A água chega com os mochos. Os pássaros da morte movem-se pelos ares sussurrando segredinhos apocalípticos aos ventos frios da madrugada. O Búzi nega em deixar-se comprimir por um par de margens já flácidas. Borbulha por aqui e por ali, galgando o interior de impotentes paredes da argila.
O sono de Nyaswa evapora-se ao sentir o líquido percorrendo-lhe as costelas. A princípio pensou que a filha, embebida pelos sonhos infantis, se tivesse borrado de novo. Não leva muito tempo para afastar essa ideia. A quantidade da água é o advogado silencioso da criança que dorme.
A mãe ergue-se num pulo. Suas pupilas dilatadas tacteiam o escuro. A menina desperta, aos choros, da sua viagem pelo mundo da inocência. A água galgou-lhe a esteira que ameaça flutuar. Nyaswa puxa por uma capulana e coloca a criança nas costas. Há ruídos estranhos no exterior da palhota. Não são mochos. São pessoas em debandada.
«Usore!», grita uma voz. «Cheias!»
A água já passou da barriga da perna. Sobe para os joelhos. A escuridão não deixa Nyaswa contemplar todos os seus bens que, agora disputam espaço com o líquido na diminuta palhota. Mas o seu coração sabe onde está cada peça de vestuário comprado nas calamidades; o sal, a farinha e o açúcar que não se podem molhar; os papéis da família, sobretudo a cédula e o cartão de vacinas da filha. Sabe onde está tudo o que lhe pertence. Tudo o que faz de si gente.
Haverá espaço para salvar alguma coisa? O que dirá o marido Magumisse quando voltar das minas e descobrir que ela não foi mulher o suficiente para proteger os bens da família?
A água não pára de subir. Está agora na cintura. A corrente forte já se sente. Tudo no interior da palhota está aos círculos. As panelas, os pratos e as duas cadeiras plásticas chocam-se.
«Usore!», a voz volta a ouvir-se. «Cheias!», e desta vez é de mais distante. Nyaswa percebe que o que sobra para salvar é a própria vida. Dela e da pequena, que não pára de chorar.
Ela deixa a palhota para trás e entrega-se à madrugada. Um raio risca os céus e ilumina os ares. Compreende, então, que o Búzi deixou de ser um rio. É um mar. Um oceano cheio de pedaços de pessoas à deriva. Tudo está em desnorte. Apenas o rio evadido do leito tem a certeza do que faz: destrói.
O andar de Nyaswa não pode ser mais rápido. A água não pára de lhe galgar o corpo. Agora apalpa-lhe ligeiramente os seios. Ela puxa o bebé das costas para o colo. Quer protegê-lo melhor.
O ronco do céu abana a madrugada. A chuva é torrencial. Muito vento à mistura. Já não há para onde ir. Nyaswa faz o que toda a menina da sua aldeia fez a infância toda. Trepa uma árvore. É uma amendoeira plantada longe dos quintais para espantar a viuvez precoce das aldeãs. A árvore é frondosa, mas não lhe custa nada subir alto e deixar a corrente para baixo.
Ela refugia-se num ramo forte, que resiste às investidas do vento e da chuva. Nyaswa ora pela vida, pelo futuro e pelo amanhã. As suas lágrimas imiscuem-se com o leito das águas da chuva que escorrem nas suas faces e desaguam lá em baixo, no mar que teima em crescer.
Nyaswa está agarrada à sua pequenita, escoltando o limbo do vento. Tem a vã esperança de que o raiar do sol vá secar as águas que dos céus continuam a molhar o seu futuro. O alvorecer até acontece, mas a chuva continua a cair. Miudinha, a salpicar o rosto desesperado da Nyaswa.
Os seus olhos fixam-se num pequeno recanto da amendoeira que se mexe. Um par de olhos devolve-lhe o olhar de forma incisiva. É um mocho. É o raramente visível ninho do pássaro da noite. Nyaswa não se move. Não tem para onde ir. A ave da morte também está encurralada. Encolhe-se e aguarda pelo destino.
Nyaswa desvia o seu olhar para o infinito lençol de água que cobre a sua aldeia. Objectos flutuantes seguem a corrente num desfile sem fim. Todas as palhotas desapareceram do mapa. A água atingiu níveis espantosos.
Não há como largar o ramo da amendoeira. Não há como descer para desbravar os caminhos da sobrevivência. A vida resume-se a este ramo. O meio de subsistência é aqui que não se obtém. Em baixo é o caos. É o mar.
Nyaswa apega-se ao ramo da amendoeira. O bebé apega-se ao peito da mãe. Suga-o em busca de gotas de leite, que a fome começa a fazer escassear. O tempo corre devagar, neste duro teste de resistência. É a luta pela vida.
Só ao quinto dia é que a chuva abranda. O sol não espreita. Um ensurdecedor ruído de motor aproxima-se lentamente. Não pode ser carro algum. Com tanta água, todas as vias só podem estar cortadas. Passados alguns minutos de escuta há uma convicção que vira certeza. Os motores roncam pelos ares. Um helicóptero vem salvar homens, mulheres e crianças, que iguais a pássaros, estão empoleirados em árvores. Fugiram da terra que deixou de ser firme.
A aeronave voa baixo. Lança cordas pelas quais iça as vítimas. Os ventos fortes descabelaram os ramos da amendoeira. Não custa muito que a Nyaswa e a sua filha sejam descobertas pelo enorme pássaro de aço.
Nyaswa segura a corda com toda a força. Entrelaça um nó na cintura. O bebé está nas costas. Estão as duas prontas para subir em busca de água para beber. Em busca de pão. Em busca de salvação. Em busca da vida.
A corda sobe lentamente. O coração da Nyaswa palpita forte. É um misto de emoções. Medo de estar a esvoaçar pelos ares, presa a uma simples corda. Ansiosa por alcançar o helicóptero.
A escassos metros da aeronave sente a capulana do colo a desprender-se. Larga a corda e procura segurar o seu bebé. Nyaswa está presa pela cintura, mas não tem flexibilidade suficiente para evitar que a pequena se lhe escape.
Solta um grito de pânico. Esperneia. Mas a gravidade é impiedosa e chama pela criança que se esborracha nas águas, levantando uma enorme nuvem de espuma. Na água segue-se o silêncio. No ar o helicóptero continua a içar uma mãe que já nem sabe se vale a pena continuar viva.