Por Eunice Moreira
Entregamos-lhe a faca e permitimos que ele me esfaqueasse pouco a pouco.
Demos-lhe a corda e ele usou para fazer um baloiço com o meu pescoço amarado ao telhado e o meu corpo balanceado para frente e para trás.
Eu disse que bastava e vocês não me escutaram, eu disse que não queria e vocês me obrigaram.
Hoje mataram-me! Por favor, não chorem, não é tempo para isso, não queriam que eu vos procurasse e tão-pouco vos contasse o quanto eu estava infeliz. Tentaram tapar o sol com a peneira com medo do sol entrar, mas… Hoje o sol está tão forte que chega a queimar.
Disseram-me para aguentar e que ele mudaria. Ouvi as vossas palavras e hoje vem a nostalgia, entregamos ouro ao bandido, entreguei a minha vida ao meu marido.
Pouco a pouco, fui lhe dando meu sangue, em cada mal trato que eu aguentei, pouco a pouco fui-lhe dando uma parte do meu corpo que sem piedade ele desmembrava com as suas atitudes.
Entreguei-lhe a faca e aceitei que ele me esfaqueasse brutalmente cada vez que eu acreditava nele e dizia para mim mesmo: “ele é assim, um dia vai mudar”. Esse dia não chegou, ele não mudou. E agora, o que dirão vós? O que irão escrever naquela mensagem de condolências falsa que o tio irá ler enquanto pessoas em volta assistem o coveiro a fazer descer o corpo congelado de uma jovem mulher? Respondam-me!
Por favor, não chorem, peguem na pá e coloquem mais areia ainda, de modo que preencha o grande vazio que havia em minha alma. Não chorem, continuem revolvendo a terra e dizendo: “casamento é assim, tens que aguentar”. Cavem mais fundo ainda, para que não soe a voz que tentava vos alertar: “me tirem desse lar, esse homem vai-me matar”.
Mataram-me, mas não estou morrendo sozinha, estou levando comigo a minha alegria, os meus sonhos, os planos que eu tinha para o futuro, o meu desejo de ter uma família.
Mataram-me! Mataram-me de novo… E de novo… Todas as vezes que permitiram que esta história não fosse só a minha. Mataram-me, quando olharam para aquela menina a sair do lar e riram-se dela achando que não aguentou por mesquinharias.
Ó, sociedade cruel, quantas vezes mais terão de me matar? Por isso, por favor, matem-me quantas vezes for preciso! Tapem bem essa cova, não permitam que eu saia novamente, matem-me de uma vez por todas para que nenhuma outra mulher morra por esta mesma história.