O País – A verdade como notícia

Na PIDE não se fala

Por Gita Bernardo Honwana Welch


Foi-me posta a questão: “Qual a sua visão sobre Luís Bernardo
Honwana? Qual a sua importância para as letras, artes e cultura Moçambicanas? A STV e o ‘O País’ querem contar a história e homenagear Luís Bernardo pelo seu Octogésimo aniversário”.

Não tenho bem a certeza do tipo de resposta que se espera de mim, irmã do Luís.

Mas aqui vai:

Em primeiro lugar, bem hajam a STV e o “ O País” pela homenagem que decidiram prestar.

Em segundo lugar, eis o que tenho a dizer, em jeito de resposta. Honesta e tendenciosa, necessariamente, e muito! (Nem eu me sentiria bem se assim não fosse).

Deixarei a outros, (quiçá mais isentos do que eu), a tarefa de tecerem os seus comentários e dizerem de sua justiça sobre a contribuição e influência do Luís Bernardo Honwana “para as letras, artes e cultura Moçambicanas”.

Eu escolhi (confesso que depois de alguma hesitação), cingir-me a algumas memórias de infância, que guardo muito afetuosamente.

Sou a sétima de um total de 10 irmãos, parte de uma família grande, unida e coesa (como aliás, as famílias normalmente tentam ser). Como tal, as nossas trajectórias pessoais foram sempre muito interligadas e entrelaçadas! Por isso acho que de alguma forma, cada um de nós tem a sua quota-parte de influência no percurso de cada qual.

Pois então.

Lembro-me da existência, na nossa casa, na Moamba, de uma malinha castanha, fechada, misteriosa, escondida debaixo da grande cómoda do quarto dos nossos pais. E os irmãos mais velhos, proibiam-me de tentar abrir ou mesmo tocar na malinha porque… “Gita, não mexe, é do Mano Luis!” Isto quando eu tinha 4 ou 5 anos (e o Luís 10 ou 11).

O mistério da malinha já me intrigava há algum tempo, quando um dia, as manas mais velhas me chamaram para um canto e me segredaram que a malinha continha um verdadeiro “tesouro”, muitas revistas aos quadradinhos que elas liam às escondidas porque o Mano não gostava que se mexesse na mala! Elas costumavam abrir a malinha muito cuidadosamente e em segredo, e liam as revistas, depois de fazerem os deveres de casa e antes do Mano regressar da escola, no comboio das 18. Era crucial não pôr cuspo nos dedos para virar as folhas, não rasgar nada e voltar a deixar tudo arrumadinho como dantes, antes de fechar e guardar a mala. Eu jurei que seguiria estas regras.

Mas o mano acabava sempre por descobrir que a mala tinha sido mexida e isso dava sempre confusão. Só que para nós, valia sempre a pena!

Como não? Foi aí o nosso primeiro contacto com as fascinantes histórias de outros mundos, suas gentes e seus heróis: os valentes ‘cowboys’, os guardiões da ética e da lei, Tom Mix, Hopalong Cassidy, Buffalo Bill, Roy Rogers; os implacáveis xerifes contra os horríveis malfeitores! Não esquecendo os lendários e gloriosos chefes índios dos Navajos, Apaches, Sioux, Cherokees, Comanches e outros, corajosamente protegendo, a honra do seu povo, as suas tradições e o seu território, contra os agressores estrangeiros!!Waw!! E o misterioso “Fantasma”? lutador implacável  contra o crime e os criminosos e defensor dos povos da floresta, que operava a partir de Bengalla, um (fictício) país Africano!

Alguns anos depois, o mano levou-me pela primeira vez ao Luna Parque (simplesmente extraordinário!), e mais tarde a uma sessão do Cine Club. O filme era “O Deserto Vermelho” de Antonioni, com Mónica Vitti. Não me envergonho de dizer que adormeci a meio do filme. Era muito comprido, eu compreendia pouco do que se estava a passar na tela, e além disso  estava cansada. Mas tive subsequentemente o privilégio de ver muitos outros filmes no Cine Club e de gradualmente entrar em contacto com os maravilhosos  ciclos do Novo Cinema mundial dos anos 60. Fantástico!

E depois, o incentivo para as leituras, para as nossas intermináveis conversas sobre filmes e livros! Por qualquer razão associo os nomes de Hemingway, Steinbeck e Jorge Amado a esses primórdios.

Nos terríveis 3 anos e meio da sua prisão, continuei a aprender com o Mano.

Tínhamos visitas com ele, na cadeia da Machavasemanalmente, para levar comida e mudas de roupa.

Por detrás das grades, ele deu-me lições teóricas sobre como usar a sua preciosa máquina fotográfica que ele me deu de empréstimo. Era uma “Yashica Mat”.  Eu tinha começado a trabalhar no jornal ‘A Tribuna’ e precisava de saber tirar fotos. Ele explicava como tirar boas fotos e eu ia para casa praticar com a máquina. Depois discutíamos o resultado e ele incentivava-me a melhorar.

Quando numa ocasião a PIDE me foi notificar ao liceu onde eu estudava, para ser presente a um interrogatório na semana seguinte, eu comuniquei isto ao Mano durante a visita. Eu estava num estado de grande agitação e disse: “Vão perguntar-me sobre ti. O que digo?” Ele brindou-me com aquele sorriso calmo e disse: “Como já deves saber, não é só sobre mim. É sobre nós. Mas de qualquer modo, é simples. Na PIDE não se fala”.

Na verdade, Mano, na PIDE não se fala.

Parabéns pelos 80 anos!  

 

Gita Bernardo Honwana Welch

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