 a hoje, a educação em Moçambique é um projecto de domesticação, rebotizada, automatizada. Os professores são prisioneiros do medo e do salário, incapazes de educar para a liberdade. Os estudantes são reféns de um currículo obsoleto e desonesto.
O Ministério da Educação e Cultura tornou-se o quartel-general da mediocridade académica. Os livros didáticos continuam cheios de erros, com mais fotos do camarada Presidente do que de filósofos e cientistas. A História contada é uma narrativa controlada. Não há espaço para Fanon, Ngugi wa Thiong’o, Amílcar Cabral ou mesmo Karl Marx em profundidade — só resumos domesticados. Os livros de Filosofia são panfletos ideológicos mal escritos. Os jovens decoram respostas para exames e esquecem tudo no dia seguinte. O ministério que deveria formar pensadores virou o gabinete oficial de distribuição de mediocridade. E os ministros são padrinhos dos presidentes.
As universidades, salvo raríssimas excepções, são fábricas de canudos vazios. A maioria dos estudantes universitários não lê livros completos. Não porque não queiram, mas porque o sistema educacional lhes ensinou desde cedo a odiar o saber. Bibliotecas sem livros. Salas sem debate. Professores que mal sabem o que ensinam mesmo assim, encontram quase esses mesmos professores em todos cantos das instituições do ensino no capital do país. E assim o Estado fabrica seu exército de medíocres obedientes.
No final, a sociedade celebra quem tirou 20 valores decorando fórmulas sem entender nada. E aqueles que ousam fazer perguntas desconfortáveis são perseguidos ou excluídos dos círculos acadêmicos. Mediocridade não é acidente. É projecto. E quem denuncia isso é logo chamado de inimigo da pátria, frustrado ou revoltado. Como se a revolta não fosse o mais sagrado direito do espírito lúcido.
Em Moçambique, o diploma virou certificado de submissão e o título académico, medalha de
mediocridade. Por isso há tantos mestres e doutores incompetentes, incapazes de formular uma ideia original ou de resolver problemas concretos do país. Tornaram-se apenas repetidores de ordens, burocratas da ignorância institucionalizada. E assim seguimos: um país com milhares de licenciados e quase nenhum pensador. Com o tempo, a mediocridade se disfarçou de humildade, vestiu-se de tradição, ganhou palmas nos púlpitos e aplausos nas bancadas parlamentares.
Tornou-se virtude nacional. Na escola, como falei, o importante não é aprender — é passar. Na universidade, não é pesquisar — é decorar. Na política, não é servir — é obedecer. A cultura política moçambicana nasce, cresce e se reproduz nesse ecossistema de incompetência funcional e mediocridade celebrada.
O Estado tornou-se um condomínio de medíocres, sim, onde se compra influência, se vende
silêncio e se premia a inépcia. Onde ministros são escolhidos não pela capacidade, mas pelo sobrenome ou pela disponibilidade para ajoelhar-se. Onde os órgãos de justiça são salas de espera do partido e onde a oposição é permitida desde que se mantenha fraca e previsível com isso, estamos a presenciar a decadência e negação e rejeição do partido ou movimento neorevolucionário “Anamalala” étcetera, étcetera. Nos anos da revolução, a justiça popular substituía tribunais. Depois, os tribunais foram ocupados por camaradas, e hoje os juízes esperam ordens do partido para decidir sentenças. Corrupção institucionalizada. Mediocridade jurídica endêmica.
O filósofo espanhol Ortega y Gasset já diagnosticava em seu tempo: "A mediocridade organizou-se, tomou os postos de comando e governa." Moçambique é exatamente isso: um país governado pela organização da mediocridade. E os efeitos estão aí: A juventude é ensinada a admirar quem ostenta, não quem pensa. Os artistas são premiados por bajular, não por questionar. Os escritores só são lidos se forem seguros para o sistema. Os empresários são prisioneiros da burocracia de comadres. Os velhos transmitem a cultura do medo, e não da coragem. No bar, na família, nas instituições a mediocridade é norma social. O debate foi trocado pela fofoca. Os bares são palcos de discussões vazias e alienação. As famílias ensinam o medo, não a coragem. As instituições públicas são controladas por camaradas incompetentes. A elite artística foi cooptada. Quem canta o partido, sobrevive. Surgiram os MCs e influencers de lixo, promovendo ignorância, sexo fácil, ostentação fútil e zero reflexão social. A mediocridade estética e ética é celebrada. Os apresentadores e apresentadoras viraram bonecos da propaganda.
Não bastasse, a mediocridade virou cultura oficial e familiar. As igrejas trocam ética por marketing e vendem bênçãos a crédito. Tudo mediocrizado. E o mais grave: a mediocridade tornou-se orgulho nacional. Hoje, quem pensa é suspeito. Quem exige é arrogante. Quem questiona é subversivo. Quem lê é lunático. E quem se rebela, desaparece. Se a educação ensinou a obedecer, a cultura ensinou a ajoelhar. Moçambique, pátria de tambores, batuques e contadores de histórias, viu sua alma cultural sequestrada pela política. Logo após a independência, a FRELIMO compreendeu que controlar a cultura era controlar o espírito de um povo. Assim, transformaram artistas em propagandistas, e o palco em palanque.
A cultura deixou de ser expressão livre para se tornar arma ideológica. Os músicos eram obrigados a cantar hinos de louvor ao partido. Os poetas escreviam versos sobre a glória do camarada Presidente, e os grupos de dança ensaiavam coreografias que exaltavam a revolução.
A arte deixou de provocar para apenas bajular. Os teatros viraram templos de doutrinação. As canções populares foram censuradas. Os músicos que não aceitavam o enredo oficial eram silenciados ou forçados ao exílio. A cultura de questionamento, herança ancestral dos griots, foi assassinada pelo medo.
A década de 90 abriu as portas à mediocridade comercial. Com o mercado livre, surgiram os
primeiros artistas sem conteúdo, interessados apenas em dinheiro e fama. Os rappers esqueceram a denúncia social e começaram a rimar sobre carros, roupas de marca e conquistas fáceis. Os escritores passaram a publicar panfletos sem rigor literário. Os palcos se encheram de humoristas sem graça e atores mal ensaiados. Hoje, a cultura moçambicana é um cemitério de talentos enterrados pela mediocridade institucional. O Ministério da Educação e Cultura financia projectos inócuos, patrocina festivais sem alma e entrega prémios a artistas bajuladores.
Os concursos literários premiam a mediocridade servil. As artes plásticas ficaram reféns do turismo e da conveniência política. As rádios e televisões promovem mais putarias e influenciadores vazios do que músicos de verdade. Os MCs de hoje não são poetas urbanos, mas palhaços digitais a serviço do entretenimento fácil. Os jovens artistas são ensinados a evitar temas polémicos, a não citar Samora Machel com crítica, a não fazer canções que exponham o Estado e a fingir que tudo vai bem.
A cultura de resistência virou cultura de bajulação. E assim a mediocridade tornou-se norma.
Quem ousa ser autêntico é abafado. Os grandes mestres morrem anônimos e os medíocres
sobem ao palco. O Estado moçambicano, esse condomínio de mediocridade, fabrica fama sem talento, arte sem conteúdo e cultura sem coragem. E quem denuncia isso é acusado de inveja ou de querer desestabilizar a “paz social”. Como se a paz fosse possível sem dignidade cultural.
A economia moçambicana é, desde a independência, uma vítima sequestrada e torturada por decisões políticas medíocres e interesses partidários disfarçados de patriotismo. E o mais grave:
essa destruição não foi obra do acaso, foi um projeto. Um projeto de ruína, arquitetado pela mesma elite libertadora que, ao tomar o Estado, confundiu o erário público com propriedade privada e fez da gestão nacional uma extensão do partido. Ainda após a independência, em 1975, a Frelimo, embriagada pela vitória, decidiu nacionalizar quase tudo: terras, empresas, casas, bancos e até pequenas padarias. O Estado tornou-se o único patrão. E como patrão, não sabia produzir, não sabia negociar, não sabia sequer organizar. Sabia apenas acumular poder e perseguir quem não obedecia.
Os comerciantes portugueses fugiram, os empresários locais foram silenciados, e quem tinha competência foi taxado de reacionário burguês. Resultado: os armazéns ficaram vazios, as fábricas pararam, e a fome bateu à porta de uma população que tinha recém-celebrado a libertação. A economia informal explodiu como mecanismo de sobrevivência, e com ela veio a corrupção institucionalizada. O plano de socialismo centralizado fracassou rapidamente. Mas em vez de reconhecer o erro, o partido culpou a guerra, culpou a sabotagem externa, culpou até o clima — menos a própria incompetência. E quando chegou a década de 1990, abriram-se as portas ao capitalismo neoliberal através do Banco Mundial e do FMI, vendendo-se tudo o que antes fora nacionalizado.
As privatizações não foram feitas para salvar a economia, mas para enriquecer os camaradas. As empresas do Estado foram leiloadas entre amigos, generais, ministros e seus filhos. Os que ontem gritavam socialismo ou morte tornaram-se, de súbito, capitalistas vorazes. E o povo?
Continuou a morrer, mas de fome. Hoje, a economia moçambicana não pertence aos moçambicanos. É um corpo sem alma, controlado por multinacionais, elites familiares e intermediários políticos. Os camaradas continuam a decidir quem fica rico e quem permanece na miséria. As grandes concessões de gás, carvão, rubis e areias pesadas são feitas no escuro, entre brindes de whisky e contas offshore. O Estado usa o orçamento para sustentar uma máquina pública ineficiente e um exército de gestores incompetentes, cujo único mérito é ser leal ao partido. O funcionalismo público é inchado com empregos fictícios e salários fantasmas.
As dívidas ocultas, negociadas à margem da legalidade, afundaram o país num escândalo internacional, e até hoje ninguém tocou nos verdadeiros responsáveis.
Como bem denunciou Eduardo Galeano: “As dívidas não se pagam; se renegociam. Os povos pagam e pagam, e ficam cada vez mais pobres.” Moçambique não possui uma economia real — possui uma economia de fachada, de megaprojectos estrangeiros e mercados informais. A maioria do povo continua vendendo na rua, enquanto a elite política ostenta mansões, carros blindados e contas bancárias na África do Sul e em Portugal. O resultado dessa mediocridade planejada é visível: Hospitais sem remédios. Escolas sem carteiras. Universidades sem livros.
Estradas que viram crateras. Obras públicas que demoram décadas.
A única economia que funciona bem é a economia do saque. Saque ao Tesouro, saque às empresas públicas, saque aos recursos naturais. A Frelimo criou, desde a independência, um modelo económico predador, onde poucos vivem como príncipes e a maioria sobrevive como servos. E quem ousa dizer isso, ainda hoje, é ameaçado, perseguido ou desacreditado como antipatriota. Moçambique é, economicamente, um país sequestrado pela mediocridade institucionalizada. E só uma ruptura séria com esse modelo poderá devolver a economia aos moçambicanos de verdade.
Moçambique tornou-se, sim, um condomínio onde o síndico é o partido, os inquilinos são os
bajuladores e os poucos pensadores são os invasores indesejados. É necessário dizer isso sem floreio, sem panos quentes, sem poesia patriótica. Porque enquanto a mediocridade continuar a ser o cimento desta casa chamada Moçambique, tudo o que se construir aqui — seja escola, hospital ou democracia — será um monumento ao fracasso. Moçambique está afundado num sistema de mediocridade funcional e intelectual, plantada e irrigada pela Frelimo desde 1975. O povo foi ensinado a aceitar o mínimo. Os talentosos ou fogem ou morrem na lama. Mas uma geração lúcida pode enterrar essa mediocridade organizada e refundar o país. Porque como disse Frantz Fanon: “Cada geração deve descobrir a sua missão, cumpri-la ou traí-la.” E a missão da minha geração é enterrar a mediocridade antes que ela enterre o país.