Valete, um dos rappers consagrados de língua portuguesa, veio a Maputo para participar no Festival AZGO. À margem da sua actuação naquele evento, Viris, como também é conhecido, referiu-se às potencialidades do Hip-Hop moçambicano, as suas carências e, por fim, explicou como tem preparado o seu tão anunciado terceiro álbum.
Volta a actuar em Moçambique. O que lhe marcou desta vez?
Já tinha dito que um dos meus melhores concertos tinha sido aqui por causa da energia do público. Penso que os moçambicanos sentem o Hip-Hop como eu sinto. É uma terra Hip-Hop e eu fico muito confortável em contextos como Maputo. Adorei o Festival AZGO, apesar de termos [os rappers] sido como que uma ilha num festival mais multicultural. Mas eu creio que representamos bem o verdadeiro Hip-Hop, um género global e globalizado. Foi uma honra ter participado neste festival que está de parabéns por incluir o Hip-Hop, coisa que noutros cantos do mundo não acontece. Eu acho essa exclusão errada porque o Hip-Hop é uma música da juventude e que se conseguiu fazer com que chegasse a vários cantos do mundo.
O que lhe faz pensar que Moçambique é uma terra Hip-Hop?
Até aos anos 90 ou início de 2000, Moçambique já tinha um Hip-Hop muito evoluído. Entre 2005 e 2010 notou-se uma qualidade de produtores e MC’s incríveis em Moçambique. Penso que os rappers moçambicanos sofrem pelo país ter muitas carências económicas. Por isso os fazedores do Hip-Hop em Moçambique têm muita dificuldade em viver da música. Não se conseguir profissionalizar torna complicado fazer com que a música chegue a 100%. No dia em que for possível rappers e produtores moçambicanos viverem da música, o Hip-Hop moçambicano vai ser dos melhores do mundo. Não digo que não é… mas falta ao país ter rappers e produtores de carreira, com cinco ou seis álbuns, 10 ou 20 anos de carreira.
A propósito de carreira, tem mais de 20 anos no Hip-Hop. O que lhe prende a este ritmo?
A minha relação com o Hip-Hop é uma coisa muito forte. Provavelmente, que me vai acompanhar até ao fim da vida. Espero dar muitos anos ao Hip-Hop em Portugal e ao nível lusófono.
Faz questão de estar sempre acompanhado por outros rappers. Por que fazer do Hip-Hop um movimento?
Porque o Hip-Hop é mesmo isso: movimento. Eu sou filho de são-tomenses, o Bónus também é; Azagaia e Duas Caras são moçambicanos. Mas o que importa é que somos todos africanos e é tudo mesma coisa. As fronteiras não fomos nós que as delineamos. São as fronteiras dos outros, não são as nossas. Acredito que somos todos irmãos e que podemos manifestar essa irmandade através do RAP, o que é fascinante.
Investe muito em músicas de intervenção social. Espera contribuir na reconstrução do mundo?
A ideia não é fazer coisas muito presunçosas. A ideia é pôr muito do que eu sou nas letras, o humanismo em que eu acredito, as ideologias que eu tenho. A ideia é sempre pôr isso nas letras. Se isso afectar apenas uma pessoa, já é uma vitória. Não preciso de mudar o mundo. Mas claro, sonho com um mundo melhor, num work in progress. E todos devemos contribuir para melhor as nossas vidas e as nossas sociedades.
E o terceiro álbum?
Estou a fazer o meu terceiro álbum no estúdio e, ao mesmo tempo, produzo uma coisa que chamo álbum em movimento. É um álbum que não vai existir físico. Se as músicas que fizer em estúdio tiverem um carácter mais urgente, vou lançar logo. Ainda este mês vou lançar um novo single. Desse projecto que é o álbum em movimento, já lancei “Poder”, “Rap consciente” e este mês vou lançar outro tema, que ainda não posso dizer o título, e espero ao longo deste ano poder lançar mais.
E esse terceiro álbum vai incluir músicas que iriam ou irão ao tão aguardado Homo libero?
Não. As músicas do meu terceiro álbum ninguém ouviu nenhuma. Estão lá guardadinhas. Estou a fazer o terceiro álbum com muita calma, porque quero que saia um álbum bonito. Não quero que seja apenas um álbum para as pessoas consumirem. Interessa-me que seja uma peça de arte importante no Hip-Hop português e lusófono. Tenho dever de fazer as coisas com carinho e muita responsabilidade.
Como está o Hip-Hop em português?
Está bem. Nunca se consumiu tanto Hip-Hop em português como agora. No entanto, como em tudo, há coisas boas e coisas menos boas. Musicalmente, o Hip-Hop em português está melhor. Liricamente, sinto que está um bocado mais pobre. Mas creio que com o tempo as coisas podem mudar.
Quem escuta as suas músicas entra em contacto com o mundo e com outros rappers. Quer comentar?
A ideia é sempre mostrar que o Hip-Hop é um movimento colectivo. Eu acredito em ideologias em que o colectivo é mais importante que o indivíduo. Progredir, crescer, melhorar por todos, não só por mim. Acredito muito nisso.
Ainda há um “ismo” que lhe controla?
Isso haverá sempre. É inevitável. Enquanto existirem homens no planeta vai sempre haver “ismos” que nos controlam.
E qual é o “ismo” que lhe controla, o socialismo?
Não. O único “ismo” que posso dizer que me controla é o humanismo.
Perfil
Valete é o pseudónimo de Keidje Torres Lima, rapper português que nasceu a 14 de Novembro de 1981. Iniciou a actividade rapper em 1997. Com os rappers Bónus e Adamastor, formou o Canal 115 e a editora Horizontal Records. É licenciado em Ciências da Comunicação e já colaborou, em Moçambique, com a G PRO e Azagaia. Valete tem dois álbuns lançados: Educação visual e Serviço público.