Cerca de 2500 mulheres, no país, principalmente em Nampula e Zambézia, contraem, anualmente, a fístula obstétrica, o que as faz tirar urina e fezes involuntariamente. Complicações na gravidez e no parto estão por trás da doença.
Sentada num quarto, no canto da cama isolada de tudo e todos e agarrada a uma almofada, Francisca, nome fictício, parece ter na almofada uma confidente para contar o que se passa com o seu corpo.
Não tira palavras, mas as lágrimas comunicam. O silêncio é quebrado quando entramos no quarto e fazemos uma pergunta: “Pode contar-nos o que se passa?” Tímida, com receio e vergonha de partilhar a sua história, a resposta é curta: “Estou doente há 18 anos, faço xixi sem me aperceber e sem sentir”.
Esta é uma das histórias que “O País” conta hoje, 23 de Maio, Dia Internacional pelo Fim da Fístula Obstétrica. E o relato de Francisca faz parte de milhares de mulheres, que contraem, anualmente no país, a fístula obstétrica, uma doença que faz com que elas tirem urina e fezes sem se aperceberem, por causa de complicações na gravidez e no parto.
Em 2021, por exemplo, Nampula teve 570 casos, Zambézia 514, Tete 269 e Cabo Delgado registou 234. Essas são as províncias com mais casos.
Francisca, de 38 anos de idade, natural de Inhambane, faz parte dessas estatísticas desde 2003, quando, durante uma semana, sofreu em trabalho de parto. Já mais confiante com a nossa equipa de reportagem, começou a contar tudo.
Disse que vivia longe de uma unidade sanitária, isso em Inhambane, chegou ao hospital com infecções, depois de muito sofrimento. Os profissionais de saúde perceberam que a sua situação era grave e devia ser submetida a uma cesariana e, por isso, devia ser transferida para um outro hospital.
Quando lá chegaram, o parto foi realizado, mas, porque já se passava uma semana, o seu filho não sobreviveu e ela também começou a viver as consequências desse parto prolongado.
“Logo depois do parto, ainda no hospital, despertei toda molhada, da cabeça aos pés, eu tinha feito xixi, mas sem me aperceber. As enfermeiras acordaram-me também sem perceber o que se passava, eu estava sem forças, já não conseguia levantar-me, nem fazer qualquer outra coisa”, relatou.
Aquele, segundo contou, foi o princípio do seu sofrimento que já dura 16 anos. “Onde eu me sentava, molhava com xixi, no ‘chapa’, na rua, em qualquer sítio eu não tinha controlo, o xixi saía sem eu me aperceber, algumas pessoas até diziam e eu justificava.”
Francisca não saía de casa, os seus pais eram seus companheiros e sempre estiveram ao lado dela. Em 2004, veio a Maputo para tentar um tratamento, foi submetida a uma cirurgia, mas sem sucesso. Desesperada, até pensou no suicídio “porque já não me sentia uma mulher, sentia-me suja, tentei engravidar e, por quatro vezes, perdi os bebés”.
Vestidos, saias ou calças não faziam parte das suas vestimentas havia 18 anos. A solução era, além de enrolar panos na sua roupa interior, amarrar duas capulanas para que não se notasse o problema. Quando estivesse fora de casa, devia levar outras quatro capulanas para trocar e era sempre assim.
Só em 2021, quando estava sentada numa cadeira, a sua patroa percebeu que a mesma estava molhada, perguntou o que se passava e, pela primeira vez, depois de 18 anos, partilhou a sua história com alguém para além dos seus pais.
“A minha patroa ficou chocada pelo tempo que vivi com isto, mas ela foi minha salvação, porque conhecia a doença e sabia que tem cura, levou-me a uma clínica onde passei pela cirurgia. Hoje, estou aqui curada, bem e já posso vestir saias, calças e até vestido”, contou, feliz, a mulher.
Mas afinal, o que é e quais são as causas da fístula obstétrica? Segundo Igor Vaz, médico-cirurgião, a doença é consequência de um parto prolongado, em que o bebé fica entalado nos ossos da bacia.
A cabeça do bebé comprime os tecidos contra os ossos, os tecidos dissolvem e apodrecem e a bexiga passa a ter comunicação directa com a vagina ou com o recto e, assim, a mulher começa a tirar urina e fezes sem se aperceber.
“O analfabetismo, os casamentos prematuros, gravidez na adolescência a grandes distâncias da sua casa para unidades sanitárias são a baixa cobertura dos cuidados obstétricos. Muitas mulheres, que vivem em comunidades sem unidades sanitárias, não têm acompanhamento durante o período pré-natal e, na hora do parto, são assistidas pelas suas mães ou idosas que, quando não conseguem, levam ao hospital, mas já tarde”, explicou o médico.
Conforme detalhou, há mulheres que se suicidam. Outras afastam-se de tudo e todos, passam a isolar-se da comunidade, até ficam desnutridas, ficam deprimidas, e chegam às unidades sanitárias depois de muitos anos e em estado já avançado.
A explicação do cirurgião coincide com o que Benedita, nome fictício de uma mulher de 28 anos que vive com a doença há 12 anos, passa até hoje. Os seus problemas começaram também após o parto. De lá para cá, usa fraldas descartáveis e, mesmo com os cuidados médicos que já teve, nunca conseguiu a solução para o seu problema.
“O meu marido ria-se de mim, fazia piadas, às vezes falava palavrões e dizia que não sou mulher, sou um ser estranho. Eu não sei o que é sair com amigas, praia não me recordo a última vez que fui, minha filha chegou uma vez e perguntou: ‘mamã faz xixi na cama enquanto é adulta por quê?’ Fui ao médico, deram-me comprimidos, mas não teve nenhum efeito. Mandaram-me ao psicólogo por pensar que era um problema psicológico e, até hoje, nada”, contou sua história Benedita.
A doença afecta maioritariamente países em desenvolvimento e, segundo o Ministério da Saúde, Moçambique é um dos mais afectados e muitas mulheres sofrem caladas sem saber que a doença tem cura
Armando Jorge de Melo, chefe do Programa de Fístula Obstétrica, disse que a operação é, em 99 por cento dos casos, a solução e, noutras vezes, é que pode ser feita com a introdução de uma algália, que é uma sonda usada para examinar a bexiga e extrair urina.
Actualmente, cada província do país tem pelo menos dois médicos-cirurgiões para fístula obstétrica.
“Fazendo uma evolução dos dados, de 2019 até este momento, foram operadas 2.158 pessoas em todo o país. Estas operações foram feitas durante as nossas campanhas e outras em operações electivas, aquelas que são programadas”, avançou Armando Jorge de Melo.
Foi assim que, através de uma cirurgia, depois de 15 anos, Maria Gina, outro nome fictício, idosa de 64 anos, conseguiu o tratamento ano passado, após ter contado o que se passava à sua filha, que a levou para um médico.
“Antes, eu usava cinco calcinhas, enrolava panos, usava duas ceroulas e só depois vestia a saia. Depois da cirurgia, senti-me uma nova mulher, o meu sorriso foi devolvido e, hoje, oro para que todas as mulheres que passam por isso encontrem cura para a doença, como aconteceu comigo. Por isso, apelo-lhes para que não se calem e procurem um médico, porque isso tem cura”, sublinhou a idosa