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Graça defende contra-ataque: “temos que bombardear o mundo com os nossos heróis”

Foto: O País

Chega…diz a viúva de Samora Machel! Chega de África ser bombardeada por pensamentos de heróis de outros continentes, enquanto existem sábios e pensadores que marcaram e continuam a marcar a história do continente africano. A patrona da Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade (FDC) falava, ontem, durante uma palestra sobre os 100 anos de Julius Nyerere, proferida por Jakaya Kikwete.

Graça Machel mostrou-se entristecida com o que está a acontecer com o continente africano. Para a activista social, nem as comunidades, nem mesmo as lideranças estão a ser capazes de usar a riqueza intelectual e histórica dos líderes africanos para inspirar as novas gerações. Pelo contrário, considera que o continente está a ser “bombardeado” por pensadores de outras latitudes que nada têm a ver com África.

“Somos bombardeados por líderes de outros continentes, como da América, Europa e Ásia. E eu pergunto, quem são os nossos líderes? Quem os vai projectar? Quem os vai colocar no mapa? Quem vai fazer com que as nossas crianças cresçam tendo orgulho dos homens e mulheres que deram a vida pelo nosso continente? questionou Graça, para depois defender que “da mesma maneira que nos bombardeiam com heróis de outros povos, temos também que ter orgulho de encher o mundo com os nossos pensadores, os nossos sábios, os nossos líderes que marcaram o século 19 e 20. Quem não tem orgulho da sua identidade, vai sempre ser apagado”.

 

“TEMOS QUE TER ORGULHO DE NOS APROPRIAR DESSES PENSADORES”

A também antiga ministra da Educação chamou à responsabilidade o papel das universidades, africanas, no geral, e de Moçambique, em particular, para que possam mudar esse paradigma que torna o continente sem identidade própria.

“Temos que desenvolver o sentido de pertença em relação ao pensamento e o estilo de liderança dos nossos heróis. Nyerere merece que as nossas universidades estabeleçam cátedras sobre si. Nós, como africanos, como moçambicanos, temos que ter orgulho de nos apropriar desses pensadores, desde sábio que hoje homenageamos, esse personagem que ultrapassa todas as fronteiras. Temos que ter a nossa identidade bem clara para que possamos relacionar-nos com o mundo desenvolvido, com uma identidade clara, com firmeza, com confiança e com a possibilidade de definir as nossas próprias agendas. Temos que nos apropriar desses pensamentos para que nos inspirem nas grandes batalhas em que nós estamos hoje, e que podemos ter a certeza que continuarão no futuro”, defendeu Graça Machel.

E porque, no evento, estavam os antigos Presidentes Joaquim Chissano e Armando Guebuza e combatentes de Luta de Libertação Nacional, Graça Machel defendeu que os erros cometidos por esses governantes não minimizam o seu papel de libertadores da pátria.

“Esses líderes que estão aqui à nossa frente, você não tem que gostar deles como pessoas, mas tem que reconhecer que eles são fazedores da história, essa que vos moldou para estarem onde estão hoje. História é história, apropriem-se para o que eles representam de bom, ignorem o que, como humanos, eles têm como defeito. Não se pode ignorar todos eles simplesmente porque cometeram erros. É preciso reconhecer o valor histórico que eles representam. E não se vai inventar outra história sobre nós, é esta que está nesta sala”, terminou.

 

KIKWETE DEFENDE QUE ÁFRICA AUSTRAL É SORTUDA POR TER TIDO NYERERE

Convidado para falar dos 100 anos de Julius Nyerere (1922-2022), pai do Estado tanzaniano, Jakaya Kikwete abriu o livro e abordou a vida e obra do líder fundador da TANU e percussor do Pan-Africanismo. O orador começou por descrever que Nyerere era filho de um chefe tradicional e que, durante a sua infância, foi pastor de gado do seu pai. Começou a estudar aos 12 anos e, depois de concluir o ensino secundário no seu país, partiu para Uganda onde se formou como professor numa universidade. No seu regresso ao país natal, trabalhou como professor por três anos, tendo depois rumado para a Escócia onde fez o seu mestrado em História e Economia Política.

“Foi lá onde as suas ideias nacionalistas foram desenvolvidas e moldadas. Quando regressou ao país em 1952, ainda sob domínio britânico, continuou a dar aulas, mas, depois, juntou-se a uma associação africana que lutava pelos seus direitos. Na altura, existiam três classes, a primeira a dos europeus brancos, a segunda de asiáticos (indianos e árabes) e a última de negros”, introduziu.

Dado seu papel activo, na referida associação, em 1953, Nyerere foi eleito presidente. Sem estar satisfeito com o papel desempenhado pela associação que apenas lutava para a melhoria do bem-estar dos negros, junto dos seus companheiros, em 1954, decidem transformar a União Nacional Africana da Tanganyika, em partido político. Em Julho do mesmo ano, a União Nacional Africana da Tanganyika (TANU) nasceu e Julius Nyerere tornou-se no seu primeiro presidente.

Kikwete revelou que Nyerere abraçou a causa da liberdade e teve que consentir sacrifícios que até colocaram em causa o bem-estar da sua própria família. “Ele começou a dividir o seu tempo como professor e político, e as autoridades coloniais, na altura, não ficaram satisfeitas com isso e mandaram-lhe escolher entre o ensino e a política e ele escolheu a política. Não foi uma decisão fácil, isso significou para ele abandonar o seu trabalho como professor e tinha um salário, para se tornar num líder de um movimento sem salário. Foi um grande sacrifício tomar essa decisão, uma vez que já se havia casado com a sua esposa Maria e tinham um filho menor.”

Para Kikwete, foi o seu espírito de sacrifício e dedicação que o TANU ganhou visibilidade em todo o território e conquistou a independência sem ter que recorrer à guerra. Entretanto, com o alcance da liberdade, a Tanzânia foi atacada pelo regime de Idi Amin Dada do Uganda e Nyerere teve, mais uma vez, que mostrar a sua liderança, reunindo o partido para melhor decisão, que foi de expulsar o invasor.

“A decisão do país foi de que se avançaria para a guerra, mas, antes de avançar, reuniu o partido para debater a situação em que o país se encontrava e dizer-lhes que há um louco, um louco que atravessou a fronteira, ocupou o nosso país e que deveríamos expulsá-lo.”

Segundo Kikwete, mesmo com a independência do seu país, Nyerere não estava feliz, porque os países da região não estavam livres, razão pela qual acomodou e deu apoio a vários movimentos de libertação, como a Frelimo. “A África Austral e a Tanzânia são sortudas por terem tido um líder como Julius Nyerere. Ele foi um grande pan-africanista e defendia a liberdade dos povos oprimidos. Por isso, mesmo depois da nossa independência, ele criou condições de receber os líderes de movimentos de luta de libertação, deu espaço para treinar homens e até forneceu apoio material.”

No mesmo evento, vincou-se a necessidade de as academias trabalharem para a imortalização dos heróis de África, através de uma maior documentação da nossa história.

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