Não sei se alguém já abordou esta questão, mas, por mim, nunca li nem ouvi nada a respeito. E, sim, precisamos de falar dele. Precisamos de falar de Gilberto Mendes.
Precisamos de falar sobre a forma como ele conseguiu preservar a sua essência, manter-se fiel a si mesmo, mesmo depois de ocupar um cargo político de grande relevância no último mandato. Gilberto não se perdeu nos corredores do poder, não se diluiu na vaidade nem se afastou do homem que sempre foi. Manteve a sua rotina, a sua presença nos palcos, a sua escrita. E, depois de sair do cargo, a vida prosseguiu sem rupturas, sem teatros de grandeza: ele continuou a fazer o que sempre fez, como se a política tivesse sido apenas um capítulo – importante, sim –, mas não definidor da sua existência.
Quantas histórias ouvimos de políticos que, ao não conseguirem renovar os seus mandatos, mergulharam na irrelevância e na miséria? Quantos se viram incapazes de se reinserir na sociedade, como se o cargo tivesse sido não apenas um emprego, mas a única âncora das suas vidas? E quantos não foram os que, mesmo sem méritos visíveis, se agarraram a bens públicos, imóveis e privilégios, com a justificação de que nada tinham construído durante os anos de mandato?
É urgente falarmos disso.
É urgente reflectirmos sobre a excepção que Gilberto Mendes representa. Um homem que, mesmo dentro da engrenagem política, continuou a escrever, a representar, a dar corpo e alma ao teatro. E mais do que isso: a sua figura política, o seu lugar nas estruturas do poder, por vezes misturava-se nas personagens, invadia os palcos e servia de matéria-prima para novas obras. Ele levou a política ao teatro e não o contrário. Trouxe humanidade para os dois mundos.
Na nossa realidade, quando muitos dos nossos políticos conseguem finalmente um lugar à mesa do bolo, a primeira coisa que fazem é afastar-se das suas raízes, das suas comunidades, dos seus próprios espelhos. Agem como se nunca tivessem vindo de onde vieram, como se a proximidade com o povo fosse uma doença contagiosa. Lembram os antigos judeus a evitarem os leprosos, não por maldade apenas, mas por medo de serem novamente confundidos com aquilo que um dia foram.
Gilberto Mendes, porém, permanece inteiro. Consegue, com uma naturalidade desconcertante, estar em qualquer lugar, com qualquer pessoa, sem exibir desconforto ou arrogância. Ele não se desfigurou com o poder, não se blindou com títulos, não se afastou da sua humanidade. E isso, por si só, já é um feito.
Precisamos de falar disso. Urgentemente.
Dito isto, importa sublinhar que estas palavras nascem de alguém que testemunhou tudo de longe. É o olhar de quem acompanhou, com atenção e respeito, mas sem proximidade directa, o trajecto de Gilberto Mendes por entre as luzes da ribalta e as sombras da política. É possível – e até natural – que existam outras leituras, visões diferentes, percepções menos generosas ou mais críticas. Mas este é o meu testemunho. E senti que precisava de ser dito.