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Michael Jackson canta “Billie Jean” e dança moonwalk esta noite

O rastilho foi o Michael Jackson. Via, com alguma displicência, um canal de televisão quando se refiram ao Michael, que naquele dia faria 60 anos. Eu estava em Berlim, quando, a 25 de Junho de 2009, no pátio em que nos encontrávamos, numa embaixada cultural, a actriz Graça Silva veio derrubar-nos com aquela incauta notícia: a morte do Michael Jackson. Corri para o quarto para me ligar a um televisor diante da incredulidade que tomara conta do mundo. O Michael Jackson teve uma importância danada na minha vida e de muitos. Creio que nunca contei isto à Graça e ela já não está cá para ler este texto. Deu-me agora para ouvir todo o Thriller de novo: “Wanna be startin´somethin´”, “Baby be mine”, “The girl is mine” (com Paul McCartney), “Thriller”, “Beat it”, “Billie Jean”, “Human nature”, P.Y. T. (“Pretty young thing”), “The Lady in my life”. Tinha 15 anos quando este disco foi lançado e vivia numa cidade sitiada. Lembro-me de ver, na Karl Marx, a capa do vinil. Era o famoso Thriller que eu ouvia na rádio ou via na televisão – era então um telespectador errático. A Rádio Moçambique tinha um programa dos meus amigos Abel Chambal e Anísio Matangala de disco, soul music e funk. Foram pioneiros. Não frequentei o Clube da Juventude, mas sei que era o point. A vetusta TVE passava uns vídeo-clips, sobretudo como interlúdios musicais, onde avultavam composições instrumentais do saudoso Fernando Azevedo, com imagens de Moçambique. Foi nessa altura que passava o “Maputo”, de Marcus Miller. Na TVE, Dino Chiche e Quim Barbosa (ambos já não habitam este mundo) são outros dos pioneiros na divulgação do deste tipo de música; depois veio o Miguel de Brito. Foi onde vi surgir o Rogério Dinis, que mais tarde se distinguiria naquela dança a imitar o inimitável Michael Jackson, agora como MC Roger.  

Há uns dez anos que não ouvia assim devotadamente o Michael. A última vez que isto me aconteceu foi há mais de 10 anos, vivia então em S. Paulo e ouvia obsessivamente o Michael Jackson. Recordo-me de estar em Higienópolis e de entrar uma chamada do Eduardo Coelho, que era meu editor, na Língua Geral, todo satisfeito porque o Rio dos Bons Sinais fora escolhido para uma pré-lista do prémio PT. Eu estava absorto a ouvir o Thriller, que então comemorava 25 anos. Sobressaltei mais pelo facto de o Eduardo interromper aquela minha epifania do que propriamente pela notícia que me nobilitava sem dúvida, mas não trazia mais do que isso. Ouvia este disco e o Bad, sobretudo por causa de “Liberian girl”, “Smooth criminal”, “Man in the mirror”, eu sei lá. Há, sobretudo, um vídeo do “Billie Jean”, na festa dos 25 anos da Motown, em 1983, absolutamente espantoso. Michael tem então 25 anos, usa a luva mítica, as meias brancas e a sua indumentária inesquecível. Procuro-o agora na Internet. Durante anos punha este vídeo para o meu filho Irati. Hoje ele explica cada detalhe da actuação brilhante do Michael. Quem nunca viu este momento não conhece a verdadeira revelação chamada Michael Jackson. Ali está não só o cantor, mas também, ou sobretudo, o dançarino. A actuação é fabulosa. Naquele tempo, para além deste vídeo, víamos com espanto o “Thriller”. O disco saiu no ano em que eu fui estudar para a Josina Machel e lá me encontrei com o Manuel Maurício. O Luís Loforte era meu condiscípulo da Maxaquene (da mítica 6ªB) e ele reencontrou o velho amigo Manuel quando fomos para a Josina. O Abdul Ussene, que nos morreu aqui há anos, entra também aí na nossa história comum. Um pouco mais tarde o Ismael Gulli. O Orlando Mavie – que iria herdar na Rádio a divulgação deste tipo de música, muitos anos depois -, é outro dos meus companheiros, encontrámo-lo, anos mais tarde, na Francisco Manyanga. Era comum, nas tardes, irmos à casa do Manuel para ver os Betamax que ele tinha e que traziam estes vídeos. O Manuel era um incondicional do Prince e do “Purple Rain” e a nossa discussão girava à volta da expectativa de este ultrapassar o Michael. O Manuel acreditava nisso. Nenhum de nós punha semelhante hipótese.

Ao rever o Michael na festa da Motown, a gravadora criada, em Janeiro de 1959, por Berry Gordy, em Detroit, no Michigan, que esteve na origem e no lançamento de importantes talentos do rhythm and blues, soul, pop, hip pop ou mesmo rock, lembrei-me das The Supremes, dos finais dos anos 50, onde avultava o nome de Diana Ross. Mas há mais: Marvin Gaye, The Commodores, Lionel Richie, Stevie Wonder, Jackie Wilson e os Jackson Five. Os The Temptations (“Lady soul”). Desta associação de nomes da Motown nasceu o desejo de revisitar Diana Ross a cantar “Missing You”. A música da Diana é uma pungente evocação de Marvin Gaye. No mesmo ano de Thriller, Marvin lançou Midnight Love, que trazia “Sexual healing”. Quando anunciaram a morte de Marvin Gaye, no início de Abril de 1984, assassinado a tiro pelo próprio pai, na véspera dos seus 45 anos, eu estava no pátio da Josina Machel, distraído a ver um jogo qualquer. Busco Marvin depois da Diana: “Oh, baby now let´s get down tonight”. Inesquecível. Acabo de rever o Marvin Gaye e vem-me à memória a música dos The Commodores. Ainda hesito no título, mas não muito tempo depois surge-me: “Nightshift”. Belíssima e tocante elegia. O Lionel Richie não pertencia mais ao grupo quando eles lançaram, em 1985, esta composição, que é um sentido tributo a Marvin Gaye e a Jackie Wilson, que tinham morrido no ano anterior. Jackie foi um cantor e performer muito importante na sua época, tendo tido influência sobre o próprio Michael Jackson e Elvis Presley. Aliás, Presley visitava-o quando estava hospitalizado – teve um ataque cardíaco num show em 1975 e ficou em coma durante 9 anos. Elvis morreria antes, em 1977, também de coração, ao que se sabe. Mas foi ao ouvir esta lindíssima música que os anos 80 fizeram sentido para mim e vou tentar esclarecer isso agora.

Foram dois versos da música que me fizeram chegar aos anos 80 com uma nitidez quase cortante: “Gonna be some sweet sounds/ coming down on the nightshift”. Era isso que nós procurávamos naqueles anos 80. Já descrevi aqueles anos atrozes algures: foram demasiadamente brutais, a guerra alastrava, os ataques na Estrada Nacional número 1, os massacres – Homoíne é um deles -, de uma virulência indescritível, vivíamos num cerco, numa circunstância obsidiante, sem perspectiva de futuro e num pavoroso quotidiano. Hoje, a persistente desmemória faz tábua rasa a isso tudo. Quem ouve alguns dos prosélitos é capaz de chegar à conclusão de que nada disto existiu e que foi apenas um pequeno equívoco. Para nós, para mim, era um quotidiano ensombrado e assombroso. No entanto, encontrámos alguns pontos de fuga. A música era uma delas e estas vozes com estas “sweet sounds” fizeram uma diferença extraordinária entre nós. Nós que não sabíamos nunca o que iria acontecer no dia seguinte, quando nos fechávamos em casa do Manuel, esquecíamos o mundo lá fora e buscávamos uma espécie de catarse dos fantasmas que nos perseguiam. Michael Jackson, Lionel Richie, Diane Ross – “Endeless love” -, Jackson Five, New Edition (grupo assim chamado porque intentavam ser os novos Jackson Five, que integrava Bobby Brown, que mais tarde se casaria com a Whitney Houston.) A Gloria Estefan tinha uma música que ouvíamos sempre: “Dr. Beat”. Havia o breakdance, vibrávamos com James Brown, ou o moonwalk do Michael, eu sei, a lista dos nossos espantos não caberia aqui.

Outros refúgios eram as bangas de sábado. Era difícil arranjar cerveja, ou mesmo Coca-Cola, improvisávamos uma feijoada, o Abdul tinha disponível uma casa na Salvador Allende, convidávamos algumas das miúdas mais giras e dançávamos slow ou funks que então “estavam a bater”, como diz hoje a geração da minha filha Mayisha. “All night long” – tinha razão o Lionel Richie. Lembro-me tanto de “Shake you down” de Gregory Abbott. Que emoção puxa! Escrevo isto e fecho os olhos. Até me comovo. Ou “Live to tell” da Madonna. Sonhei com todos os amores improváveis a dançar esta música. É do disco True Blue, de 1986. Também tinha “La Isla bonita”, “Papa don´t preach”, “Jimmy Jimmy” (Madonna é também agora sexagenária, vejam lá!). Não sei descrever a emoção do “Live to Tell”. Os anos 80 têm isto de contraditório na minha vida: se, por um lado, representam uma vivência terrível, um quotidiano cruel, um tempo de todas as carências – de bichas, de fome, de madrugadas a pôr pedras nas bichas de carne do Botswana, do carapau de Angola – hoje não como carapau -, do repolho da ementa diária, ou nas padarias onde não havia pão, do medo e da guerra, da desesperança e do infuturo, da incerteza; por outro lado, estes anos 80 ligam-me a um conjunto de músicas que ainda hoje me emocionam, sobretudo pela sua doçura como queriam os The Commodores naquela pungente homenagem a Marvin e a Jackie.

Numa remotíssima viagem a Lisboa, ainda naqueles anos 80, tive a bordo a companhia de um escol inesquecível: Terence Trent D´Arby (“Sign your name”); Black com “Wonderfull life”; Glen Medeiros (“Nothing´s gonna change my love for you”, que gravou aos 17 anos, conhecida antes pela voz de George Benson); Modern Talking – “You´re my heart, you´re my soul”; “Let´s Groove”, dos Earth, Winds & Fire; Rick Astley (“Never gonna give you up”); Thompson Twins (“Hold me now”); Alphaville (“Big in Japan”), Billy Ocean (“Caribbean Queen” ou “Suddenly”). Eu não queria que aquela viagem terminasse. Provavelmente nunca terminou. Estava possuído por aquela trilha sonora. Nunca mais me esqueci daquela viagem, sobretudo por causa destas músicas. Como não me esqueço da Dionne Warwick, na companhia de Stevie Wonder, Gladys Knight e Elton John a cantarem “That´s what friends are for”. A harmónica de Stevie Wonder ainda ressoa na minha memória. Naqueles anos cantávamos “I just called to say I love you”, do Steve Wonder. Ou vibrávamos com “Ebony and Ivory” do Paul McCartney e Stevie Wonder. Era o tempo dos Cool & Gang: “Celebration”, “Fresh”, “Get down on it”, “Ladies night”, “Cherish”, eu sei lá. Era o tempo da Donna Summer. Morreu outro dia. Parece inacreditável! Acabara de a ver num dueto com Seal num espectáculo de David Foster. Não sabia dela havia décadas.

Oiço os Milli Vanilli (Fabrice “Fab” Morvan e Rob Pilatus – este morreu também): “Girl you know it´s true.” Reggae e dance music. Um balanço único. Animaram as nossas bangas. Volto a ouvir e faço uma descoberta: a influência do soul makossa, do grande Manu Dibango. O Michael também incorporara o soul makossa na música inaugural do seu álbum Thriller. Prossigo a viagem pelos anos 80 e defronto-me com a voz da Jennifer Rush: “The power of love”. Nunca mais a ouvi. Outro slow. “Never too much” cantava então Luther Vandross. Ouvíamos Aretha Franklin, “Who´s zoomin´ who?” Luther morreu primeiro, Aretha parte agora. “A house is not a home”, de homenagem a Luhter, na voz da Aretha, é uma interpretação de outra galáxia – arrepiante. Era este ritmo e eram estas músicas, estas súplicas de amor, estas declarações. Como o dos Foreigner: “I want to know what love is.” Acho que era isso que nós procurávamos, tínhamos menos de vinte anos. Naquele tempo íamos ao Búzio dançar Phil Collins, “Another day in Paradise”. Quem ficava incólume? Lembro-me de Chris de Burgh – “The lady in red”. Ou de Tina Turner: “What´s love got to do with it”. As pernas da Tina ainda hoje enlevam-me. Foi até parodiada numa telenovela brasileira pela Regina Casé, que fazia de Tina Pepper em Cambalacho. Muitos dos nossos jovens ídolos, alguns apenas uns anos mais velhos do que nós, morreram cedo. Black (Colin Vearncombe), morreu em 2016 num acidente de carro, em Janeiro. Em Dezembro do mesmo ano morreu George Michael. “Careless Whisper.” O Orlando Mavie cantava como nenhum de nós o George Michael. Devo confessar que eu sentia a mesma insegurança do George quando pedia uma menina para dançar: “I feel so unsure/ As I take your hand lead you to the dance floor.” Tremiam-me as pernas e suava-me a palma das mãos. Mas por razões bem diferentes das do George. Nunca me esquecerei: um dia dos meus anos a dançar Tracy Chapman com a mais bela musa da Francisco Manyanga. Cedo demais ela seria chamada pelos deuses. Lá onde ela agora está, emigrada no Paraíso, dança ainda comigo “Baby can I hold you” e “She´s got her ticket”. Foi nessa época que nasceu a minha insana paixão pelo Freddy Mercury. Outra divindade morta. Oiço “África”, dos Toto, um idílio sobre o nosso continente. Por associação, entronco em “We are the world”. Ali estavam quase todas as grandes vozes americanas: Michael Jackson, Lionel Richie, Stevie Wonder, Paul Simon, Kenny Rogers, James Ingram, Tina Turner, Billy Joel, Diana Ross, Dionne Warwick, Willie Nelson, Al Jareau, Bruce Springsteen, Cyndi Lauper, Bob Dylan ou Ray Charles. A iniciativa, que partiu do empresário de Lionel Richie e Kenny Rogers, fora antes pensada por Harry Belafonte. África sofria uma seca impenitente e a fome produzia algumas das imagens mais lancinantes do continente: Etiópia, entre outros países africanos, concitaram a empatia e a generosidade de muitos. Antes da filantropia se transformar na indústria da ajuda que Dambisa Moyo critica ferozmente em Dead Aid. Lionel Richie e Stevie Wonder tinham ficado de escrever a música. Entretanto, Richie convidou Michael, que então lançara o álbum Thriller, que era o grande sucesso da época. Jackson disse que participava e que queria também participar na composição. Ficaram os três com a tarefa: Stevie, Lionel e Michael. Wonder, por alguma razão, ficou indisponível e só entraria a cantar – o seu contraponto com Springsteen é marcante. Michael e Lionel fizeram a música. Quincy Jones faz a regência do grupo e produz o disco. Não sei se eles sabem, mas acabaram por fazer das nossas infâncias e juventude menos amargas e menos infelizes, apenas por cantarmos esta música emocionante. Vi duas vezes o Lionel Richie: em Lisboa e na Cidade do Cabo. Em ambos os momentos ele terminou a cantar esta música e a convocar à lembrança o amigo Michael.

Agora, tenho eu de terminar esta longa, arrastada e evocativa prosa e verifico que há coisas estranhas. Tudo começou com um rastilho – Michael Jackson – que me levou a rememorar uma década de formação para mim. Ouvi obsessivamente uma música que magnificava esse sentimento contraditório que tenho destes anos: “Nightshift” dos The Commodores. Foi por causa das “sweet sounds” de que eles falam que me lembrei das músicas que encantaram a minha adolescência. Ora, os Commodores eram o conjunto de Lionel Richie e eis que termino a minha doce noite de memória a ouvir “We are the world”, que junta Michael Jackson a Lionel Richie e a tantos outros mitos que eu ouvia naqueles ingentes anos. De permeio, os nomes da Motown e aquela prestação incrível do Michael a cantar e dançar a misteriosa “Billie Jean”. Não tinha pensado em nada disto quando iniciei esta prosa. Queria escrever ou falar daqueles anos incoerentemente belos e fabulosos. Tinha alguns acordes na memória, lembrava-me de algumas músicas, mas nada fazia prever esta quase incessante e comovida associação. Era apenas um sentimento contraditório, uma mistura de exultação e nostalgia pelos anos 80, que aquele ritmo e aquela música do Michael Jackson haviam provocado em mim.

 

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