Por: Nelson Saúte
Ontem custou-me este exercício quotidiano e anotei apenas estas seis palavras: “Ano tremendo este. Vivemos tempos aziagos”. Fui deitar-me exausto de tanta morte que nos ronda. A manhã chegou depressa e eu quis fugir da cidade para o lugar onde moram as aves. Fatigado ainda procurei fazer uma sesta em dia de canícula. A notícia do teu passamento chegar-me-ia com os pássaros que debicam os vidros da janela. Incrédulo busquei a fidúcia nos amigos.
Agora, não me posso ater apenas às seis palavras de ontem. Preciso de dizer algo que não seja o lugar comum da notícia. Aqui há uns anos, muitos anos quero eu dizer, divisando flamingos, ao largo da estrada que margina este dolente Índico, enquanto me dirigia para este mesmo refúgio, surgiu-me desse instante, nesse flagrante, uma espécie de epifania: a tua imagem como poeta. Foi ali que realizei que eras poeta, nessa revelação, nessa aparição dos flamingos: “o flamingo adormece em si o horizonte/ como flor espetada no pântano”.
Aplaudi em silêncio a tua erupção poética. Volto agora aos teus versos e leio: “enterro o coração no sussurrar das palmas/ me embrenho…/na vigilância enlutada dos corvos/ outra ilha”. À beira dos 50, “descidos os degraus da fantasia/ de lá dos píncaros de dirigir”, publicavas Dentro de Mim Outra Ilha (1995), um belo livro de estreia. Não há muitos livros assim.
Não sei se alguma vez te disse isto. Provavelmente o pudor impediu-me de to dizer. Mas ali, naquele livro primeiro, a admiração que tinha pela personagem transfigurou-se na admiração pelo poeta. Quis a fortuna que, anos mais tarde, pudéssemos ter um afirmado contacto e essas ocasiões confirmaram a intuição: o homem e o poeta diziam-se com a mesma verdade, com a mesma inteligência e com a mesma elegância.
A candura do poeta estava no homem compassivo. Mesmo quando eras assertivo as tuas palavras eram de um homem cordato. O conflito, a dissensão, a briga, a discórdia ou a divergência marcam com impetuosidade os nossos dias e o devir moçambicano. Gentil, compreensivo e humano era como eu te via naquela década na qual que nos sentámos, frente a frente, a discutir o país e o nosso destino.
Um dia, nesses encontros, fui áspero perante uma apresentação que me parecia medíocre. Com o teu sangue bom impediste que o debate resvalasse para o azedume. Sou impaciente perante a mediania, reajo com acesso, quase sempre impulsivo. Tu, com a fleuma e a tua elegância foste apaziguador. Aprendi com aquele teu gesto indulgente.
A tertúlia literária está na origem da nossa amizade e ao longo destes anos nunca intuí em ti alguma sobranceria pelo facto de teres sido dirigente. Antes pelo contrário. Sempre discreto como naquela lendária fotografia onde estás na última fila. Essa é uma das qualidades mais admiráveis.
Perante o esquife de um funcionário que te recebera como jovem ministro subiste voluntariamente ao púlpito e fizeste a mais bela homenagem que se pode tributar a um igual. Com aquele homem tinhas aprendido e disseste-o ali, naquela igreja repleta, sem rebuços. Sem tergiversação. Comovido ouvi o teu testemunho. Comovido e em silêncio. Outra vez, vi em crescendo a minha admiração por ti. Um antigo ministro sabia ser igual e sobretudo era capaz de reconhecer que aprendera com um subalterno.
Os nossos intendentes, por alguma razão, acreditam no prodígio que faz deles pessoas infalíveis no dia em que são eleitos. Em décadas de convívio contigo, de tertúlia literária, de discussão fraterna, nunca te vi imodesto. Antes pelo contrário. Vi o argumento, o arcaboiço, o conhecimento e a sabedoria. A inteligência fina, as ideias escoradas e a bonomia e o sorriso acolhedor. O aviso. O precato. A humildade.
Os antigos falavam em homens probos. Os antigos falavam em homens bons. Falavam também em pessoas éticas. Falavam em pessoas honestas. Quando te via lembrava-me desses homens com quem aprendi o vocabulário da urbanidade, o léxico dos bons costumes, da civilidade e da amizade. Pertences a esse raríssimo escol. Estás entre os melhores. Os nossos melhores. Dos poucos melhores que nos vão faltando.
Há precisamente 20 anos pediste-me que eu redigisse uma nota para a contra-capa do teu segundo livro: Nónumar (2001). Provavelmente o texto é canhestro, mas quis registar nele o testemunho indisputável da minha amizade e, sobretudo, quis que fosse a expressão inequívoca da minha admiração indefectível.
Não há muitos meses, enviei-te o meu último livro, Planisfério Moçambicano. Estranhei o teu silêncio. Afinal, não estavas bem. Discretamente fui sabendo de ti, mas estava longe de imaginar este duro epílogo. Ninguém poderia ou quereria conjecturá-lo. Agora vais tu para essa noite intérmina e para o destino do silêncio peremptório. Vivemos estes tempos que nos impõem a infelicidade, o desconsolo e a tristeza. Vivemos tempos de mágoa e de sofrimento. Vivemos um tempo de infortúnios.
Quando esta tarde os pássaros que debicam a minha janela impuseram o luto, procurei consolo nos teus versos. Não tenho aqui os teus livros de poesia, residem numa biblioteca estrangeira. A despeito, resgato de uma antologia (Nunca Mais é Sábado) aqueles poemas que designei para te representar e leio estas iridescências: “É este o Sul que eu abro nos meus livros/ nas ilhas ou nas terras adornadas/ que teimam em subir com o mar desperto/ e garrir-se de cor e gargalhadas”.
Maputo, 5 de Dezembro de 2021