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Eventos infantis: quem protege crianças de músicas para adultos?

Nos últimos anos, o país tem assistido a eventos infantis com presença de cantores cujas músicas têm conteúdos para adultos. Especialistas alertam que a situação pode ter graves implicações no desenvolvimento e no comportamento futuro dos menores.

São inocentes, frágeis e ainda pouco sabem discernir o certo do errado. Elas são crianças! Mas, a sua inocência está ameaçada. É que, nos últimos anos, o país tem vindo a assistir a eventos para crianças com músicas, cujo conteúdo é próprio para adultos, o que abre debate sobre que tipo sociedade estamos a construir.

“TEMOS FALTA DE CANÇÕES INFANTIS”

Amélia Sambo, educadora de infância há quase uma década, lamenta: “temos falta de canções infantis”. Porque há falta de canções para crianças, a educadora vira-se como pode, até porque conhece bem a sua influência deste instrumento no desenvolvimento cognitivo das crianças.

“Temos situações de crianças que apresentam dificuldades de assimilar as matérias. Quando isso acontece, usamos as canções, para que, por exemplo, possam memorizar os números, ao invés de apenas falarmos; nós cantamos e assim as crianças fixam com mais facilidade”, referiu, para, em seguida, lamentar que sejam também os pais a induzirem as crianças a consumirem músicas impróprias.

“Há vezes que as crianças pedem músicas para adultos. A nós cabe a missão de conversar com a criança para a sensibilizar que aquelas músicas não são decentes para a sua idade e que devem passar a cantar músicas com conteúdos apropriados”, referiu. 

“AS CANÇÕES AJUDAM A CRIANÇA A ORGANIZAR O PENSAMENTO”

A nossa reportagem conversou com a psicopedagoga Atalvina Uaete. Ela iniciou descrevendo a importância que as canções infantis têm no processo de ensino e aprendizagem.

“Quando a criança canta, em algum momento, ela pára para perceber o que a música quer dizer. Isso significa que ela já está na dimensão de raciocínio. As canções ajudam a criança a organizar o pensamento. E para que a criança consiga reproduzir a música, ela precisa de entrar para o exercício de memorização. Para dizer que o uso de canções no processo de ensino e aprendizagem é de grande importância. Elas ajudam na questão da memória e atenção que tanto é desejada na sala de aula. Para poder cantar, a criança tem que escutar e para escutar tem que estar atenta”, introduziu.

ESPECIALISTA ALERTA: PAIS DEVEM INVESTIGAR CONTEÚDOS CONSUMIDOS PELAS CRIANÇAS

A especialista defendeu que os pais devem prestar mais atenção na educação dos seus filhos, sendo que isso passa, também, por perceber a que tipo de conteúdos eles estão expostos.

“É importante que os pais cultivem o hábito e verifiquem o que os seus filhos escutam. Estamos, agora, a falar de canções, mas a criança pode estar a consumir outros conteúdos inadequados, numa altura em que ela está no processo de formação da sua personalidade. Ela está à procura de referências para a sua vida.”

YOLANDA CHICANE ESCANDALIZADA SITUAÇÃO ACTUAL

A nossa reportagem procurou por Yolanda Chicane, vocalista principal da Banda Kakana, grupo musical que tem vindo a apostar em canções para crianças. Com tristeza é como a cantora diz que tem vindo a encarar a divulgação de músicas adultas em eventos para crianças.

“Isto é grave. Não sei o que nós, os adultos, estamos a fazer. O futuro está comprometido. É uma situação muito séria”, iniciou a artista para quem a situação é gravosa, porque conta com a conivência dos pais e encarregados de educação.

“Não faz sentido, acho que os próprios pais estão doentes. Estamos a normalizar situações como estas. Estamos a perder valores e, um dia, vamos queixar-nos disso”, lamentou.

A cantora disse ainda que a pobreza pode ser a razão que leva os músicos a não pensarem no impacto das suas acções.

“SE OS PAIS FOSSEM RACIONAIS, NENHUM LEVAVA O SEU FILHO”

Para o guitarrista da Banda Kakana, Azarias Nhabete, o problema é profundo e revela perda generalizada de valores. “Nós somos tudo, menos moçambicanos. Queremos ser tudo, menos moçambicanos, por isso estamos nesse estágio. A nossa indústria praticamente não existe, por isso vamos consumindo o que vem dos outros. Aqueles espectáculos não são um problema, o problema está na nossa cultura e naquilo que cada pai quer para o seu filho. Se os pais fossem racionais, nenhum levava o seu filho.”

A banda até está envolvida num projecto de gravação de canções cantadas por crianças para crianças, mas ninguém quer ajudar. Nhabete diz que o mais triste é que nunca apareceu nenhuma autoridade a condenar publicamente a situação.

MINISTÉRIO DA CULTURA CULPA MÚSICOS: “ESTAMOS PERANTE UMA QUESTÃO DE RACIOCÍNIO E MENTALIDADE”

O “O País” contactou o Ministério da Cultura e defendeu-se e atirou parte da culpa aos cantores envolvidos: “Entendemos que não são eventos apropriados para crianças. Esses cantores envolvidos são pais e encarregados de educação. Eles deveriam questionar-se sobre que tipo de lições estão a dar aos seus filhos”, disse Emanuel Dionísio, director nacional das Indústrias Culturais.

No rol dos culpados estão também os organizadores, que, segundo o Ministério da Cultura, não respeitam a legislação. “Há legislação específica. Aqui estamos perante uma questão de raciocínio e mentalidade. Como uma pessoa adulta vai organizar um evento e mandar tocar músicas que não são adequadas para o público-alvo? É uma questão de consciência, não é uma questão de colocar policiamento nos eventos”, defendeu o dirigente.

É parte da responsabilidade do Ministério da Cultura e Turismo autorizar a realização dos espectáculos, por essa razão, a cantora Yolanda Chicane defende que esta entidade deveria fazer mais.

INAE DIZ SABER DE EVENTOS ATRAVÉS DAS REDES SOCIAIS

Recentemente, o Conselho de Ministros reviu o Decreto Nº 23/2012, de 9 de Julho que aprova o Regulamento de Espectáculos e Divertimentos Públicos. O documento prevê que cabe à Inspecção Nacional das Actividades Económicas (INAE) fazer a fiscalização destas situações.

“Os músicos não são culpados porque eles são convidados para fazer parte dos eventos. Os maiores responsáveis são os promotores, eles sim, é que devem ter maior responsabilidade”, defendeu Tomás Timba, porta-voz daquela entidade.

Em outro desenvolvimento, Timba lamentou que, muitas vezes, a INAE não seja informada sobre a realização de eventos. “É uma fraqueza o facto de termos que tomar conhecimento de certos eventos através das redes sociais. Não deveria ser assim. As instituições que dão as autorizações para a realização dos espectáculos deveriam partilhar informação, isso permitiria que, como entidade fiscalizadora, fossemos ao terreno e fizéssemos o nosso trabalho antes do evento decorrer.”

PAIS DEVEM SABER DIZER “NÃO”, DEFENDE ESPECIALISTA

Não obstante a existência dessas deficiências na fiscalização, Atalvina Uaete defende que os pais devem acordar para a realidade e assumir o seu papel. “Nós temos que saber dizer ‘não’. Alguns pais liberalizam a educação, o que não é correcto porque é preciso colocar limites. Os pais devem até proibir certos tipos de músicas, porque isso vai virar hábito e, com o tempo, esse hábito transforma-se numa forma de comportamento. As crianças vão imitando as danças sensuais e, como consequência, podem desenvolver uma sexualidade precoce”, terminou. 

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