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Vera Duarte A Reinvenção do Mar                                                                                                                Lisboa, Rosa de Porcelana, 2018

Uma voz feminina

   “Para lá da ilha /só existe a poesia….Vou tecer meu sonho na vertigem da minha própria poesia”.  A Reinvenção do Mar é uma antologia poética que comemora os 25 anos da publicação do primeiro livro de Vera Duarte (Vera Valentina Benrós de Melo Duarte Lobo de Pina), e reúne textos de cinco obras poéticas, a saber: Amanhã Amadrugada (1993) que foi a obra de estreia da poetisa, seguida de O Arquipélago da Paixão (2001), distinguida com o importante prémio “Tchicaya U Tam’si de Poésie Africaine”, a que se seguiu o livro Preces e Súplicas ou os Cânticos da Desesperança (2005), Exercícios Poéticos (2010) e  De Risos & Lágrimas (2018) consolidando um percurso de prática poética, iniciado na década de 90. Com outras vertentes de escrita, como o ensaio e a prosa, Vera Duarte publicou também A Candidata (2003), recebendo com este livro o Prémio Sonangol de Literatura. Publicou mais tarde A Palavra e os Dias: Crónicas (2013) e mais recentemente A Matriarca: uma estória de mestiçagem (2018).              

   Teve formação académica na Universidade Clássica de Lisboa, onde cursou Direito e  foi a primeira magistrada e desembargadora em Cabo Verde. Em 1995 foi distinguida com o prémio Norte-Sul de direitos humanos do Conselho de Europa, sendo também a primeira mulher a ser eleita para a comissão africana dos direitos do homem e dos povos (1993). A carreira da poetisa é ainda marcada por integrar organizações nacionais e internacionais ligadas ao Direito, aos Direitos Humanos e à emancipação feminina, que lhe valeram diversas premiações e distinções no quadro da cultura e direitos humanos. Podemos dizer que a escrita poética de Vera Duarte é também um exercício de experiência de vida, filtrando a poesia, de forma muito evidente, a sua prática na área da justiça, o conhecimento dos aspectos mais escabrosos e carenciados da sociedade, e fazendo dela uma lutadora por um mundo onde os direitos humanos, especialmente  de género, sejam mais equilibrados.

   Esta dimensão humana e humanitária de Vera Duarte convoca uma dimensão do amor e da paixão mais amplos, que ganha foro de utopia, no clamar de um mundo amorável, justo e sensível, um mundo revolucionado, em permanente revolução. Leia-se nesta perspectiva o poema Ortodoxias em Desagregação Poema Manifesto: “Em Outubro fizeram-se revoluções/ Outubro é uma revolução/ Sou uma mulher de outubros/ Num outubro que se perdeu/ E uma revolução que não acabou//Nas minhas veias corre um sangue missionário/ No meu sangue/ Corre uma revolução/ Que não perdeu sentido do ser”. Este poema estabelece um programa de escrita que, de forma directa ou indirecta, vai irradiar na escrita poética de Vera Duarte:”O fascínio vem-me/ dos momentos iniciáticos/ que incendiaram o coração dos homens”.

   A revolução engendra-se a partir de dualidades, sentidas pela poetisa como lágrimas/encantamento, sonho/realidade, desejo/desencanto, utopia/ distopia, tópicos que os poemas de Vera cantam, e procuram uma resposta: a Liberdade. A Liberdade (pessoal, amorosa, de género, social, literária) encena-se quase operaticamente na escrita poética de Vera Duarte entre dois eixos fundamentais, o riso e as lágrimas, à maneira da figuração de Janus, o deus de dois rostos. “Simplesmente sou! Busco um outro começo/ Construo um outro final/ Nem Maria a imaculada/ Nem Madalena a pecadora/ Simplesmente/ sou!// De corpos e abraços/ De amores e lutas/ De risos e lágrimas// Simplesmente/ sou!”. 

   Observamos que no seu primeiro livro Amanhã Amadrugada a escrita, muitas vezes em prosa poética se intitula, Discursos, Momentos, Exercícios poéticos, procurando a voz o lugar de enunciação, entre o registo filosófico, reflexivo. Nestes textos a voz enunciadora oscila entre a meditação, o registo diarístico, o sonho, a visão alucinada, surreal por vezes, a memória da infância. Exercícios sobre o mar e a morte, sobre a beleza e a morte, sobre o sortilégio: “Venham todos os homens/ de todas as florestas/acolher-se em meu leito//Contornem mil vezes/ as formas perfeitas/do meu corpo são (…) Beijem-me/ e que os vossos beijos puros/ arranquem de mim/ o sortilégio que me mata// Mas não me amem/ que eu só posso amar a um/ e a morte anda à espreita/ dos que se deram e não foram recebidos”(…); “Quis amar, amar perdidamente com angústia, sofrimento e solidão, mas constatei afinal que a intensidade fatiga e desprendimento atrai”.

   É um prazer ler os poemas de Vera Duarte em antologia, o estilo mantém-se desde o primeiro livro, assim como a ânsia de liberdade, a procura do amor e da paixão, uma palavra que Canta/Conta, e se procura, à maneira de uma ode de variações múltiplas. Esta oscilação cantar/contar encontra no uso do poema tipo “ode” a dimensão teatral, musical, que surge com múltiplas variantes na escrita da poetisa A ode como se sabe é um género poético que permanece actual desde a antiguidade clássica, e a exemplaridade da ode do poeta chileno Pablo Neruda gratificou a vitalidade desta prática. As odes originais eram cantadas com o acompanhamento de um instrumento musical como a lira. As odes podiam ser monódias (cantadas por uma única voz) ou corais (interpretadas por um grupo de pessoas). Apesar da sua variedade temática, a ode costuma expressar a admiração por algo ou alguém, um poema criado com o objectivo de homenagear ou exaltar. Vários poetas gregos dedicaram odes aos deuses, a atletas, guerreiros e heróis.

   No caso da odes de Vera reconhecemos a dimensão da exaltação vocal, canto/conto de alegria, tristeza e de homenagem em muitos dos seus poemas, em que aparecem dedicatórias aos escritores e homens da cultura de África e da sua terra, Cabo Verde, com poemas que os cantam, como Corsino Fortes, Jorge Alfama, Arnaldo França, Amílcar Cabral, Nelson Mandela, a Mãe. A dimensão elegíaca de alguns poemas combina a ode ao registo da dor em poemas com dedicatórias, que revelam uma importante função de resgate da memória pessoal e histórica; de resgate da cultura local em Cabo Verde, com os poemas para Ildo Lobo, Gabriel Mariano, Guilherme Rochteau; ou, por outro lado, de resgate de situações históricas como a travessia atlântica que rememora uma mesma história dos africanos, a do tráfico escravo, a da luta pela libertação colonial,  e a relação histórico-cultural com o Brasil.

   Cito aqui um fragmento de uma das suas odes, denominada Prece Primeira Rosa entre cadáveres: “  Em África nasce uma rosa/ Uma rosa entre cadáveres/ E dela brota um sol de sangue// Em África cresce uma rosa/ Rosa única de dor e de revolta/ e dela queda um sol de sangue// Não é rosa depois da neve/ Nem rosa flor d’amor/ Não é rosa multicolor/ Nem tem perfume embriagador// É rosa d’Eugénio/ Flor de doer/ Rosa de arder/ Metamorfose de cadáveres(…) Em África cresce uma rosa/ É a rosa mirabílica/ Flor da poesia/ Uma rosa entre Cadáveres”.

    Mas também o Amor é cantado em ode como no longo poema “A Canção do CorpoAmor”  um dos muitos textos que o exemplificam, aqui em  mais de cinco páginas: “Ter-te-ei alguma vez dito/ homem de cabelos fartos/ e lábios de incenso e mel/ como o ar se aquece/ quando a tua presença/ magicamente me envolve/ e teu hálito fresco/ de tambarinas maduras/ acremente me inebria (…)”.

   A geografia enunciadora e o fazer poético cantante/contante da poetisa mostra como ela se auto-renova enquanto corpo/território, como se transforma para re-construir seu próprio espaço, enquanto ser de escrita, que não se pode transferir para nenhum mapa do mundo conheci­do. No poema Acrobata da palavra Vera Duarte mostra como “a fome/ Do mundo que em mim habita” é alimentada pela “condição mutante” da acrobacia das palavras em poema:” No vértice vertiginoso da vida/ Violenta, violentada e violada/ Inscreve-se minha mutante condição/ De acrobata da palavra”.

   Enquanto voz crítica e de resistência à subalterna histórica condição de ser mulher evoca vários nomes paradigmáticos de mulheres como Antígona, Joana d’Arc, Mariama, Ginga, mostrando diferentes percursos femininos, nos quais a voz de Vera se enquadra, sintoniza e questiona, juntando-se ao exemplo daquelas figuras emblemáticas, quando procura resgatar o lugar da mulher na sociedade. Essa conquista de espaço geo-histórico-cultural da poetisa é também conquista de um espaço tipográfico, que os poemas encenam, e parece  inseparável de uma aber­tura ao espaço planetário, global: nela é evidente no trabalho de disposição na página das «palavras em liberdade», como em certos caligramas de Apollinaire.

    A poesia é uma voz, mas que voz? Croce diz que a poesia é uma voz interior à qual nenhuma voz humana se aparenta; no entanto a recitação, que a disposição tipográfica, dos poemas de Vera Duarte, na página suscita, bem como, por outro lado, o dispositivo retórico refrânico, as repetições, o aparato dialogal e narrativo dos poemas, faz com que esta voz ganhe presença no leitor, ou dele se apodere.  Ao mesmo tempo que lemos os poemas de Vera Duarte, eles se nos impõem como recitação, presença da voz, por isso também ouvimos os poemas.  São as vozes/cantos/contos/canções que na voz da poeta se entretecem, implicando a escuta de Jorge Barbosa ou Manuel Bandeira, de Eugénio Tavares e da poesia da morna de Cesária, dos ritmos de Ildo Lobo; fragmentariamente narrativa, biográfica enquanto sujeito próprio, sujeito feminino e sujeito histórico, as vozes da voz de Vera Duarte se reiventam em poesia.

    A reinvenção do Mar, que titula a antologia, encontra o na dicção de Vera Duarte a conjunção entre um mar interior, um mar ilhéu, um mar do mundo, uma palavra/ilha/canto de todas as ilhas/poemas: “juntei então todo a água do oceano / E cerquei o meu palácio / do mar mais profundo que algum dia existiu (…)” Mas, se é com a língua que o ser/poesia/sonho de Vera Duarte se constrói, é na fala que ela se encarna, quando a escrita, no “Tumulto” dos antagonismos e dualidades da criação, a pronuncia recitativamente até nós:” Vou tecer meu sonho/ na vertigem da minha própria poesia”.

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