A prosa é fatalmente juvenil, talvez mesmo pueril, indisfarçavelmente canhestra, mas genuinamente arrebatada. É o meu relato do meu encontro com Noémia de Sousa, quando a visitei na sua casa, de Algés, Lisboa, em Junho de 1988. Ao regressar à pátria debitei este texto para a “Gazeta”, que então editava, na revista Tempo: “Noémia foi quem abriu a porta e sorriu para mim largamente. Beijei-lhe o rosto tropical. Ela estendeu uma das mãos e convidou-me a entrar na sua casa de Algés. Camila, sua irmã, estava sentada num dos sofás da sala. O meu olhar dispersa-se pela pequena sala pintada de azul. Uma estante grande cheia de livros. Um pequeno televisor ligado. Num dos cantos da sala uma mesa circular. Os cestos com jornais. A casa está virada para a rua onde passa o eléctrico. Nesta casa vive uma mulher que me recebe com os olhos molhados de luz: de vida. Noémia de Sousa senta-se à minha frente.”
Eu tinha 21 anos e era o autor de uma carta na qual a saudava dois anos antes. Esse dia, 20 de Setembro de 1986, o dia dos seus 60 anos, foi para mim jubiloso. A minha missiva, redigida então aos 19 anos, fora lida no programa “Cultura Viva”, pelo Emílio Manhique – de grata memória. Noémia leria o meu texto no ano seguinte, quando foi publicado na “Gazeta”: “Escrevo-te em Setembro deste país de Junho. Sei que um dia disseste que o sol que te viu nascer na casa à beira do Índico voltaria a inundar a vida. É verdade, Noémia. Hoje esse sol entorna a sua luz sobre os olhos dos meninos brincando nas areias.”
Noémia de Sousa: “Quando eu nasci na grande casa à beira-mar, / era meio-dia e o sol brilhava sobre o Índico. / Gaivotas pairavam, brancas, doidas de azul.”
Ali, naquela tarde, tarde longa e longínqua, nasceu a nossa amizade. Retornei a Maputo comovido com aquele encontro. Escrevi o aludido texto e mantive com ela contacto. No ano seguinte fomos a Lisboa para o Congresso de Escritores. Ela haveria de apresentar-me o Rui Knopfli, de quem eu falava com abundância indesmentível e entusiasmo irrepreensível. Nessa mesma ocasião o Rui apresentou-a ao Eugénio Lisboa. Lembrei-me na ocasião de um texto avinagrado do Lisboa. Dizia “que a Noémia de Sousa é um mito que não vale a pena manter de pé, por mais simpatia que possam merecer as boas intenções dos seus poemas tão prolixos como balbuciantes.” Eu lera isto que o Eugénio redigira para o prefácio às Mangas Verdes com Sal do Rui Knopfli e ficara escandalizado.
Noémia de Sousa: “Se me quiseres conhecer, / estuda com os olhos bem de ver/ esse pedaço de pau preto/ que um desconhecido irmão maconde/ de mãos inspiradas/ talhou e trabalhou/ em terras distantes lá do Norte.”
Tinha sido, no entanto, através do poema “Moças das Docas” que eu havia conhecido o nome de Noémia de Sousa. Isto numa antologia organizada pelo Orlando Mendes. Esta obra poética, prodigiosamente escrita entre 1949 e 1951, entre os 23 e os 25 anos, é indubitavelmente fundadora da poesia de raiz verdadeiramente moçambicana.
Noémia de Sousa: “Somos fugitivas de todos os bairros de zinco e caniço. / Fugitivas das Munhuanas e dos Xipamanines, / viemos do outro lado da cidade/ com nossos olhos espantosos, / nossos corpos submissos e escancarados.”
Foi Cassiano Caldas, a quem ele dedica o livro, tal como o dedica a João Mendes, que lhe daria a conhecer a revista Vértice onde ela leu, pela primeira vez, Nicolás Guillén. Uma importante referência. Leu depois muito sobre a vida dos negros americanos em traduções que vinham do Brasil. O sul dos Estados Unidos vivia uma circunstância que lhe parecia similar à que Moçambique estava submetido. Distante ainda da Negritude, que viria a conhecer nos anos 50 em Lisboa e em Paris, no convívio com as ideias e obras de Leopold Senghor ou Aimé Cesaire, de quem aliás irá traduzir o famoso “Discurso sobre o colonialismo”.
Noémia de Sousa: “E enquanto me vierem de Harlém/ vozes de lamentação/ e meus vultos familiares me visitarem/ em longas noites de insónia, / não poderei deixar-me embalar pela música fútil/ das valsas de Strauss. / Escreverei, escreverei, / com Robeson e Mariam gritando comigo:/ Let my people go/ OH DEIXA PASSAR O MEU POVO!”
Escreve em O Brado Africano. Para além do convívio com Cassiano Caldas, que ela me levou a conhecer em Lisboa, convive também com Henrique Dahan, Miguel da Mata, Victor Santos (irmão de Marcelino), Amália Ringler ou Dolores Lopes. Ainda conheceu Rui de Noronha, que ela via passar diante da sua casa. Não conviveu com João Dias. O autor de “Godido” fora estudar para Portugal, onde morreria em 1949. Noémia dedica-lhe um poema. Como o faz a Rui de Noronha.
Eduardo Mondlane, então estudante na África do Sul, vê recusado, pelo governo de Daniel François Malan, do Partido Nacional, o seu visto de residência temporária, o que impediria que ele continuasse os seus estudos na Universidade de Witwatersrand. Noémia redige uma nota n’O Brado Africano com manifestações de solidariedade para com o estudante moçambicano. A PIDE persegue-a. Os poemas indignados, esse grito de revolta, esse apelo à emancipação, as actividades ligadas ao MUD-Juvenil, os artigos cortados pela censura e o cerco que concitam tornam impossível a sua permanência em Moçambique e impõem-lhe o exílio. Mário Pinto de Andrade escreve-lhe a encorajar que parta. Convívio marcado com a Geração Cabral. Primeiro a casa da Tia Andreza, tia da santomense Alda do Espírito Santo, na rua Actor Vale 37; depois a Casa dos Estudantes do Império, o esteio da “geração da utopia” (Pepetela dixit).
Amílcar Cabral, Mário de Andrade, Marcelino dos Santos, Lúcio Lara, Agostinho Neto ou Francisco José Tenreiro são companheiros de jornada. Em Portugal, o cerco volta a apertar-se. Noémia está casada com o poeta Gualter Soares, tem uma filha pequena, Virgínia, salta a fronteira, com ela às costas, atravessa os Pirenéus, alcança Paris. Marcelino dos Santos consegue-lhe um emprego no Consulado de Marrocos. Só retornará em 1973, com um emprego na Reuters, em plena primavera marcelista e à porta da revolução de Abril.
Só regressaria a Moçambique em meados dos anos 80. Foi nessa década que a tomámos literalmente de assalto. Reivindicámo-la. Começámos a escrever sobre ela, a ler os seus poemas, a declamá-los nos Msahos do Jardim Tunduru, a recitá-los um pouco por todo lado. Não havia livro publicado. Os poemas circulavam, havia as antologias, as revistas. O Brado Africano, Itinerário, Msaho, Mensagem (em Luanda), Notícia de Bloqueio (Porto), Moçambique 58, Vértice, entre outras publicações em Moçambique e no estrangeiro. Tínhamos o registo desse nome soberbo da nossa literatura.
Poemas da Noémia tinham sido publicados no Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa, de 1953, de Mário de Andrade e Francisco José Tenreiro, depois na edição de Poesia Negra de Expressão Portuguesa, que Mário Pinto de Andrade fez publicar, em 1958, em Paris, quando estava na Presence Africaine. A separata da Mensagem, intitulada “Poesia em Moçambique” também consagrava a sua poesia. A Casa dos Estudantes do Império editará em 1960 e 62 duas antologias – Poesia de Moçambique – ambas prefaciadas por Alfredo Margarido, que motivaram a furiosa reacção de Eugénio Lisboa que citei acima. Mário Pinto de Andrade volta a incluí-la na Antologia Temática da Poesia Africana – Na noite grávida de punhais, de 1975. Manuel Ferreira, em 1985, publica seus poemas em No Reino de Caliban III, volume dedicado a Moçambique. Orlando Mendes, em Sobre Literatura Moçambicana, em 1982 e Fátima Mendonça e eu próprio, na Antologia da Nova Poesia Moçambicana, em 1993, coligimos a sua obra. Quando editei Nunca Mais é Sábado, na D. Quixote, em Lisboa, em 2004, publiquei os seus emblemáticos poemas.
O professor Manuel Ferreira, grande entusiasta das literaturas africanas em Portugal, o francês Michel Laban, outro imenso estudioso das mesmas em França e no mundo, ambos desaparecidos deste reino, quiseram publicar o seu livro. Noémia, naquela sua proverbial humildade, encolheu os ombros. Rui Nogar e Calane da Silva, Leite de Vasconcelos, Fátima Mendonça e Júlio Navarro tentaram-no em Moçambique. Em 2001, no ano em que faria 75 anos, ela confiou-me essa grata tarefa de editar o seu Sangue Negro. Fátima Mendonça e Francisco Noa fizeram ensaios como posfácios do livro, eu redigi o prefácio. António Sopa cuidou do design gráfico. Lançámos o livro no dia 20 de Setembro, com a chancela da AEMO. Liguei-lhe a dar-lhe conta do nosso entusiasmo. A voz já muito fraca.
“Para lá daquela curva/ os espíritos ancestrais me esperam” – escreve ela no seu poema “A Mulher que Ri à Vida e à Morte”. Ela tem 65 anos quando escreve isto. Vê-se que não perdeu a verve. A veia poética está lá. Tem uma força brutal, uma força telúrica. de Sousa. Este belíssimo poema foi inspirado na senhora Eva, de S. Tomé e Príncipe, que ficou eternizada na retina sagaz do Carlos Pinto Coelho para o livro A Meu Ver.
Noémia de Sousa: “Breve, muito breve/ tomarei o meu lugar entre os antepassados// À terra deixarei os despojos do meu corpo inútil/ as unhas córneas de todos os labores/ este invólucro sulcado pela aranha dos dias. // Enquanto não falo com a voz do nyanga/ cada aurora é uma vitória/ saúdo-a com o riso irreverente do meu secreto triunfo// Oyo, oyo, vida!”
Esse dia infausto chegou a 4 de Dezembro de 2002, passam agora 15 anos. Tenho um ilimitado afecto pela Noémia de Sousa. Ainda hoje tenho a sua mão na minha passeando ao largo do Tejo, ou então conversando infatigavelmente. Foram muitos anos. Era viva a irmã Camila, o irmão Rui, o sobrinho Guilherme Ismael, que trabalhava na BBC, em Londres. Entre almoços partilhados lá em casa, ou na Nortenha ali à frente, ou num restaurante da Fonte Nova, no Benfica, perto da Lusa, ou ainda os cafés, no bar do prédio da Lusa, ou as chamadas frequentes, as notícias urgentes, as viagens que haveríamos de fazer, entre tudo isso, fica uma grata e cúmplice amizade e uma memória emotiva desta mulher raríssima, que eu evoco sempre à beira das lágrimas, e que não cabe nestas breves e precárias palavras de circunstância.