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O caminho do livro

Por: Mélio Tinga

 

António Lobo Antunes disse numa entrevista, algo como: é difícil falar sobre os livros. E tinha razão. O livro tem uma estrutura demasiado complexa que, não é possível que faça apenas um caminho. Por isso, esta conversa estará para os desafios de publicar e sobre como sobrevive o livro em meio ao caos. Não pretendo construir um caminho linear, mas partilhar fragmentos e circunstâncias, fotografias esparsas sobre a minha visão acerca do livro.

Estou convencido que existem três formas de dar vida a um livro. A primeira, é a autoria, o trabalho de criação, de escrita, de invenção; a segunda é a leitura, uma espécie de um sopro que dá alma e esqueleto ao livro e um dos gestos mais solidários que conheço; a terceira forma é discutir, falar e partilhar ideias sobre o livro, o que o cobre de carne, tornando-o um animal vivo. Acho que foi iludido nesse pensamento que aceitei este desafio da Casa do Professor.

Enquanto seguia a caminho escutava aleatoriamente uma lista musical, entre as que gosto e as que desconhecia. Três delas chamaram-me especial atenção: “A Beleza Vai Mudar O Mundo”, de Soraia Tavares; “Astronauta”, de Gabriel O Pensador e Lulu Santos; e uma terceira, “La Famba Bicha”, de Jeremias Nguenha.

A primeira – que também nos pode recordar do escritor russo Fiódor Dostoiésvky ao afirmar praticamente nos mesmos termos; “a beleza salvará o mundo” – chamou-me atenção sobre o facto do livro ser, indubitavelmente uma coisa bela, das mais belas coisas criadas pela humanidade. Isso levou-me a pensar sobre como a literatura pode, porventura, salvar o mundo, o que, em parte, recordou-me um belíssimo engenho poético de Luís Carlos Patraquim – “Elegia Carnívora”, no seu livro “Matéria Concentrada”:

porque embrulho de carne nos fazem/ desatado na noite/ uivo de sangue/ entre as sombras de deus, inerte, / no asfalto porque é noite, — e agora/ já não dormimos o sono dos cães —, / nós voltamos, poucos, entre as sombras/ de deus, em Tsalala um nome. / À uma hora da madrugada somos deus/ aos látegos sobre os perfis das casas, / das frontes latejando voos de extenuados/ pássaros e batemos no poema. Abram! / Já não morremos nas mãos brincando/ do menino com dois anos de idade. / Assassinou-se para não ser homem nem deus, / nem perguntas de voos augurando/

metafísicas inúteis na ascensão de domingo, / à uma hora da madrugada.

 Mãe, quero um barco verde com risos/ e um rio dentro dos ossos e um asfalto/ de carne, limpa, sem sombras de deus/ ou a noite na boca, Mãe!

 

Esta mesma ideia (de beleza e salvação do mundo) lembrou-me as “Incontinências do Fogo”, de Andes Chivangue, em “fogo preso”, um livro incisivo e cheio de humanidade, ao escrever:

 

Ainda que fossem vazados os meus dois olhos, / com uma pedra os dentes partidos, / e com uma gazua os genitais decepados/ mistério maravilhoso a vida permaneceria,

 

tão somente para ouvir a tua voz/ ou canto dos pássaros à compita/ nas manhãs chuvosas, que se prometem soalheiras.

 

Ao mesmo tempo, “Astronauta”, de Gabriel O Pensador (com Lulu Santos) e “La Famba Bicha”, de Jeremias Nguenha, traduzem, em parte, o meu estado de questionamento, de dúvidas em relação a vários aspectos que, poderia ligá-lo a um interessante livro de Manuel Alegre, “A Terceira Rosa” cujo excerto partilho logo a seguir:

 

“Padre Júlio era um padre especial, diga-se desde já. Vociferava contra os ricos e transformava cada homilia num inferno de caldeirões e almas a arder. Pregava contra os pecados da carne e do dinheiro, mas almoçava sempre em casas de boa mesa. Era visto de mãos dadas com senhoras devotas. Dizia mal da política e dos políticos, mas era membro do partido único, a União Nacional. Parecia um revolucionário, mas fazia frequentemente o elogio a Mussolini. Era um padre original.

Quando Xavier lhe confessou as dúvidas sobre a existência de Deus, ele respondeu-lhe: E quem é que as não tem?”

 

Estas referências, da música e da literatura são apenas um ponto de partida, mas talvez, também, os pontos principais do que penso, do que acredito, do que me move e de como faço a interpretação do mundo, como autor, como designer e como leitor. Estarão todas opiniões alicerçadas nestes três pilares, que, como podem compreender, muitas vezes será difícil desagregar.

 

LIVROS: CAMINHAR ENTRE OS NÚMEROS

Objectivamente: o caminho do livro passa por olhar (também) para os números. Desta maneira podemos saber como, quando e para onde conduzir as nossas acções. Os números orientam-nos a tomarmos decisões racionais, em direçcão aos problemas reais, na quase recorrente tentativa de resolvê-los.

Temos uma população de cerca de 31.616.078 habitantes. A taxa média de analfabetismo é de cerca de 53.6%, sendo mais elevada nas zonas rurais (65.7%) do que urbanas (30.3%) e mais saliente nas mulheres (68%) do que nos homens (36.7%). Apenas 46.4% da população em Moçambique é alfabetizada, o que equivale a pouco mais de 14 milhões de pessoas.

Outro dado que é interessante quando falamos dos livros tem a ver com as instituições de ensino: mais de 13 mil escolas primárias, perto de 700 escolas secundárias, um total de 53 instituições de ensino superior, entre públicas e privadas. (Dados do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior: mctes.gov.mz)

 

Em 2021 o Instituto Nacional de Estatística (INE) publicou um documento intitulado “Estatísticas da Cultura”, em que, por exemplo, mostra que em todo país foram publicadas, no total, 453 obras literárias. No mesmo ano, foram registadas 40 livrarias e papelarias, com destaque para Sofala (20), Maputo cidade (14), Nampula (4), Cabo Delgado (2). Foram realizadas cinco feiras nacionais do livro e do disco, totalizando 2.659 visitantes em todo País. As feiras foram realizadas apenas em três províncias: Inhambane (1), Gaza (1) e Maputo Província (3) com destaque para Inhambane com maior número de visitantes (1050).

 

Porquê estes dados são importantes e como eles nos podem servir se quisermos falar de livros? Consideremos algumas situações hipotéticas:

 

  1. Se imaginarmos que as 453 obras publicadas em 2021, cada um delas tenha uma tiragem de 200 exemplares, significa que temos 90.600 livros. Se desses livros a instituição “responsável” comprasse 6/7 exemplares para as escolas primárias e secundárias, quer dizer que estariam esgotados;

 

  1. Se considerarmos que o preço do livro são 500Mt, 7 livros custariam 3 mil e quinhentos meticais, ou seja, cada uma destas escolas, de algum modo poderia contribuir para que isso pudesse acontecer. Da mesma forma que se pensa no polêmico dinheiro do guarda, poderíamos pensar no dinheiro do livro. Se a escola tiver 1.500 alunos e cada um destes contribuir 3 MT, no total teremos 4 mil e quinhentos meticais.

 

Mas isto é, como disse, muito hipotético. Apenas para reflectirmos sobre como os números, de forma simples, podem ser importantes na construção de uma parte do caminho do livro. Com esses dados é possível pensarmos em estratégias concretas, evitando tomar decisões baseadas em preconceitos e no amor que os autores e editores, no nosso contexto, têm pelo livro. Um amor que se desgasta com o tempo.

 

 

LIVROS: AMORES & PRECONCEITOS

Acho que muitas vezes o livro é olhado e falado como se olha e se fala de sexo. Existem experiências que os autores são quase sempre tentados a generalizar, influenciados por suas próprias experiências, ignorando o outro. Algumas dessas ideias encaixotadas que, muitas vezes ouvimos são;

 

a) Até que venha a inspiração…

Há pessoas que acham que escrever à madrugada é uma espécie de coisa mágica, tratando esse facto de forma romântica, quando pode ser claramente explicado pela Psicologia – isso chama-se concentração. À essa ideia associa-se também a inspiração, o aguardar por uma espécie de luz divina que nos vai iluminar. A meu ver isso não é totalmente mau, cada autor tem um método, um caminho, tem o que funciona para si, que pode não funcionar para o outro. Nenhum livro de facto é movido apenas pela inspiração. A produtividade é resultado de disciplina, de rotina.

 

b) Deixa o livro “amadurecer”

Se me perguntassem se o livro precisa “amadurecer”, a minha resposta seria um forte “sim, precisa”. Dependendo da experiência do autor, pode levar mais ou menos tempo. O tempo de distanciamento é útil para que se retorne a ele com um olho ainda mais crítico. Mas isso não significa que todos livros devem incubar por 5 anos para todos. Não podemos levar isto como regra geral.

 

c) Escrever sem ler, é possível, claro!

Uma outra ideia que nós autores mais novos alimentamos, e que, provavelmente herdamos dos outros (alguns), é que podemos escrever sem ler. Pessoalmente, acho um absurdo. Se eu pretendo tocar jazz, é importante que eu escute jazz, se eu quero tocar marrabenta preciso de escutar marrabenta para compreendê-la, para conhecê-la, mesmo que depois não faça daquele modo específico. O processo de leitura a meu ver funciona como um gás necessário para mover a escrita, nos ajuda a ter um panorama geral do que existe e a destruir a ilusão de que estamos a fazer coisas absolutamente novas.

 

d) Basta o meu livro ser bom, será publicado

É mentira! Aqui, mais uma vez provamos que os números importam, com a diferença de que aqui trata-se dos números em dinheiro. Todo editor gostaria de publicar um bom livro, mas muitas vezes não é só um bom livro que funciona no mercado. O livro requere um investimento, e no nosso contexto a maior parte das pequenas editoras vivem sugando um pouco dos seus proprietários.

 

SOBREVIVÊNCIA

Um dos maiores desafios das novas editoras em Moçambique, não é publicar o livro, mas construir um sistema que as permita viver o maior tempo possível, tornando-se consistente. A questão da comunicação, da consistência, é provavelmente das mais importantes, por dois motivos: primeiro, espelha o que é a editora e o que anseia; segundo, é que aqui a ideia de que quem comunica é visto e quem não o faz morre, materializa-se de facto, a edição e publicação são um negócio. Até as igrejas fazem publicidade. Penso que precisamos buscar referências nesse sentido e experimentar coisas: a Coca-Cola é das mais antigas marcas mundiais e mesmo assim continua a fazer publicidade, na televisão, na rádio, nas redes sociais, em outdoors. Precisamos quebrar os preconceitos, se quisermos que as nossas pequenas editoras evoluam e se consolidem. Precisamos de parar de pensar que o livro não pode ser publicitado. Porque, até onde sei, não há lei que proíbe em Moçambique.

 

Se isso implica investimento, implica. Se isso significa contratar pessoas, a resposta é afirmativa. O editor é incapaz de fazer tudo, não pode ser o coordenador, o editor de texto, o revisor de língua, o designer, o gerente de marketing, o estafeta, o comercial. A maturidade das editoras passa também por compreender que uma pessoa, por mais talentosa que seja, não pode fazer tudo.

 

Outro aspecto, na relação autor-editora, é que, por uma questão estratégica as editoras precisam de construir relações de continuidade, em que um autor começa e juntos constroem um plano de publicação do autor nessa editora, durante, por exemplo 5 anos. Isso pode beneficiar os dois lados com o passar dos anos, na medida em que no segundo e terceiro livro, o autor já terá um número de leitores consideráveis, e terá construído um público que poderá beneficiar também outros autores da editora.

 

Precisamos parar de propalar a falsa ideia de que o livro não dá dinheiro. Afirmar simplesmente que livro não dá dinheiro, parece-me incoerente, uma daquelas canções que cantamos sem ter consciência do real significado da letra. Existem editoras simplesmente comerciais, cujo foco é publicação, independentemente da qualidade do livro: o autor paga e a editora publica. É um modelo de sobrevivência. É aquilo que o seu fundador definiu. Outras publicam o que interessa o editor (proprietário), outras procuram publicar livros técnicos e escolares e alimentam os livros de ficção e a poesia, por exemplo. O mercado literário, em todo mundo é feito disto, existem os que passeiam na margem e fazem as suas vidas com isso, existem os que estão no centro do sistema.

 

Para mim, como editores e autores, o nosso trabalho passa por construir um bom produto, porque o livro é um produto, e comunicá-lo bem. Um bom produto passa pelo texto, cuja responsabilidade é do autor e do editor. Um bom produto significa ter um livro atrativo e de boa legibilidade, papel do designer gráfico. Um bom produto significa encontrar uma gráfica que responda ao nível de qualidade do que queremos.

 

Não se justifica que um livro publicado há cinco anos, com 200 exemplares, continue nas livrarias e o autor sinta orgulho disso, desse sinal de um mau trabalho! Também não se justifica que o livro esgote e ninguém se interesse em fazer reedição.

 

Tinha esperança que pudesse ter, até aqui, algumas respostas, mas ao fim disto, continuo a sentir que só tenho perguntas. Um dos maiores pesquisadores da educação e da pedagogia, Jean Piaget, chama a fase dos porquês de período pré-operatório, normalmente acontece por volta dos 3 anos. Eu, estou recorrentemente a regressar a essa fase, apesar da idade:

 

Porquê há mais de 40 anos tínhamos uma publicação com 20 mil exemplares e hoje 1000 cópias levam uma eternidade? Exemplo: Yô Mabalale, de Albino Magaia.

 

Porquê a definição de uma política do livro, de estímulo ao autor, ao editor, não tem um real impacto sobre quem faz livro e fica um assunto dos corredores? Moçambique não pode fazer registo de ISBN porque se quer chega a 25% do número exigido por ano para poder o fazer. Canadá faz esses registos gratuitamente para estimular os autores e editores. O nosso registo de livro no Instituto Nacional das Indústrias Culturais e Criativas custa 500 MT, temos de ir fazer o pedido no local (poderia ser online), temos de fazer uma declaração, entregar uma cópia de bilhete de identidade e ainda esperar uns dias.

 

Porquê em eventos relacionados a indústria (?) cultural o livro fica sempre lá no fim da fila? Certamente falta sensibilidade, mas também falta uma pressão de quem faz o livro.

 

Por fim…

Penso que o caminho do livro, o sistema literário, não existe. Se o temos trata-se então de uma máquina parada no tempo, cujas engrenagens tonteiam, cujas peças caem na corrosão. O caminho do livro só é possível se todos os seus intervenientes estiverem conscientes do seu papel, do que devem fazer, como devem fazer, para quê devem fazer, com quem devem fazer. Cada um dos elementos desse sistema precisa do outro, o autor, o editor, o leitor, os livreiros, os distribuidores, e, talvez o mais importante e maior elemento de tudo isso, o Estado.

Quase no fim, cito uma frase dita por Lília Momplé, em 2007, no Instituto Superior de Relações Internacionais – ISRI, durante as celebrações do dia do livro e dos direitos do autor: “não há ideia de que Moçambique precisa de livros”.

Nota-se, em Soraia Tavares e em Fiódor Dostoiésvky, não apenas ideias brilhantes, mas a sensação de que a beleza, de facto tem capacidade, é um instrumento de salvação. Mas aqui, “La Famba Bicha”, mostra-nos que é como se “a fila andasse do lado ondes eles estão”. Eles quem?

Chegado aqui, tenho muitas dúvidas de que a beleza, a beleza dos livros, nas condições em que estamos, realmente poderá salvar o mundo.

 

 *Texto adaptado da conversa com o título: O caminho do livro – editoras e autores, de 28 de Julho, na Casa do Professor, em Maputo.

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