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“Não se sentem moçambicanos livres aqueles que são perseguidos por pensarem diferente”, Alfredo Manhiça

O filósofo, analista político e frei, Alfredo Manhiça, é de opinião que os moçambicanos não estão a desfrutar a sua independência política, desde 1975, porque a Frelimo não teve coragem suficiente para resolver problemas como o tribalismo, o regionalismo e a discriminação, que ainda hoje persistem. Entende que é hora de o país abrir uma nova página política, que passa pela liberalização política e abster-se de diálogos secretos entre dois movimentos armados, para evitar o surgimento de juntas militares. Acompanhe a entrevista 

 

Moçambique alcançou a sua independência em Junho de 1975. Infelizmente, dois anos depois a armas voltaram a troar, não contra um opressor, mas os moçambicanos começaram a matar-se. O que teria contribuído para este rápido retorno à guerra?

Infelizmente, Moçambique conquistou a sua independência antes de os participantes directos da luta armada terem resolvido os problemas internos, como incompreensões, tribalismos, regionalismos e modelos democráticos a adoptar depois da independência. A Frelimo nasceu com problemas internos muito graves. Houve muita tentativa e preocupação no meio da Frelimo em encontrar uma solução pacífica, mas não conseguiu. Em algum momento houve uma perda de controlo destes conflitos internos que foram longos de e atingiram algumas figuras séniores do movimento.

Os referidos conflitos internos foram arrastados até a independência nacional. De facto não havia nenhuma forma de não arrastar estes problemas porque algumas das soluções ou tentativas de soluções conduziram a certas matanças e assassinatos dentro do próprio movimento. Provavelmente a história oficial não fale disso mas a partir de certos documentos que vão aparecendo ali e acolá e depois, a partir da história paralela que ajuda a reler a história da Frelimo, mostra que estes conflitos foram tão graves que de facto ou Frelimo teria admitido a existia destes conflitos e afronta-los com cabeça fria, para se procurar reconciliação interna e profunda, ou então os problemas deveriam chegar até a independência.

Infelizmente, não houve coragem suficiente para resolver os conflitos, ou não se tomou a sério o que aconteceu durante a luta armada e ninguém imaginou que poderia se perpetuar no tempo e no espaço.

Mas também o contexto político internacional daquele tempo era fértil para alimentar conflitos internos de um movimento que lutava pela libertação. Estamos a falar de um período bipolar. Os países que estavam em luta para se libertar dos colonialistas, tanto interessavam ao bloco ocidental, portanto, aos Estados Unidos em particular e ao bloco oriental, como a união soviética em particular.

Na existência destes conflitos internos no seio da Frelimo, era natural que todos aqueles que viram os seus problemas, as suas inquietações, não resolvidas a nível interno do partido, do movimento neste caso, procurassem encontrar uma outra solução e ajuda não poderia faltar.

Nós sabemos que oficialmente a origem da Renamo é atribuída a forças estrangeiras, mas isso, repito é apenas oficialmente, porque na realidade houve interesse estrangeiro, ou seja as forças estrangeiras exploraram os conflitos internos do movimento para apoiar os seus “opositores”. Mas mais do que isso, na minha opinião, o que levou os moçambicanos, apenas dois depois a voltarem a uma guerra, não contra um inimigo externo, mas entre se, foi porque havia muitos conflitos internos, muitas incompreensões, muitas tensões, e de alguma forma os ódios internos que se construíram ao longo da luta armada, por causa dos problemas que foram surgindo, entre eles tribais e regionais, não encontraram a sua solução e isso levou-nos a uma guerra.

Uma guerra que terminou em 1992 e dois anos depois foram realizadas as primeiras eleições gerais. Infelizmente o país nunca viveu uma paz efectiva, tendo em conta as tensões políticas atinentes aos resultados eleitorais até que em 2012 o então presidente da Renamo Afonso Dhlakama, retornou as matas. Justificava-se o regresso de Dhlakama para as matas?

Não saberei dizer se se justificava ou não o regresso de Afonso Dhlakama as matas. Por um lado pode se dizer que não se justificava, depois de 20 anos de assinatura dos Acordos de Paz Roma e de todo o caminho da democratização do país e da participação da própria Renamo na vida política moçambicana.

Mas, por outro lado, é preciso admitir que o diálogo entre a Renamo e a Frelimo, mesmo depois da assinatura do Acordo Geral de Paz não foi muito pacífico e nem leal. Eu acho que foi um diálogo que transportou consigo os problemas do passado, e também uma tentativa de ultrapassar os problemas do passado, mantendo ainda as posições de vantagem. Na minha opinião, este último facto é que levou Afonso Dhlakama a regressar as matas.

Mas há um outro aspecto que pode também ter contribuído para que o país retornasse a guerra vinte anos depois, segundo algumas interpretações. Logo após a assinatura do acordo de paz, o governo do presidente Joaquim Chissano, pode ter feito um relativo esforço de uma reconciliação e lealdade política recíproca. Este facto pode não ter sido seguido pela administração Guebuza. Pode ter mudado esta perspectiva, ou então a administração Guebuza mudou o curso dos acontecimentos tendo em conta que os problemas do passado não tinham sido suficientemente resolvidos. Portanto, num mundo onde fazer política baseando-se em posições conquistadas de vantagens no meio de problemas mal resolvidos, a possibilidade de se retornar a violência armada é muito grande, e foi o que aconteceu com o nosso país

Afonso Dhlakama morreu em Maio de 2018, numa altura em que já estava a negociar com o actual presidente da República, Filipe Nyusi, a pacificação do país. Os acordos foram depois assinados entre o presidente Nyusi e o actual líder da Renamo, Ossufo Momade, em Agosto do ano passado. Na altura já tinham sido criada a auto-proclamada Junta militar da Renamo, liderada por Mariano Nhongo. Justifica-se o surgimento da junta?

Para mim, esta seria uma prova segundo a qual o problema de Moçambique não era Afonso Dhlakama. Na minha opinião ele era a figura na qual se configuravam os problemas políticos moçambicanos. Se o problema fosse ele, após a sua morte o país poderia proclamar uma paz definitiva. Mas esta paz definitiva não veio. Aliás, 45 anos após a independência, parece que agora estamos em perigo de guerra, pior do que com Dhlakama vivo. Hoje temos dois focos de conflitos em Moçambique. Vou centrar o meu comentário no conflito da zona centro.

Já no tempo em que o presidente da República estava a negociar com Afonso Dhlakama, houve uma certa inquietação, uma certa reclamação a nível nacional, de certas figuras, certas forças políticas, e mesmo da sociedade civil a reclamarem. Para eles o problema político moçambicano não era um problema entre o presidente Filipe Nyusi e o então líder da Renamo. Para eles e concordo planamente com os mesmos, o problema político moçambicano é nacional…é de todas as forças politicas e da sociedade civil. É daqueles que pensam diferente.

Então face a isso havia necessidade de todos os moçambicanos saberem quais eram os pontos que estavam na mesa de diálogo entre Filipe Nyusi e Afonso Dhlakama e em que passo se estava no diálogo. Mas infelizmente houve sempre secretismo em relação a este diálogo. Mariano Nhongo é fruto deste diálogo secreto. Tudo indica que o diálogo em referência, foi continuado com o actual presidente da Renamo, Ossufo Momade.

Pensa-se que Ossufo Momade tenha sido uma das pessoas que esteve ao lado de Dhlakama no momento em que este estava a negociar com Filipe Nyusi, ou que pelo menos estivesse informado daquilo que estava a ser discutido. Pelo sim ou pelo não, a forma como Ossufo Momade deu continuidade ao diálogo, ou comos os pontos tinham sido colocados no tempo de Dhlakama, parece que a solução não conseguiu ser abrangente. Não houve consenso na solução do problema, não entre Filipe Nyusi e Ossufo Momade, mas no seio das forças residuais da Renamo. Para mim faltou abertura para que cada membro sénior da Renamo e até o guerrilheiro raso, pudessem se expressar ou pelo menos contribuir neste percurso de diálogo.

Na sua opinião como é que estes problemas podem ser resolvidos 45 anos depois, de modo que os moçambicanos desfrutem da sua independência sem condicionalismos?

Quarenta e cinco anos depois, significa que nós já estamos a maturar na nossa própria consciência, na construção de uma entidade que nós chamamos Estado. Problemas existiram e vão continuar a existir mas, na minha opinião, o modo para ultrapassarmos estes problemas é abrirmos uma nova página da realidade política moçambicana.

A política moçambicana, por muito tempo até nos nossos dias, continua a ser feita como se fazia durante o tempo da luta armada. Quem pensa diferente é inimigo e deve ser abatido. Portanto na minha opinião chegou a altura de abrirmos uma nova página da nossa história política. Abrir uma página nova da nossa política, significa construirmos um caminho sério e profundo da liberalização política moçambicana. Nós celebramos agora os 45 anos de independência nacional, mas independência política ainda deixa muito a desejar.

O exemplo disso esta o facto de existirem no nosso país perseguições a pessoas que pensam diferentemente do oficial. Até organizações de peso civil e social muito forte, como por exemplo a Conferência episcopal de Moçambique, sentem isso. Isto é sinal claro de inexistência de um espaço político sereno, onde de facto os moçambicanos podem deixar as suas opiniões e o seu modo de conceber a realidade política, social e económica do país. Seria uma oportunidade para se escolher a ideia que traga benefícios para a maioria dos moçambicanos.

Sabemos também que em Moçambique praticam-se certos assassinatos e esses assassinatos muitas vezes são relacionadas a realidade política. E todos nós sabemos que estes assassinatos estão directamente ligados a forma diferente de pensar. É mais uma prova que ainda não somos um país verdadeiramente democrático. De facto se já durante a luta armada, o tempo em que os moçambicanos deveriam ter-se unidos entre eles para uma causa comum, matavam-se, isto prova que passados 45 anos ainda estamos na mesma situação, ou seja continuamos a pensar que quem pensa diferente de mim é inimigo.

Por outra lado, aqueles que parecem estarem tranquilos pela forma de pensarem é porque a sua opinião esta na mesma linha da opinião oficial. Mas atenção! Nós não sabemos se de facto aquela opinião esta de facto em linha com o pensamento oficial, porque de facto há uma coincidência, ou porque eles fazem esforço para estarem alinhados com o pensamento oficial, para poderem sobreviver. Se é assim, estas pessoas também não estão livres. Não se sentem moçambicanos livres 45 anos após a independência nacional, aqueles que são perseguidos por pensarem diferente, mas também nem sequer estão livres os moçambicanos que manifestam as suas opiniões de forma oficial, se de facto o fazem para poderem sobreviver. Estes últimos não são homens…são marionetas…são bonequinhos que estão a ser telecomandados. Então não podemos dizer que estamos efectivamente independente neste sentido.

Os insurgentes de Cabo Delgado podem ser frutos desta falta de independência política no país?

Talvez não…talvez não…mas provavelmente se o nosso Estado moçambicano tivesse conduzido a independência nacional de uma outra maneira, provavelmente hoje não teríamos aquele problema. O problema de Cabo Delgado, tudo indica que tem uma matriz terrorista. Mas atenção, ter matriz terrorista não quer dizer que necessariamente as causas são o islão. Não é isso. Temos que ler o problema de Cabo Delgado como um problema internacional. Desde os primeiros ataques das embaixadas americanas em Quénia e Tanzânia, há cerca de 20 anos, todo o Sahel começou a ser habitada por células terroristas, que foram descendo para litoral de África.

A forma de agir destas células terroristas é bem conhecida, mas parece que ao nível do governo de moçambique, em 45 anos, este aspecto não foi tomado em consideração, digo isso porque sabe-se que alguns países estão associados a nível internacional, ao financiamento de acções terroristas e nós tranquilamente fizemos acordos com estes países e abrimos portas para que operassem no nosso país. Portanto isto é falta de atenção a um problema grave internacional que poderia de facto afectar a nós.

Aliás, várias vezes, representantes de mesquitas no norte de Moçambique, chamaram atenção ao governo, em entrevista, há vários anos que havia certos grupos que circulavam na região norte do país, supostamente islâmicas mas com actividades obscuras, mas o governo não tomou em consideração estas denúncias. Então ao não ter atenção a estes pormenores significa que o Estado moçambicano estava preocupado com coisas mundanas quando de facto a função primordial do Estado é garantir a segurança dos seus cidadãos. Estes factos tem a ver com o modo como nós entendemos o Estado e o modo como aqueles que são dirigentes entendem a sua função pública.

O problema dos insurgentes em Cabo Delgado pode ser resolvido com o uso da força? 

É um bocadinho difícil dizer sim ou não. Mas é verdade que nós não podemos ignorar que o Estado, enquanto organismo de uma sociedade perfeita, ela é a única entidade legítima para usar a força. E numa situação em que se ofende a integridade pública, então o Estado Moçambicano deve agir e uma das formas de acção é de facto utilizar as armas para poder defender os seus cidadãos. Mas atenção que este não é provavelmente o único recurso. Poderia haver um diálogo, mas há um problema. O problema de Cabo Delgado é um pouco complexo. Se de facto estes ataques tem a matriz terrorista, então não há como negociar, pois o terrorismo não tem Estado.

Mas há uma outra preocupação. Se você quer utilizar as armas, tem de ter um exército disciplinado. Se tens um Exército que algumas vezes é acusado de carbonizar as casas das populações e de violar as próprias populações que deveriam defender, aí surge um outro problema. De facto parece que o nosso Exército não consegue ter esta disciplina exigida.

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