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O Escutador de Silêncios

Por: Marcelo Panguana

 

Existem algumas marcas que corporizam o livro Escutador de Silêncios, escrito por Ricardo Santos, que nos podem conduzir a uma melhor interpretação da obra. Uma das marcas podemos encontrá-la nas palavras do professor Elisio Macamo, que assumiu a responsabilidade de prefaciar este livro, ao dizer: “cada linha é uma janela que se abre. Ela não abre para a gente ver o mundo lá fora. Ela abre-se para a gente ver o mundo dentro de si, para a gente se maravilhar com aquilo que o interprete  disse sem ter dito tudo”. Suponho que o Macamo deve estar a dizer que o livro, e acrescento que essa é a responsabilidade de todo o livro, deve ajudar na descoberta de nós próprios. Uma outra marca é a própria definição de Ricardo Santos sobre aquilo que escreve, isto é: “A poesia é inútil. De outro modo seria coisa vulgar”, isto é, o Ricardo, apesar de ter consciência da inutilidade da poesia, escreve, o que não deixa de ser uma delicada ironia. Há ainda uma terceira marca, a da grande incógnita relativamente ao género adoptado pelo autor: poemas, crónicas ou outra coisa qualquer? É a partir destas três marcas que se pode encetar a viagem de descoberta desta obra, uma viagem que provavelmente pode nos levar a percorrer vários caminhos, leves e inefáveis alguns, sombrios e ingremes outros, mas todos  eles questionando o significado da própria vida e como o poeta a vê e sente.

Sou apologista duma escrita erudita, cuidada, e terá sido precisamente por essa razão que deixei-me surpreender com a forma despretensiosa como Ricardo Santos escreveu este livro. Na literatura o meu doce calvário foi sempre a metáfora, o trabalho de ourives, como a de um Carneiro Gonçalves, o Álvaro Taruma, do Borges, ou um Eça de Queirós. Diria que “O Escutador de Silêncios” não nos oferece uma escrita inovadora e subversiva como, por exemplo, a de um Filimone Meigos, mas Ricardo Santos apresenta-se, talvez sem disso se aperceber, como um inovador, alguém que traz uma nova forma de “palavrar”. Escreve da mesma maneira como fala, “inventa” uma outra forma de versar, coloca de lado a metáfora e vai à busca dos sentimentos mais profundos:

“Querido neto Aylan Kurdi, ficou tanto por dizer, ficou tanto por fazer e eu estou só, com a minha mágoa sem tamanho. Tinha muitas coisas para viver contigo. Tinha o jogo do paulito, um pau grande e outro pequeno numa cova de grandes sobressaltos. Tinha um abafador imperdivel para jogarmos ao berlinde, sei lá  eu que mais. Até tinha, vê lá tu bem, um pulmão de peixe para te emprestar, em caso de necessidade. Tudo em vão. Perdi-te num qualquer  mediterrâneo e fiquei um avô mais pobre. Fiquei avô de um neto só. Que te sirva de consolo a nossa raiva contida, a nossa ternura sem fim. Love you. Avô Ricardo”.

Ao longo do livro os escritos do Ricardo obedecem ao pulsar dos seus sentimentos, conseguem ser profundos à medida que profundo se torna a forma como observa as coisas que o rodeiam. Este livro não foi escrito a pensar-se em alcançar o que quer que fosse, que o Ricardo sempre gostou de ter os pés assentes no chão, mas acredito que  “O escutador de silêncios” tem o mérito de ser a voz da simplicidade e da pureza, fazendo-me recordar um Mutimati Barnabé, coincidentemente mencionado no livro, com o seu Eu e o Povo. Tal como o Mutimati, Ricardo Santos escuta os silêncios do seu povo para depois os dar voz, sentimentos e tirá-los do anonimato. Dar-lhes importância na construção da nossa história. Como diria o sociólogo Elísio Macamo, “ Não é uma história feita por grandes homens e mulheres, ou grandes momentos, mas sim uma história dos que não têm nome, portanto, os mais importantes, aqueles que por serem anônimos devolvem à vida o protagonismo que ela merece no nosso devir”.

Qualquer escrita, e este livro não constitui uma excepção, é um produto de memórias que se buscam no arquivo do tempo e que foram resistindo a poeira do esquecimento. Não é por acaso que o Ricardo vai buscar o Aquino Bragança, sempre dissimulado no seu pitoresco bigode, que reelembra o Antonio Quadros, os jogos de berlinde, o José Craveirinha do seu encantamento; não é por acaso que reencontra-se com Ughetto, o fabricante de Antiguidades, que faz um flash sobre a Rua Araujo, que fala das mãos sublimes da Reinata Sadimba, para acabar, entre outros escritos, de convidar a Noémia de Sousa para tomar um café em Algés.  Entre a ironia que é subjacente em alguns dos seus versos e a irreverência de saber que não saberemos situar os seus escritos em nenhum género, deixando-o assim livre de todos rótulos, Ricardo Santos desfila as suas memórias que ao fim e ao cabo são as memórias deste Moçambique com o qual convive  há mais de sessenta e quatro anos. Encontramos também no livro quadros sinistros, reflexos de tantas amarguras que a vida nos concede, conferindo absoluta razão ao escritor luso Baptista Bastos ao dizer que “a verdade é que os grandes livros, ainda hoje, são livros inspirados na mais pessoal e, as vezes, atroz das realidades”. Ricardo desceu por todas as alamedas daquilo que foi mais profundo viver e observar. Diria, com todo o risco de não ser verdadeiro, que quanto maior for a vivência de um escritor, existem mais probabilidades do seu livro se tornar uma obra rica e equilibrada.

E esta viagem de escassa quilometragem que fiz através do Escutador de Silêncios fica por aqui. Gostaria de ter a certeza de ter deixado ficar o essencial, mas pouco importa se essa viagem não chegou ao fim. Sei que este livro abre muitas possibilidades de leitura e é isso que espero que aconteça nos tempos próximos tempos. Fica, agora, este pedço de prosa, que com o consentimento do Ricardo Santos, vos ofereço.

“Fui encontrado há poucos dias, ainda vivo, pelo fotógrafo Mario Macilau Sameblood no meio da lixeira de Maputo. Não, não foi na lixeira de Trajouce no Concelho de Cais. Foi na lixeira de Maputo. Dizem que eu estava deitado num enorme e velho carrinho de bebé do inicio do século XX. Daqueles que usavam rodas do tamanho de rodas de bicicletas. E sorria para os meninos que chafurdavam no lixo à procura do Santo Graal”.

 

 

 

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