Não vi, hoje ou mesmo esta semana, referência alguma, entre nós, à passagem do centenário de Julius Nyerere (n. 13 de Abril de 1922, Butiama, Tanzânia – m. 14 de Outubro de 1999, Londres, Reino Unido). Esta cultura do esquecimento, esta primazia da amnésia, esta predileção pela desmemória ou este império do olvido não é um descuido certamente, nem desatenção ou negligência apenas, lapso ou simples omissão. É revelador de algo mais gravoso. Provavelmente, não seja capaz de lhe encontrar o desígnio imediato aqui e agora, mas há serventia nisto. Não pode haver tanto esquecimento sem razão.
Nyerere atravessou toda a minha juventude e testemunho aqui o fervor com que o recebíamos. Basta lembrar o nosso cancioneiro revolucionário e está lá o seu nome. Não ignoro a nossa toponímia que lhe dá sublimidade. Foi o líder mais distinto entre os pais fundadores dos novos países africanos. Não me compete fazer-lhe aqui a biografia nesta breve nota, sublinho apenas o facto de ele ter acolhido a geração de africanos que lutavam pelas independências dos seus países. Isso está na origem da reverência que ele colhia entre nós. A afeição por Mwalimu (Professor) vinha daí e advinha da sua personalidade carismática que ultrapassava os limites e a geografia da sua Tanzânia. Foi, indubitavelmente, um dos grandes africanos ou um dos que sonhou uma África grandiosa. Pelo menos uma África educada, unida e próspera.
Seis décadas depois da sua eclosão, vivemos o refluxo destas independências. Estamos nos antípodas daquela exultação revolucionária. Quase todos os nossos países não cumpriram a promessa histórica que drapejava naquelas bandeiras que tínhamos orgulho em hastear e nos hinos que nos tornavam mais irmãos. Não deixa de ser paradoxal, ainda assim, que uma figura cujo maior sonho era a união e que porfiava o ideal de “Ujamaa” (família em Swahili, mas leio no seu afã a metáfora da Grande Família Africana), esteja praticamente esquecida em África. Isto também explica, de alguma forma, o nosso desacerto. O desacerto de África. O desconcerto de África. O desencontro de África. O desconforto de África.
Há muita retórica, sobretudo política, que intenta dizer o contrário desta flagrante desconcordância. Contudo, nós desprezamos a memória e temos da cultura uma dimensão folclórica. Mas ela (esta nossa reiterada divergência com a memória) parece bastante notória ou demasiado veemente. Esta incapacidade de nos reconhecermos no lastro da nossa História – temos a tendência para dissentir sempre do que nos antecede – é uma endemia. O passado é como uma sombra, mas sombra (aqui) como traço ou indício. Não como obscuridade ou anátema. Como identidade, individualidade ou personalidade.
Ou muito me engano ou nós somos galhardamente desatentos – ou até exuberantemente presunçosos – em relação ao que nos é anterior. Para além de encerrar uma imprudência não augura nada de auspicioso. Não há futuro sem passado. Mwalimu Julius Kambarage Nyerere não pode ser deslembrado. Esquecê-lo é um sacrilégio. Uma blasfémia contra nós próprios. Celebro-o aqui nos seus 100 anos.
Maputo, Quarta-feira, 13 de Abril