O economista Carlos Nuno Castel-Branco defende que uma estratégia bem definida de renegociação da dívida pública pode aliviar Moçambique da actual pressão da despesa pública. No seu entender, o país necessita de renegociar a dívida pública e de eliminar a dívida odiosa, geralmente chamada de dívidas ilícitas, bem como de eliminar os incentivos fiscais aos megaprojectos que têm lucros há anos no país, porque para si, esse é o grande causador da dívida insustentável. O economista falava no programa “O País Económico” da STV no âmbito dos 18 anos do jornal “O País”.
O rácio da dívida pública face ao Produto Interno Bruto (PIB) está acima de 100% desde 2016. Na sua visão, como é que o país pode tornar esta dívida pública sustentável e melhorar este rácio?
A questão da dívida de Moçambique já foi discutida muitas vezes e está a ser discutida há muito tempo e há algumas questões que são as coisas mais importantes para mencionar agora. A primeira coisa é que Moçambique não tem condições de pagar a dívida, por duas razões: uma porque a dívida é bastante grande relativamente ao PIB; e os juros da dívida e o serviço da dívida são bastante elevados, dadas as condições em que essa dívida foi contraída e, portanto, os custos que a dívida tem no Orçamento do Estado são bastante elevados. Não é só o stock da dívida sobre o PIB que importa, o que importa é quanto é que o Estado tem que desembolsar, anualmente, para pagar o serviço da dívida. Isso é determinado não só pelo stock e pelas condições de maturação da dívida, mas é também, sobretudo, determinado pelos juros da dívida. E isto significa que Moçambique está a gastar uma quantidade enorme dos seus recursos para pagar esta dívida. E Moçambique não tem condições de pagar nas condições actuais, porque vai estar sempre a colocar uma pressão enorme sobre a economia e sobre as condições sociais de vida; vai estar sempre a obrigar a novas medidas de austeridade e essas medidas de austeridade, como as medidas macroeconómicas, as medidas de controlo monetário, os cortes na despesa pública, etc., essas medidas vão ter implicações na economia que são negativas; vão atrasar o crescimento e o desenvolvimento da economia e, sobretudo, vão piorar as condições de vida dos grupos sociais menos abastados e menos favorecidos. Portanto, não é possível continuar nestas circunstâncias durante muito mais tempo. Então, há coisas de que nós já falámos muitas vezes e às vezes é um bocado saturante falar das mesmas coisas. É preciso renegociar a dívida; é preciso eliminar a dívida odiosa, aquilo que, em Moçambique, geralmente se chamam as dívidas ilícitas. É preciso eliminar isso. São dívidas odiosas, quer dizer que foram contraídas à margem da lei e sem nenhum benefício para o país. Portanto, é essa definição legal e internacional da dívida odiosa, que é contraída por transacções ilícitas feitas por ou em nome de ou pelo Governo, por agentes desse Governo naquela época. É preciso renegociar a dívida em condições que permitam ter uma estratégia de desenvolvimento que use recursos para o desenvolvimento em vez de estar a usar cada vez mais recursos para pagar dívida. E usar recursos para o desenvolvimento significa o quê? Significa melhorar as condições de vida das pessoas, melhorar o desempenho da economia nacional de modo geral, isso vai resultar em mais riqueza, mais receitas para o Estado e mais riqueza para a sociedade, se essa riqueza for melhor distribuída do que está a ser neste momento, se a sua distribuição não for tão desigual e for significativamente menos desigual; e se o Estado cobrar os impostos, sobretudo, nas grandes empresas, nos grandes projectos que têm incentivos fiscais redundantes há muito tempo; e o Estado for cobrar os impostos aí. Se a política pública favorecer uma distribuição mais igualitária do rendimento, vai haver mais capacidade de a economia poder pagar os seus compromissos domésticos e internacionais em termos de dívida, dívida soberana, etc., do que tem neste momento. Poderá fazê-lo sem prejudicar o desenvolvimento. Portanto, a questão central mesmo, na minha opinião, é renegociar a dívida, limpar a dívida odiosa, portanto, tirar a dívida odiosa do nosso stock. Isso vai reduzir significativamente a dívida comercial e vai facilitar a renegociação da dívida e depois ligar o processo de renegociação a uma estratégia de desenvolvimento alargada, diversificada, etc.. Há duas coisas que gostaria de mencionar sobre a dívida: uma coisa é que, muitas vezes, quando estamos a falar da dívida pública, as pessoas confundem isso com despesa e não são só as pessoas na rua, os próprios doadores confundem a discussão da dívida com a das despesa. O próprio Estado confunde a discussão da dívida com discussão sobre a despesa. A dívida não é só despesa. A dívida, em primeiro lugar, é uma relação entre receita e despesa e essa relação é dinâmica e reflecte estruturas económicas e produtivas do país. Portanto, quando estamos a falar da dívida, não estamos a falar de cortar a despesa apenas ou de ter muita despesa. Os doadores, as organizações internacionais, o Governo e as pessoas na rua pensam dessa maneira, que a dívida é porque estamos a consumir demais. Não estamos nada. Nós não temos muita despesa na saúde, temos muito pouco investimento na saúde, temos muito pouca despesa corrente na saúde, na educação, etc., nas estradas, nos transportes públicos, no saneamento, na habitação, na segurança social, no financiamento ao desenvolvimento da pequena e média empresa, nos subsídios para o desenvolvimento agroindustrial; nós não temos despesa grande aí, pelo contrário, temos muito pouco, temos muita falta da despesa. Onde nós temos grandes problemas e grandes despesas é nas garantias à dívida do grande capital, nos incentivos fiscais ao grande capital, no cometimento do Estado, no compromisso do Estado com as parcerias público-privadas para o grande capital mineiro, onde o problema da dívida é mais grave é nesta relação, neste compromisso político do Estado com o grande capital do complexo mineral e energético que não contribui significativamente para o desenvolvimento económico e social do país, contribui para o enriquecimento das multinacionais e das oligarquias nacionais ligadas às multinacionais. O problema da dívida não é o de cortar a despesa, é um problema da dívida, por um lado porque temos o problema de insustentabilidade, é renegociar, mas, por outro, é mudar a estratégia de desenvolvimento, mudar a política pública. Para isso, é preciso espaço e esse espaço requer renegociação da dívida; e a eliminação desta estratégia de incentivos fiscais e compromissos políticos com o grande capital internacional e é isso que é o grande causador das dinâmicas de endividamento do país com grandes implicações no resto.
Pensa que, neste momento, há condições para a renegociação da dívida?
As condições podem ser criadas. É muito mais difícil fazer isto agora do que era em 2006, em que houve a última significativa redução da dívida pública de Moçambique e o processo negocial que começou no último Governo do Presidente Joaquim Chissano, que decorreu entre 2005 e 2006, e foi concretizada a redução significativa do stock da dívida. E depois, esse buraco, esse espaço da dívida que foi criado, foi aproveitado pelas oligarquias nacionais durante o período de governação do Presidente Guebuza para o seu enriquecimento através da ligação com o grande capital multinacional, aí isso deu lugar a vários problemas, entre os quais, as chamadas dívidas odiosas, que em Moçambique tem o nome incorrecto de dívidas ilícitas. Ilícitas são as transacções que deram lugar a essas dívidas. Agora, hoje as condições políticas são diferentes e hoje as instituições financeiras internacionais e os doadores usam os problemas criados na governação do Presidente Guebuza, nomeadamente, as dívidas odiosas e outros, como arma contra o Governo de Moçambique e contra Moçambique, no que diz respeito às possibilidades de renegociar. Mas as condições podem ser criadas. Já foram criadas no passado e podem ser criadas de novo. Para isso, é preciso haver honestidade e transparência nas coisas. A primeira coisa que era importante fazer era Moçambique comprometer-se com a eliminação da dívida odiosa. Para isso, Moçambique tem que esclarecer quais são as condições em que essa dívida foi contraída, quem contraiu, etc.. Tem que haver responsabilização. Aquele julgamento mediático da B.O. não foi nenhuma forma de responsabilização sobre as dívidas ilícitas. Aquilo foi punição dos “tipos” que se envolveram nas comissões da dívida, que apanharam as migalhas da mesa; os que andaram a apanhar 30 milhões, 20 milhões, etc., por serviços mal prestados ao Estado e por actividades ilícitas contra o próprio Estado. Mas a dívida não são esses 30 milhões, esses 20 milhões, a dívida é muito mais do que isso. Aquela dívida total não são aqueles 50 milhões das comissões pagas àqueles indivíduos que foram julgados. A dívida total é de 2,5 biliões, 2,5 mil milhões, portanto, é 50 vezes aquilo que foi julgado na B.O. Por que isso está a ser protegido? Por que, politicamente, o Governo moçambicano adoptou uma posição de proteger isso? Isso é parte do que está a estragar ainda mais as condições de vida e as condições económicas do país. A dívida pública de Moçambique, que é depois renegociada no sistema financeiro doméstico, através da venda de títulos de dívida, etc., está a tornar o sector financeiro doméstico cada vez mais especulativo. Este sector já é especulativo por natureza, já tem esta tendência especulativa e fica muito mais ainda porque, no seu negócio principal, ficam títulos de dívida. Uma parte significativa da dívida soberana do Estado é dívida do capital privado, porque o Estado assumiu para proteger esse capital privado, para viabilizar esse capital privado de grande escala. Eu nunca vi o Estado moçambicano proteger o desenvolvimento das pequenas e médias empresas, proteger o desenvolvimento da agroindústria de pequena e média escala, proteger o desenvolvimento alargado da produção. Quando se fala disso, a resposta do Estado é que vivemos numa economia de mercado, mas, quando se fala do grande complexo mineral energético e das oligarquias nacionais a eles associados, o Governo nem sequer vai ao Parlamento discutir esse assunto. Trata desse assunto ilicitamente. Então, nós temos que tornar isso claro, temos que esclarecer esse assunto. Temos que ter uma estratégia clara de renegociação da dívida. Ninguém vai renegociar a dívida connosco se nós não tivermos uma estratégia clara de renegociação, que implica a transferência de recursos da dívida para o desenvolvimento nacional, mas isso tem que estar bem claro, bem definido, para poder entrar neste processo. Tem que ter mecanismos claros de gestão transparente que não permitam mais as dívidas odiosas emergirem em Moçambique ou pelo menos minimizem muito significativamente a possibilidade de isso voltar acontecer. Tem que haver mecanismos instalados e a funcionar, que transformem as finanças públicas em algo transparente para o povo, para o povo poder participar na discussão da política pública. Não é só transparência entre o Governo e os doadores. Se a política é pública, quer dizer, então, que é do povo. Não pode ser apenas que a dívida seja do povo. Mas se nós continuarmos a esconder as coisas, continuarmos no secretismo, continuarmos a ignorar a população, continuarmos a tratar a população como um bando de votantes, que de cinco em cinco anos mantém o mesmo partido no poder, não vai haver condições políticas que Moçambique possa usar para contrabalançar as pressões que as instituições financeiras internacionais, no seu interesse, no interesse do capital financeiro internacional, impõem sobre nós. Neste momento, o único instrumento que está disponível em Moçambique é o gás. Moçambique está a usar o gás como política externa, como instrumento de política externa e para negociar. Mas isso não permite negociar melhores condições para o país, permite negociar um certo fechar de olhos à realidade nacional por parte dos financiadores, mas não melhora as condições do país. Para nós, os moçambicanos, o que é que os doadores pensam de nós ou deixam de pensar é problema deles. Para nós, o problema central é como é que nós tratamos da nossa vida, como é que nós organizamos a nossa vida, para vivermos melhor como resultado do nosso trabalho. Há um relatório do Banco Mundial que mostra que Moçambique, em 2050, vai entrar no grupo dos países de rendimento médio por causa do gás com 35% de pobreza. É por causa do gás, não é por causa do desenvolvimento do país. Que tipo de coisa é esta?
Outro aspecto é que a dívida pública interna tem disparado muito nos últimos tempos. Os dados oficiais do ano passado mostram que houve um agravamento de 24%. O serviço da dívida também se agravou em 2022. Fundamentalmente, o Estado está pressionado, não tem dinheiro para gerir as despesas de funcionamento e recorre à banca interna para financiar as suas operações. Como é que este Estado cuja economia é pouco produtiva pode reverter essa tendência de agravamento?
A dívida pública interna também é agravada pelo facto de que o Estado vende a sua dívida pública no país e, portanto, fica com dívida perante quem compra os títulos da dívida. Além de outras despesas que são feitas, de bens e serviços, que são feitas dentro do país. Agora, se a Mozal pagasse impostos normais, não impostos especiais, estaria a pagar entre 130 e 160 milhões de dólares por ano em impostos.
Se a Sasol pagasse impostos, estaria a pagar um montante não tão grande como a Mozal, não está no mesmo nível de lucros, mas aproximado. Se a Kenmare pagasse impostos, a mesma coisa. Se todos os grandes projectos que já geram lucros há bastante tempo pagassem impostos, Moçambique estaria a angariar, em receitas fiscais de impostos directos de rendimentos do capital, 600 milhões de dólares adicionais todos os anos. Quanto é que o Estado está a vender em títulos de dívidas na economia doméstica? Está a vender menos do que 600 milhões de dólares por ano. Ora, isso quer dizer que, se o Estado cobrasse os impostos do capital, não são apenas os impostos sobre o rendimento do trabalho, mas os impostos sobre o rendimento de capitais, que seriam devidos se não houvesse a política de incentivos redundantes que o Estado aplica, no actual nível de despesa, nós não teríamos necessidade de estar a recorrer ao endividamento desta forma.
O problema está ligado com a política pública, com a política fiscal, com a redistribuição dos rendimentos. Se nós formos a ver, os impostos que saem da Mozal, da Kenmare, da Sasol, são do rendimento dos trabalhadores, são impostos de rendimentos de capital. Numa economia com os níveis de investimento que a de Moçambique teve, com as taxas de crescimento que a de Moçambique teve, como é que se justifica não haver receitas fiscais para pagar o desempenho corrente do Estado? Justifica-se por causa da enorme desigualdade na redistribuição do rendimento e por causa de uma política fiscal que é altamente reaccionária, é altamente contra qualquer forma justa de distribuição do rendimento.
É verdade que o Governo e o Presidente Nyusi estão sempre a dizer que nós consumimos mais do que produzimos, que nós temos que produzir mais, etc., mas quem é que consome mais do que se produz? A maioria da população de Moçambique vive abaixo da linha da pobreza. Quem é que pode ter coragem de ter tão pouco escrúpulo, que é capaz de dizer que o povo consome mais do que aquilo que produz? A outra coisa é como é que nós podemos justificar os problemas com baixa produção quando, durante mais de uma década, tivemos taxas de crescimento da economia de 7%, taxas de crescimento do PIB per capita de 5,5%? Mesmo no período de recessão de Moçambique, nestes últimos anos, as taxas de crescimento têm sido positivas. São muito baixas, mas são positivas.
O problema é a nossa estrutura económica; é o problema de quais são os incentivos à operação na economia; o problema de política pública e de distribuição de rendimento. São estas questões que nós temos que tratar para podermos lidar com questões desta natureza. Se nós formos a ver a outra componente, o portefólio do sistema bancário comercial em Moçambique, aproximadamente 55% e 60% de toda a actividade bancária, os investimentos, os créditos, o financiamento, o crédito, as aplicações financeiras dos bancos são para duas áreas improdutivas; uma são os títulos da dívida pública e a outra é o consumo de bens de luxo, naturalmente por parte dos investidores, dos capitalistas nacionais e internacionais que existem em Moçambique, do grupo dos novos-ricos com poder de compra, que estão a fazer casas de luxo, comprar carros de luxo, etc., esta é uma parte significativa da despesa dos bancos, para o financiamento deste consumo e os financiamentos dos títulos da dívida. A parte da despesa bancária que vai para a produção e para o comércio está a diminuir significativamente com percentagem da despesa total, da actividade total do sector bancário. E a parte que vai para a produção, apesar de estar a diminuir como percentagem, vai para os megaprojectos porque é nesses onde a rentabilidade está garantida; são esses que podem pagar os juros.
Com taxas de referência bancária de 17%, com juros reais de 8 a 10%, com taxas de reservas obrigatórias de quase 40%, o que é que vamos fazer com o sistema bancário nacional? Vamos transformá-lo num sistema que é completamente especulativo e completamente inútil para a promoção da produção.