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Moçambiquero-te 

Não é todos os dias que se apresenta um livro com estas características. Este livro inicia criativamente de forma inusitada com uma declaração publica de amor Moçambiquero-te!  Neste sentido, resgata textos que a autora publicou e discutiu em diferentes lugares, no Brasil, em Portugal e em Moçambique aglutinando-os neste livro porque não os tinha partilhado com os estudiosos e diferentes públicos em Moçambique. Uma vez que foi movida por afectos a autora intitulou o livro de “Moçambiquero-te”, expressão tirada, com a devida vénia, do livro Moçambicanto, da autoria de Gulamo Khan, o poeta que foi também, invocado no Projecto “Moçambiquero-te”, uma peça teatral (criação colectiva sob a direcção de Henning Mankell e a produção de Manuela Soeiro), intitulada “Vestir a terra”, representada pelo Grupo Teatral Mutumbela Gogo, em 1994, a seguir ao “Acordo Geral de Paz”.

Não é de espantar porque em toda a escrita de autora Sara Laisse nos ideais de vida que a perseguem perpassa esse amor pela terra e seus habitantes, um inconformismo um desejo de transformação. Transformação é uma daquelas palavras avulsas, corriqueiras e transversal, mas profundamente necessária à nossa humanidade, hoje mais do que nunca.

A escrita comprometida com causas. Neste sentido, por via das suas actividades de cidadania, e acima de tudo pela escrita, através da pertinência dos temas que aborda, convoca a uma mudança, mas não de superfície. Motiva a uma viragem, mas não apenas de modas ou de ventos. Cada escrito constitui um apelo em prol de transformação da forma total de ver, a maneira de nos vermos a nós próprios, a maneira de percepcionarmos o mundo, de interpretarmos a justa relação com o real, de destrinçarmos o que pode ser portador de sentido e aquilo que, em vez disso, o anula. É uma viragem, certamente. Mas para o efeito ela provoca, através dos seus textos aquela adesão de coração que nos coloca por inteiro a viver — na verdade, a experimentar e a ousar viver — por uma forma de ser e estar diferente, sensível às singularidades. Esta transformação que subentende um nível de consciência que insufle a coragem de olhar para o estado das coisas e redirecionar os trilhos como pessoas, como nação, como mundo, assumindo que a única verdadeira forma de transformar é transformar-se.

Neste sentido, este Moçambiquero-te tem como pano de fundo – em muitos dos textos que o compõem – a questão premente da interculturalidade.  Há a premência de se promover um diálogo intercultural, contínuo e reiterado não deixando que a lógica do medo ou do lucro ponham em causa as práticas múltiplas de hospitalidade, presentes na essência da nossa convivialidade sociocultural.  Moçambiquero-te é um exercício literário que nos remete à necessária experiência do encontro, ao exercício solidário da inclusão.  Ela, aliando ciência e consciência, na vida e na escrita, acredita na igualdade associada ao respeito às diferenças de classe, etnia, sexo, gênero, nacionalidade, língua e religião existentes entre as pessoas.

Logo no texto inicial Interculturalidade como um desafio – Poderá a lusofonia constituir um espaço de compreensão entre povos? kutxula vitu, kutsivela, kuyandla, kubieketa e baptismo católico como rituais para diálogo, onde demonstra a existência de equivalência de funções e de significados entre os rituais de passagem da cultura ronga (kutxula vitu, kutsivela, Kuyandla, Kubieketa) e o baptismo da Tradição Católica Portuguesa, faz- nos perceber que tudo quanto humanamente associamos ao sagrado, na diversidade das suas ritualidades e  morfologia, conserva  entre si flagrantes equivalências.

Que é como quem diz: as experiências religiosas, tal como afiança  Tolentino Mendonça, um dos autores citados no livro  são instrumentos para observar o enigma do mundo; são modos de habitar não apenas a pergunta radical que nós humanos transportamos, mas aquela interrogação ardentemente irremovível que somos; são estratégias de perfuração do visível; são a consideração de que aquilo que tateamos não é o fim, mas o princípio apenas; são laboratórios para o interminável e doloroso espanto que viver significa; são epifania, relance, vislumbre, deslumbre, revelação.

Neste sentido, por derivarem do espanto comum diante do mistério da existência essas espiritualidades diversas tanto derivado das religiões cristãs como das religiões africanas mantêm uma relação íntima com a literatura, numa conexão tão inesperada, tão criativa, tão verdadeira. Assim, porque a Literatura e espiritualidade encontram-se aí: na busca e na tradução de um sentido para a vida, para além desses rituais factuais entra para o reino da ficção literária para complementar a interpretação dos rituais acima mencionados com a análise dos poemas Quengueleuqeze de Rui de Noronha, moçambicano e o Baptsmo de Rubem Alves, autor brasileiro.

Mergulhando em Nyembête ou as cores da lágrima, romance de Calane da Silva, Sara reflecte sobre novos modelos de construção do romance africano ressaltando neles a  presença da  polifonia (diversidade de narradores e vozes, poesia cantada e da morte com possibilidade de retorno, situando-o como um romance auto-ficcional, portador de marcas biográficas do seu autor e ressaltando a presença  da espiritualidade, centrada nos seus estudos sobre Antropologia espiritual. Sara Laisse demonstra como neste romance NCL, o autor hoje  mergulhado em outras dimensões da existência, como ele o diria,   emprega a sua própria vivência da espiritualidade  como uma lente por detrás da qual  se contempla  o assombroso enigma da  existência, onde o crer  se constitui como uma condição necessária para viver e acima de tudo  definir  o caminho que se trilha na vida.

Os temas abordados proporcionam-nos um profundo mergulho em nossas realidades culturais – “minha e dos outras”, onde perpassa a persistente questão  “quem somos nós e quem são os outros”? Pela nossa autoconsciência e valorização precisamos assumir um processo transformador. Mas para isso acontecer é preciso “indignar-se” com a realidade, como pede também o Papa Francisco.

Por via destas leituras múltiplas, que a autora nos apresenta, sentimos como a sabedoria entra pela via do olhar, pelas estradas do sentir, pelas encostas rolantes das  lágrimas, pelos sorrisos de esperança, pela seriedade com que encaramos a vivência da cultura de cada povo.  Da forma como ela mergulha fundo na pesquisa e oferece a alma a esta causa, há como que um apelo, para que por esta via da literatura, da cultura da leitura, possamos perceber que uma coisa é saber, outra coisa é vivenciar na realidade; ultrapassar o saber racional, passando-o para o sentir emocional. É importante sempre criar pontes, mesmo sabendo que elas não são feitas de um dia para o outro, mas que vão se construindo desde a base, começando pelo respeito às diferenças.

          Em Moçambiquero-te, Sara Laisse   demonstra o quão essencial é voltarmo-nos para dentro de nós e analisar em que medida estamos a vivenciar as nossas práticas culturais em nosso modo de ser; se assumimos a nossa identidade, a nossa história, ou se precisamos de voltar ao processo de busca de nossas raízes. Desafia-nos a dar passos, despertar, acolher, aceitar e valorizar a nossa história sem camuflar o que somos; voltar sempre às nossas origens, buscando aprender com nossos avós e pais; continuar a transmitir os valores que herdamos de nossa cultura, seja oralmente, ou através da escrita, dos meios de comunicação social e através de nossa convivência, para que não os percamos, mantendo nossas relações interculturais. E  ela o faz na primeira pessoa, pesquisando e colhendo das fontes viva orais, para além da bibliografia.

Nestes artigos, a autora demonstra que o encontro entre as culturas constitui hoje, mais do que nunca “uma oportunidade de enriquecimento e de desenvolvimento humano integral de todos”.  Parte-se do principio de que se está perante uma “oferta recíproca” entre as culturas, como diria o Papa Francisco.  Para o efeito, por via destes e de outros livros, das tertúlias itinerantes que promove e outros projectos, Sara  Laisse  busca  comunicar, descobrir as riquezas  singulares da nossa diversidade, valorizar aquilo que nos une e olhar as diferenças como possibilidades de crescimento no respeito por todos.

Nessa perspectiva não há escolha senão a fraternidade, pensada não só a nível individual ou grupal, mas também à escala mundial. Se hoje é visível a olho nu que os pilares mundo vem sofrendo um desmoronamento, por falta de fraternidade, e continuarmos a defender posições de superioridade que impedem a fraternidade; é preciso nos decidirmos a dar passos concretos, reais, possíveis, que estão ao nosso alcance, de modo que o mundo se torne mais fraterno! Este livro, pelo conteúdo e pelo testemunho de vida da autora, se enquadra dentro destas premissas.

Leitor como protagonista

No fundo o grande protagonista de Moçambiquero-te  é o leitor, próximo ou distante,  convidado a mergulhar no grande oceano das culturas, da literatura,  através desta carta de navegação, onde a autora o remete para várias outras leituras, dialogando com os mais diversos  autores clássicos e contemporâneos das áreas da literatura, da cultura da filosofia, num estilo límpido que concilia erudição e simplicidade  conjugando o rigor  académico com uma brandura poética,  revestindo cada artigo de uma metodologia clara e transparente.

A interpretação antes focalizada no autor, depois no texto e agora também o advento do leitor – ao ler os comentários interpretativos da autora, o leitor é despertado no sentido de ir ou voltar com uma apetência mais desejosa aos livros alvos de abordagem, a fim de ruminar as palavras e redescobrir as infinitas possibilidades interpretativas, livros que nunca acabam de dizer o que tem a dizer.

Os textos literários apresentados são vividos como lugares de encontro, lugar de cumplicidade entre autor e leitor e ao mesmo tempo chave indispensável para a interpretação do real.  Uma autora hospitaleira que nos convida à tomarmos também o nosso lugar na cozinha da cultura e da literatura, para fazer da leitura uma experiência devorante.

Transdisciplinaridade

Outra dimensão presente no livro é a da transdisciplinaridade, um outro modo de pensar e produzir conhecimento, que recusa a separação rígida entre dos saberes, que se esquiva dos especialismos cegos, que não participa da rígida cisão entre subjetividade e objectividade, que se abstém de tomar parte na separação entre inteligência e sensibilidade, o abismo entre as ciências e entre elas e a filosofia, a arte, a poesia e a experiência vivida no quotidiano, como diria Severino António.  Convido-vos a ler com amorosa atenção este Moçambiquero-te, a captura inteligente da escolha dos muitos textos de autores que ela semeia em cada capítulo, o modo como entrelaça no mesmo fio de conversa autores aparentemente distantes.

Criadora dessa ponte feliz entre saberes, acima aludida, Sara Laisse coloca no mesmo livro questões relacionadas com a Sociologia da Leitura, a Antropologia Cultural, a Literatura, a Teologia da Inculturação, entre outros.

Num texto há um olhar sobre algumas obras de Eduardo White, e a poesia lírica como um estímulo para o despertar de  uma consciência nacionalista e democrática, noutro amparada na Sociologia da Leitura e na História (artigo Literatura moçambicana: rastos e rostos da última década – 2010/2020) a autora arrola autores e obras de escritores moçambicanos, publicados em Moçambique e no estrangeiro, referenciando o género literário dos livros e de algumas das editoras que os publicaram,  críticos literários que abordaram alguns dos textos do período em análise, alguns dos quais  trouxeram inovações do ponto de vista de abordagem a subgéneros literários pouco escritos em Moçambique.

Em  “A Nossa história é a nossa bússola”: desafios para a interculturalidade de Afonso Vassoa aborda questões da interculturalidade e  num  relance a toda a  obra deste autor; em Espelhos e Mapas: a poesia em itinerância aborda o que denomina de  enigmas, dado o uso de  máscaras, imagens ou fantasia para passar a sua mensagem, a existência de muitos trânsitos, tanto temporais quanto histórico-geográficos e culturais com recurso  aos códigos culturais e históricos ligados ao nyau, num estudo antropológico em torno desta obra de Ana Mafalda Leite.

Movida pela necessidade de contribuir para o debate sobre o tema “vidas/narrativas em trânsito: movimentos migratórios nas literaturas contemporâneas de língua portuguesa”, analisa a obra literária Apocalipse dos Predadores (AP), do escritor moçambicano Adelino Timóteo, numa perspectiva que cruza a literatura e outros saberes de cariz etnográfico, com características básicas do Romance Histórico. Em Ver e sentir: voz(es) feminina(s) com saudades do futuro Sara Laisse   aborda a poesia de Noémia de Sousa e como a(s) voz(es) por ela criada(s) literariamente apreendem a época histórica colonial, vozes e mensagens que conforme argumenta, poderiam, no contexto socioeconómico actual em Moçambique, ser relidas e recontextualizadas, pois mantêm uma tremenda actualidade.

Em Lapidar a Palavra em Dentro da Pedra ou a Metamorfose do Silêncio, de Japone Arijuane, exaltada a preocupação deste autor em fazer da palavra a sua matéria-prima, lapidando-a ou esculpindo-a a fim de obter poesia comprometida com a dimensão de um eu lírico solitário que se faz porta-voz de um nós solidário. Com Énia Lipanga reflecte sobre a abordagem da condição humana pela   poesia lírica, onde a escrita se revela trabalho de transformação de uma matéria para sobreviver, a autora apresenta reflexões sobre a produção literária africana e seu contributo para o desenvolvimento, fazendo   a apologia redentora do amor, advogando que: a cultura abre mundos, abre corações e liberta-os para o amor. É de amor que o mundo carece, de amor-próprio e amor para com o outro. É de capacidade de sermos cultos e cidadãos de plenos direitos de o ser que as sociedades precisam. É de renovação de modos de fazer que precisamos para a evolução da nossa espécie.

Com optimismo, a autora augura que a Literatura tanto na perspectiva universalizante, como localista, será chamada a reeducar o mundo; reescrevendo temáticas que estimulem uma maior solidariedade em prol da preservação da espécie humana; um maior intercâmbio na solução de problemas, visto serem os mesmos, ocorrendo algumas excepções derivadas de cada contexto político, económico, cultural e geográfico.

No artigo Da Inculturação ao Diálogo Intercultural e Ecuménico: vida e obra de Monsenhor Joaquim Mabuiangue, baseando-se na biografia deste eminente prelado, de autoria de Maria Carlos Ramos, pode ler-se esse apelo à interculturalidade e ao humanismo, assentes numa diversidade de depoimentos vários, daí ter o título: uma vida a várias vozes.

Em Ohana: fora de casa, com a casa às costas, a autora apresenta o percurso musical e a interpretação de algumas das obras do autor e compositor moçambicano Cândido Xerinda, interpretando três poemas ou letras escolhidas, nomeadamente: Xigubo, Ximeliyana e Ngoma Leyi perscrutando temas de índole socio-cultural, com fundamentos na cultura bantu. Cândido Xerinda demonstra que, afinal, a globalização pode caminhar, festivamente, em dois sentidos, ao levar a língua Cironga a Paris, com plenos direitos de cidadania cultural.

Resumidamente cada assunto deste diálogo escrito com o leitor constitui um desafio tão antigo quanto a própria humanidade, tão actual quanto os dilemas que enfrentamos aqui e agora.  A todos os navegantes deste oceano, em cujas ondas navegamos sob a regência de Sara Laisse, pelos trilhos deste Moçambiquero-te, convocamos como diria Carlos Rodrigues Brandão, a   uma boa leitura, uma boa aventura, uma boa viagem.

Maputo, Fevereiro de 2024.

 

 

 

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