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O Campo Ideológico das Vozes em Sina de Aruanda, de Virgília Ferrão

Por: Raquel Miambo
(Graduada em Literatura Moçambicana pela UEM)
O presente texto tem como objectivo reflectir e analisar as diferentes dimensões do campo ideológico que se constrói no romance Sina de Aruanda, da escritora Virgília Ferrão.
A compreensão do que seja o campo ideológico passa, necessariamente, da definição de ideologia. Segundo Eagleton (1997), podemos conceber a ideologia sob seis perspectivas, a saber: (1) processo material de produção de ideias, crenças e valores na vida social; (2) ideias e crenças que simbolizam as condições e experiência de vida de um grupo ou classe específica, socialmente significativo; (3) promoção e legitimação de interesse de grupos sociais opostos; (4) actividades de um poder social dominante; (5) ideias e crenças que ajudam na legitimação dos interesses de um grupo dominante; (6) crenças falsas ou ilusórias.
Adoptámos a primeira e a segunda definições que se referem à ideologia como um processo de produção material de ideias, bem como um conjunto de ideias e crenças de um grupo significativo. Ao que se depreende, essas definições aproximam a ideologia da ideia de construção de certa visão de mundo – vista por Japiassu & Marcondes (1996) como uma concepção global, de carácter intuitivo e pré-teórico, que um indivíduo ou uma comunidade formam de sua época, de seu mundo e vida em geral –, pois pretendemos identificar na obra eme estudo elementos que concorrem para a construção ideológica, com atenção ao discurso. Ora, como assegura Reis (1978:409), o código ideológico, em estudos literários, compreende o conjunto de ideias e valores, ligados a uma organização, e que tem, por fim, facultar as relações semânticas, integrando-se na dinâmica da comunicação literária.
Identificámos, na obra Sina de Aruanda, elementos narrativos que concorrem para a produção de ideias, crenças e valores (1) relativos ao ambientalismo através da representação da relação que o Homem estabelece com o meio ambiente; (2) relativos ao Espiritismo, quando evoca a evolução do espírito, através da reencarnação que é a transcendência do espírito para um outro tempo histórico e a relação entre espírito e matéria; (3) relativos ao saudosismo, ao recuperar um dado do passado da História de Moçambique e conferir um espaço privilegiado na produção literária.
(i) Ideologia Espírita: Kardec, citado por Carraca (2000:12), define espiritismo como estudo da natureza, origem e destino dos espíritos, bem como das suas relações com o mundo corporal. Neste contexto, designam-se espíritas os adeptos do Espiritismo, que conhecem os seus princípios ou dogmas.
Podemos identificar intenções ideológicas do Espiritismo a partir do monólogo de alguns narradores-personagens, tal o caso de D. Fernando Costa que pensa: “(…) Não consegui salvar o meu amigo e, portanto, esta é a única coisa que posso fazer para tranquilizar o seu espírito, perdido por estas terras (Ferrão, 2021: 32).
A crença na necessidade de se criarem condições para garantir a tranquilidade do espírito após a morte concorre para o que observamos como visão espírita. Há uma manifestação, não só de fé, mas também de busca pela prática de algumas acções compatíveis com essa crença.
Sou cristão, estou limitado por essa crença, mas juro que, às vezes, de noite, quando olho para as estrelas, tenho a impressão de ouvir vozes. Pode apenas ser mau tempo, o canto do vento, ou a minha imaginação, mas, ocasionalmente, penso que, sinceramente, são vozes dos espíritos desse povo cruzando os céus em busca de liberdade (Ferrão, 2021:93).
No monólogo deste narrador-personagem, D. Fernando Costa, nota-se um choque entre crenças, por um lado da doutrina cristã e, por outro, da tradição africana. Acreditar na existência de espíritos que vagueiam autónomos pelo espaço e que estes respeitam um processo ou ciclo a fim de encontrar a paz, vai ao encontro dos ideais espíritas. Esta passagem evoca a crença na existência de uma vida pós-morte, crença que atravessa diversos momentos da história.
Observámos vantagens em relação à personagem que serve de âncora e consciência dos demais, uma vez que é a ela que se confia a função de reconhecer a reencarnação: “˗ Coincidência o tanas! Não vês? É óbvio! Ela é reencarnação da dona do prazo! E queria tirar-me do jogo, impedir-me de chegar aqui” (Ferrão, 2021:178).
Angelina é uma personagem com características especiais, não só por ser reencarnação de um homem, mas porque possui dons de clarividência. É através dela que se revela a vida passada dos demais, por meios de visões, sinais e digressões orientadas por terapias:
Num minuto estava ali animada, a conversar com Daniel de Barros, e no minuto a seguir… Estava a vislumbrar, através de ampla janela, um luar prateado, uma noite perfeita e um vasto mar. Sentia que tinha a terra, o tempo e os sonhos a meu favor (Ferrão, 2021: 79). (destaque nosso)
Neste excerto, Angelina visualiza-se na vida passada numa espécie de alucinação. Diante de um evento do século XXI, ela revive lembranças da sua anterior encarnação. O espaço Aruanda é propício para a evolução do espírito, é onde os espíritos, após a morte do corpo, avançam para a prova de uma nova existência, uma vez não tendo alcançado a perfeição em vida. Pedro Lucas, à beira da morte, consegue visualizar a sua outra vida, que resultará da reencarnação:
Há um lampejo dentro de mim. É tão penetrante e intrusivo que a princípio não me permite enxergar. Mas depois compreendo. Não é a minha casa, não é Aruanda, não é coisa alguma nem pedaço de nada. É apenas o tempo suspenso, numa partícula de espaço para curar almas (Ferrão, 2021: 222).
A escassos minutos da morte, ele consegue visualizar-se num outro espaço onde se movimenta, mas também num outro espaço-corpo onde o espírito vai intelectualizar a matéria. É a partir de Aruanda que isso acontece, e não só em relação a Pedro Lucas que consegue visualizar-se séculos mais tarde no corpo de Daniel de Barros, como também às restantes personagens. Ora, através dessa prolepse, podemos observar o estado anterior do espírito comparado ao actual, numa espécie de memória do futuro: “Daqui a milhões de anos, quem sabe. Espero o dia em que a alma seja sábia o suficiente para não temer a solidão, nem os fracassos. Quando o mundo sentir mais sinais de liberdade e o ser humano compreender que nunca estará só” (Ferrão, 2021:222).
Num outro contexto discursivo, Daniel de Barros acrescenta: “(…) tenho estado vivo porque a minha alma apreendeu a ser sábia o suficiente para não temer a solidão, nem fracassos. Hoje sei que nunca estarei só” (Ferrão, 2021:239).
É através da anacronia que se explicita essa visão espírita, é onde verificamos o estado anterior do espírito comparado ao actual, e vice e versa. Mas também o relembrar o passado nos conduz à valorização do meio ambiente.
(ii) Ideologia pró-ambientalista: De acordo com Rocha (2001:08), ambientalismo é uma corrente de pensamentos e movimentos sociais em defesa do meio ambiente, que busca a implementação de medidas com foco na protecção ambiental, impondo mudanças no estilo de vida. A relação sociedade-natureza é complexa ao sermos ao mesmo tempo sua dependente e sua consumidora. Ainda assim, desde os finais do século XX até à actualidade, temos um crescente duelo de forças que nos obriga a posicionarmo-nos em relação à possibilidade de extinção das espécies sobre o planeta. É possível notar esta preocupação no romance: “˗ (…) Com os recursos a esgotarem-se na terra, há quem ande a vender parcelas de terreno, em Marte e em outros planetas por descobrir” (Ferrão, 2021: 39).
Um discurso de apelo que leva o interlocutor a tomar uma decisão em relação ao estado actual do nosso planeta. Neste contexto, Daniel de Barros leva-nos a pensar em acções que visam amenizar o impacto da acção humana sobre a Terra, ou seja, é um discurso atravessado pela causa ambiental:
“ – Portanto, ou cuidamos deste planeta, que é, por enquanto, a nossa única casa natal, ou começamos imediatamente a fazer uma grande poupança para poder arrendar espaço, em Marte e afins” (Ferrão, 2021: 39). (destaque nosso)
É um discurso retórico, usando estratégia antitética para convencer o auditório a aderir à sua posição ambientalista, pois, ou tomam conta do meio ambiente ou, caso contrário, será preciso ter condições de ir a Marte, o que seria dispendioso.
Diante de um discurso desta índole, reflectimos sobre o espaço “Terra” e tudo o que este pode significar enquanto espaço colectivo e também individual onde, dia após dia, cada um de nós se desenvolve e se transforma física e psicologicamente. Trata-se de consciencializar o ser humano sobre acções mais acertadas em relação ao planeta.
Uma outra referência que é aqui assinalada remetendo-nos a um discurso ambientalista dá-se nos seguintes termos: “- Não fica bem deitar lixo na praia… para além de estarmos a poluir, a degradar a costa, estamos a dar muito trabalho às pessoas que depois têm de limpar” (Ferrão, 2021: 85).
Espaços sociais como a praia merecem atenção de todos. Estamos diante de um discurso de censura de acções contra a degradação do meio ambiente e apela a práticas de sua conservação: “˗ É lixo que se deve enfiar na sacola, não a vergonha, senhores (…) não custa nada apanhar e deitar esse lixo num local mais apropriado. É um favor que fazem a vocês mesmos, e o planeta agradece” (Ferrão, 2021: 85).
Não só no que respeita à praia, mas também à ilha, que é um espaço importante na obra, se manifestam ideais ambientalistas: “- (…) Aquilo já está em ruínas, a missão foi esquecida e deixada em estado de degradação, mas há esperança de que venha a ser restaurada. Muito em breve!” (Ferrão, 2021:51).
A preocupação com este espaço remoto, a esperança na restauração da ilha, remete-nos à valorização do meio ambiente e à preocupação com a história dos seus habitantes.
(iii) Ideologia saudosista: Para Maria Rollo (2014:01), saudosismo consubstancia uma visão de mundo que tem por base a saudade, a valorização das experiências passadas, resultantes da falta ou ausência de algo, alguém ou momento, nalguns casos, com um efeito de nostalgia. No que se refere à valorização do passado e preservação da história, o Prazo de Aruanda, um espaço exclusivo de uma certa época histórica, é, na obra, localizado no século XIX: “Aruanda está muda. (…) O sossego estende-se até ao casarão dos senhores do Prazo, capitão-mor Bento Noronha e dona Luísa, sua esposa” (Ferrão, 2021: 19).
O Prazo de Aruanda remete-nos para a história de Moçambique, sobre os prazos do vale de Zambeze, que foi uma estratégia de colonização iniciada na segunda metade do século XVI. Assim, leva-nos a uma escrita que valoriza o passado, a uma expressão do saudosismo. Além disso, mais do que recuperar um fenómeno histórico, há uma tentativa de conservar as características empíricas desse fenómeno: “No nosso meio, dentro destas terras empenhadas, têm crescido chefias tradicionais mistas. Isto acontece, há quase três séculos, desde que as terras começaram a ser concedidas por El-Rei, andando sempre de filha em filha… (…)” (Ferrão, 2021: 45).
Como já nos tínhamos referido, o Prazo de Aruanda localiza-se no século XIX, e o narrador evoca o surgimento dos prazos do Vale do Zambeze, três séculos depois, mas também nos dá a conhecer uma das principais características que é a união entre os nativos das terras e os estrangeiros, portugueses e indianos. Veja-se a fala de um outro narrador-personagem, Daniel de Barros, já no século XXI: “˗ Aruanda tem uma carga histórica bela e única! Certamente vocês estudaram sobre os Prazos da Coroa, não estudaram?” (Ferrão, 2021: 51).
Esta fala convida-nos a um momento didáctico, que apela para memória histórica, complementado com o que foi proferido de seguida:
– Os prazos eram unidades políticas, terras conquistadas pela coroa portuguesa e que eram entregues, por um período de três anos a mercadores portugueses e indianos. A sucessão era feita por via feminina; ou seja, as proprietárias eram mulheres, as chamadas “donas”. Uma das últimas resistências majestáticas deu-se em Aruanda, na altura um prazo (Ferrão, 2021: 51).
Este excerto, intencionalmente didáctico, não só recupera um dado da história, como também explica o fenómeno dos Prazos, num diálogo com a história de Moçambique. O excerto também nos remete para as formas de tratamento próprias desta época histórica, que valorizam a organização política: termos como Donas, El-Rei, A-chicunda possuem um valor na hierarquia sociopolítica dos Prazos do Vale do Zambeze.
Considerações finais
O campo ideológico que é projectado no romance compreende o Espiritismo, o saudosismo e o ambientalismo. No que diz respeito à ideologia espírita identificámos, a partir do discurso dos narradores-personagens, expressão de crenças e ideias que nos remetem para a reencarnação e crença na evolução do espírito após a morte. No que toca à ideologia ambientalista, verificámos, no discurso dos narradores-personagens, manifestação de acções e movimentos que visam consciencializar o homem sobre a necessidade de prevenção do meio ambiente. Finalmente, para a expressão do saudosismo, recupera-se uma época da história de Moçambique, através do fenómeno dos Prazos do Vale de Zambeze e da valorização da memória histórica.
Referências Bibliográficas
CARRACA, Orson Peter. (2003). Das dificuldades do Espiritismo Prático: Reformador. São Paulo. Junho de 2003. Disponível em: https://www.espiritualidades.com.br/Artigos/C_autores/CARRARA_Orson_tit_Das_dificuldades_do_Espiritismo_pratico.pdf. Acesso em 03.04.2023
EAGLETON, Terry. (1997). Ideologia: Uma Introdução. Tradução de Luís Carlos Vieira. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista.
FERRÃO, Virgília. (2021). Sina de Aruanda. Maputo” Fundação Fernando Leite Couto.
JAPIASSU, Hilton & MARCONDES, Danilo. (1996). Dicionário Básico de Filosofia. 3.ª ed. Rio de Janeiro: Zahar.
REIS, Carlos. (1978). Técnicas de Análise Textual. 2.ªed. Coimbra: Almedina.
ROCHA, Ernesto Diaz. (2001). Ambientalismo, Ecologia, Educação Ambiental e Universidade: O árduo mas possível caminho da institucionalização da interdisciplinaridade ambiental no Brasil. Rio de Janeiro: Universidade Federal Rural Rio de Janeiro (Tese de doutoramento).
 ROLLO, Maria Fernanda. (2014). Dicionário de história da I República e do Republicanismo. Lisboa: Assembleia da República-Divisão de Edições.

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