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Mais de mil crianças vivem na rua em Moçambique

Foto: O País

A situação é mais crítica na Cidade de Maputo. Juristas entrevistados pelo “O País” acreditam que boa parte da culpa deve ser atribuída ao Estado, pois tem falhado na implementação da lei que protege os menores.

Chamam-lhe Alexandre Júnior Daniel, tem um sonho, mas não sabe ler nem escrever. Órfão de mãe, o rapaz de 12 anos de idade vive nas ruas da baixa da Cidade de Maputo há dois anos. Diz ter estudado até à quarta classe e manifesta vontade de voltar à carteira.

Alexandre diz ter procurado saber dos pais o porquê de não o terem matriculado na escola, mas não teve nenhuma resposta.

– Não diziam nada.

O País – Mas tu gostavas de ir à escola?

– Sim.

O País – Gostarias de voltar a estudar?

– Sim.

O País – O que gostarias de ser quando crescido?

– Quero ser agente da polícia.

Nas ruas, Alexandre conheceu Orlando Marcelino. Com 12 anos de idade, nunca frequentou uma escola, mas tem consciência do seu direito à educação.

O País –  Sabes que tens direito de ir à escola?

– Sim.

O País – Como é que o sabes?

– É necessário estudar para ser inteligente.

O País –  Como assim?

– Estudar para ser inteligente e se tornar presidente, engenheiro ou até o piloto do presidente.

A pobreza, a violência na família e outros factores influenciam para o aumento do número de crianças que vivem na rua.

Entre tantas violações a que estão sujeitas, a provisão do direito à educação chama a atenção do especialista em direito da criança da Save The Children, Jaime Chivite.

“Uma criança na rua está exposta a vários riscos, tal como é o caso da violação e exploração sexual, trabalho e exploração infantil e a questão da violência física e a falta da provisão de serviços básicos, a começar pela educação, porque a criança precisa de ser levada à escola, de assistência, e ela não tem este apoio directo. Então, é a violação desse direito que toda criança, sem excepção, tem”.

Em todo o país, estima-se que cerca de 1083 crianças vivam nas ruas. A Província e Cidade de Maputo têm o maior número, com cerca de 400 casos, seguidas de Nampula, com cerca de 300. A província de Niassa tem 39 crianças excluídas, Cabo Delgado tem 33, Zambézia, 90 e Tete, 70. Já em Manica há 37 crianças de rua, 80 em Sofala, 22 em Inhambane e 12 em Gaza.

A lei é clara. Os artigos 88 e 121 da Constituição da República de Moçambique esclarecem que a educação é um dever e direito de todo o cidadão moçambicano e que as crianças em situação de vulnerabilidade têm protecção do Estado.

Então, o que está a ser feito concretamente para prover educação aos meninos que vivem na rua?

“A filosofia do Governo para resolver esta situação é apostar nos centros de acolhimento. Nós temos, a nível nacional, 138 centros de acolhimento. 81 são centros fechados, ou seja, as crianças vão e recebem educação e outras actividades vocacionais”, detalhou a directora nacional-adjunta da Criança Páscoa Ferrão.

 

JURISTAS ACUSAM ESTADO DE INÉRCIA

O Governo alerta para a complexidade do fenómeno e convida a sociedade e os pais a uma accão conjunta. Mas a lei é clara em termos teóricos; na prática, a situação é diferente. Os juristas Joana de Melo e Roberto Aleluia explicam que se o Estado falha, o cidadão pode exigir a sua responsabilização.

“Qualquer cidadão, assim como o Ministério Público – que é o garante da legalidade, o curador de menores, assim como dos idosos – e a sociedade civil, têm o seu papel de garantir que o direito da criança seja observado”, esclareceu a jurista Joana de Melo.

“Porque estamos a falar de um direito com interesses difusos, que envolvem mais de uma pessoa, direitos fundamentais, e estão acima do Estado”, acrescentou o jurista Roberto Aleluia.

Os juristas defendem que o Estado falha na implementação da lei e na importação de modelos de políticas externas, sem enquadramento no contexto moçambicano.

“Creio que seja deficiência em termos de políticas ou aplicação daquilo que já existe, porque as normas existem, mas falta a sua aplicação”, elucidou Joana de Melo.

“Muitas vezes, somos obrigados a legislar em função do interesse do regulador e não dos moçambicanos – por exemplo, se temos um regulador que quer alcançar um objectivo e ordena que devemos fazer [algo] e nós [obedecemos], mesmo sabendo que não está de acordo com a nossa realidade” –, vincou o jurista Roberto Aleluia.

Moçambique está na lista dos países africanos com baixo nível de escolarização. A Direção Nacional da Criança já pensa na elaboração de uma estratégia de atendimento às crianças que moram na rua, para resolver a questão da provisão de educação às crianças excluídas.

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