No dia 17 deste mês, a Ethale Publishing vai exibir uma sessão de debate na Feira do Livro de Frankfurt. De igual modo, a editora moçambicana vai poder colocar os seus livros em exposição digital permanente nesta edição da feira. Começando por se referir à importância de participar no mais prestigiado encontro editorial do mundo inteiro, nesta entrevista, o editor da Ethale Publishing, Jessemusse Cacinda, também defende que o país tem uma geração de autores com qualidade, mas que corre risco de se desmoralizar. Cacinda enumera as conquistas da sua editora, o que vai bem na arte literária, mas também destaca que as livrarias têm feito um péssimo trabalho na promoção da literatura moçambicana.
A Ethale Publishing participa, este mês, na Feira do Livro de Frankfurt. Por que investir neste evento?
Nós temos estado a participar em vários eventos literários. Cada oportunidade que temos de participar numa iniciativa literária, achamos que é mais um passo para a construção da nossa história como editora, assim como para projectar as actividades que temos estado a desenvolver. Por isso, nunca negamos de participar em eventos culturais de toda índole. Começando por Moçambique, este ano somos parceiros da Feira do Livro de Maputo; participamos no Festival Resiliência, promovido pela Cavalo do Mar; no Quénia, participamos no Macondo Litary Festival, em Nairobi; e agora estamos a ter a oportunidade de participar na Feira do Livro de Frankfurt. Estar nestes eventos permite que as nossas actividades, os nossos livros e os nossos autores sejam conhecidos e cheguem a mais público. A Feira do Livro de Frankfurt é a nossa primeira oportunidade fora do continente africano. É bom porque nesse evento estarão autores de vários cantos do mundo, com muita experiência e profissionais da indústria literária e cultural. Nunca tivemos oportunidade de chegar a Portugal ou a Brasil. Quem sabe, conseguimos chegar a esses países a partir de Frankfurt. É uma janela que se abre para nós.
Quer explicar porquê optaram pela exposição de livros e pelos Ethale Talks?
Estas são as grandes actividades que realizamos. Uma editora, essencialmente, edita livros. Se temos uma oportunidade de participar nesta feira, então vamos expor os nossos títulos e falar da situação em que se encontram os direitos autorais. Por exemplo, nós temos direitos autorais de clássicos africanos para alguns mercados e direitos autorais a traduzir para a língua portuguesa. Então, a Feira do Livro de Frankfurt será uma oportunidade para expormos esses nossos direitos. Temos notado que instituições brasileiras têm muito interesse na literatura e no pensamento africano. Achamos que esta é uma boa oportunidade para lhes mostrar os livros no nosso catálogo, de clássicos africanos que não existem no Brasil e em Portugal, por sermos os primeiros a traduzir para a língua portuguesa. Portanto, levamos os Ethale Talks porque se transformaram numa marca nossa este ano. Quisemos continuar a produzir os debates noutros tipos de espaços. Vamos aproveitar a tela da Feira do Livro de Frankfurt para, durante 20 minutos, fazermos uma edição especial do Ethale Talks, que vai debater o papel de instituições europeias na promoção das literaturas africanas ou o que se pode fazer para que as literaturas africanas sejam mais pujantes e sobre que oportunidades de negócio as editoras europeias podem ter em África. Vamos discutir essas temáticas que são do interesse da audiência da Feira do Livro de Frankfurt e do nosso próprio interesse. Criar mercado é uma coisa que nos dá credibilidade e pujança. Se queremos nos afirmar na indústria do livro, temos de partir de dentro. Uma iniciativa como Ethale Talks ajuda porque muita gente acaba tendo interesse pela literatura e pelo pensamento africano quando acompanha os debates. Ou seja, as pessoas que acompanham os Ethale Talks depois são conduzidas aos livros.
Com os Ethale Talks pretendem nos dizer que as editoras, como instituições que apenas publicam livros, são coisas do passado?
Sim, posso afirmar que sim. Se nos focarmos em apenas editar livros, não temos capacidade de sobreviver. Para dar uma ideia. Uma iniciativa como Ethale Talks tem mais capacidade de se financiar em relação a uma edição de livro. É mais fácil financiar debate público, debate de ideias, de rádio, do que livros. O pessoal que trabalha na indústria da publicidade quer ter certeza de alcance em termos de público. Uma publicidade num programa televisivo, por exemplo, chega a mais pessoas do que a uma publicidade numa contracapa de livro. Por isso, nós podemos desenvolver actividades como Ethale Talks e pegar no financiamento que encaixam para usar na produção de livros, como forma de assegurar que a edição continue. Agora, há uma vantagem em publicitar no livro, que geralmente é lido por pessoas com poder de compra. Se uma marca está na contracapa de um livro, a mesma marca vai alcançar pessoas com poder de compra, o que não se pode falar dos Ethale Talks, disponível através da Internet e que, num contexto em que temos praças digitais, muitos jovens podem aceder. Ou seja, as 16 mil pessoas alcançadas pelos Ethale Talks não significa que todas têm poder de compra. Agora, as quinhentas pessoas que vão comprar o livro têm uma conta bancária. Se as marcas olharem para esse tipo de publicidade, notarão que é seguro, porque vai a pessoas que podem aderir a um tipo de serviço. O importante, para nós, é diversificar as estratégias. Por exemplo, se a entidade que apoia ou financia os Ethale Talks quiser alcançar a juventude, sai a ganhar. Se a entidade pretende alcançar um público que paga seguros e tem conta bancária, o livro é uma estratégia.
O que esperam receber na Feira do Livro de Frankfurt?
Esperamos encontrar instituições que detém direito de livros que estamos à procura. Há grandes autores africanos que ainda não existem em língua portuguesa, que ainda não temos direitos para traduzir. A nossa participação vai ajudar-nos a encontrar novos livros, novos autores e novas colaborações. Segundo, esperamos aprender um pouco mais como se explora novos mercados, literários no sentido de podermos estendermos o nosso trabalho. Neste momento, podemos dizer que conseguimos estabelecer um sistema de distribuição em Moçambique, que nos satisfaz. Em quatro anos de existência conseguimos colocar livros em todas as capitais provinciais e em alguns distritos, como Nacala, Palma e Songo. Temos uma experiência de construção de mercado. Agora avançamos para Angola, em parceria com uma editora e distribuidora angolana. O nosso acordo prevê que possamos enviar livros editados por nós, para serem distribuídos lá. Por sua vez, os livros editados em Angola podem ser enviados a Moçambique e serem distribuídos aqui. É esse tipo de colaboração que em África falta muito. Por exemplo, é mais fácil que escritores africanos saiam do continente do que trabalharem no continente. A nossa filosofia é tentar quebrar essas barreiras. Nós vamos à Feira do Livro de Frankfurt para negociar com instituições portuguesas e brasileiras, com bom histórico em termos de colaborações em África.
A Ethale Publishing tem Wole Soyinka no catálogo, Nobel da Literatura 1986. Há uma estratégia definida para fazer disso um factor de negociação equilibrado nessas futuras parcerias?
Não diria que é uma estratégia. Vamos levar uma parte de nós. Os nomes que temos no nosso catálogo, Wole Soyinka, Ng?g? wa Thiong’o, fazem parte da nossa própria história como editora. O nosso sonho sempre foi negociar em pé de igualdade. Não gostaríamos de ser editora africana que leva os seus trabalhos para fora numa condição de passivo, não. Queremos ir numa condição de activo. Enquanto colocamos esses nomes no catálogo, vamos incluindo nomes de autores moçambicanos. Por exemplo, temos estado a fazer um trabalho com Mélio Tinga como nosso autor. Trabalhamos nesse sentido e todos sentimo-nos comprometidos em trabalhar em volta deste autor. Tudo isso faz parte da nossa própria história. Estamos a trabalhar com dois novos autores moçambicanos, que ainda não se estrearam em livro, de modo que os possamos lançar próximo ano.
Já percebi que a Ethale está a traduzir clássicos africanos para a língua portuguesa. Têm o interesse de traduzir autores moçambicanos para outras línguas?
Nós somos essencialmente uma editora que edita livros em português. Por isso, o nosso foco tem sido traduzir de outras línguas para o português e conquistar mercados em língua portuguesa.
O inverso não vos interessa?
No inverso temos uma componente nossa, de tentar projectar os nossos autores internacionalmente, no sentido de se sentirem confortáveis. O que estamos a fazer é tentar promover… por exemplo, a antologia O hambúrguer que matou o Jorge ficou disponível em inglês. Nós contactamos editoras e Alex Macbeth, meu sócio e coordenador editorial comigo, fez a tradução. O livro foi editado na Nigéria. Nós vamos pegar nesse livro, porque mesmo na versão inglesa os direitos são nossos, para Feira do Livro de Frankfurt. E vamos fazer mais contactos de modo que livros de outros autores, como Mélio Tinga, possam ser traduzidos para outras línguas. O nosso compromisso com autores moçambicanos que publicam pela primeira é fazer com que eles sintam que editar connosco não significa necessariamente ser periféricos.
Porquê investir em autores consagrados africanos e, no caso particular de Moçambique, optar por autores em ascensão?
Isso, sim, tem a ver com estratégia de negócio. Nós entramos para um sector que já tinha outros intervenientes. Dentro deste sector achamos oportuno trabalhar em componentes que pudessem nos distinguir no mercado. Não estamos a dizer que não editamos outros livros, não. Até editamos não-ficção – como sabe, que geralmente sustentam uma editora –, e desenvolvemos vários projectos no sentido de ganhar sustentabilidade. Editamos novos autores moçambicanos porque estão sempre à procura de nova editora. Não somos os únicos que editamos novas vozes, mas não somos suficientes para cobrir a quantidade de jovens que querem lançar livros. Segundo, notamos que no nosso mercado não existem clássicos africanos. Mesmo no nosso sistema de educação, quando estudamos literaturas africanas, é em língua portuguesa. Por exemplo, eu fiz Filosofia Africana na faculdade, e reparei que os livros africanos recomendados eram poucos. Então achamos que é uma forma de contribuir para cobrir um défice que há no nosso espaço cultural, intelectual e trazer mais conteúdo africano para os próprios africanos.
Como a vossa participação na Feira do Livro de Frankfurt pode contribuir para o turismo moçambicano, como defende?
Participar numa Feira de Livro de Frankfurt e mostrar o que se produz em Moçambique, do ponto de vista de literatura, faz com que as pessoas oiçam falar do nosso país, tenha curiosidade e apetência de visitar Moçambique. Portanto, é o turismo e é a economia que ganham. É assim que a cultura contribui para a economia de um país, por isso falei de narrativas africanas, porque, quando nós contamos histórias sobre os nossos espaços, os nossos espaços tornam-se míticos e as pessoas ficam com vontade de os visitar. Visitando os nossos espaços, compram os nossos produtos, comem a nossa comida e dormem nos nossos estabelecimentos. Com isso a economia desenvolve. Da mesma maneira que fizemos com a Ilha de Moçambique, através da cultura, podemos fazer outros lugares do nosso país através das histórias.
Ampliando a conversa, actualmente, temos (novos) autores em quantidade e com qualidade suficiente para alimentar o vasto público que as editoras almejam alcançar?
Sim, a literatura moçambicana é muito forte. O nosso espaço literário é muito exigente, ao contrário dos espaços de outros países africanos que temos estado a trabalhar ou a visitar. Conseguiu-se criar uma exigência no mercado moçambicano, em que as pessoas julgam-se a si próprias até que ponto estão preparadas para editar a sua obra. É suspeito dizer isso, porque sou moçambicano, mas em África, a nossa literatura é das melhores. Acho que temos quantidade e qualidade suficiente para alimentar os leitores regularmente. Nós só não publicamos mais por falta de capacidade financeira. Esta juventude tem feito coisas que, quando comparamos com países que possuem indústria cultural mais forte, sentimo-nos orgulhosos.
Convido-lhe a fazer uma comparação interna, agora. Em termos de qualidade (designer, edição, impressão, ficção, poesia, etc.), estamos melhores do que aquela geração que nos anos 80 já publicava livros no país?
Essa é uma pergunta difícil. Quando olho para a literatura moçambicana, ainda não tive um vagar para poder fazer uma comparação interna nos vários momentos. Geralmente concentro-me no que se está a produzir em Moçambique e na África do Sul, no Quénia ou na Nigéria. Aí consigo ter opinião, do que comparar a própria literatura moçambicana. Agora, há aspectos importantes. Nos anos 80, a exigência também era maior. Por via disso, podemos esperar uma qualidade um pouco maior. Hoje o espaço está mais democratizado e, assim, as pessoas publicam à vontade. Então, pode haver uma situação qualitativa reduzida. Mas, quando nos comparamos com os outros, estamos melhor. Agora, a ausência de políticas culturais pode contribuir para esta geração de escritores se desmoralize ao longo do tempo e abrande o seu nível de produção.
Exemplo de políticas culturais em falta?
Falta uma política de leitura, do livro moçambicano e um sistema de educação que valoriza a leitura de livros e não de textos. Há muita gente que fez a licenciatura, está a fazer o mestrado e nunca leu um livro. Enquanto tivermos um sistema a funcionar dessa forma, o livro dificilmente será valorizado. E se o livro não é valorizado, todo este talento que me referi pode desmoralizar-se e não chegar a uma geração de ouro. Por exemplo, na década de 80, com várias carências, editavam-se mil ou três mil livros. Hoje, com mais condições, editamos 500 exemplares vendidos em cinco anos. A total ausência de políticas culturais não motiva.
É ingrato editar livros em Moçambique?
Não, não é porque eu, pessoalmente, entrei para este mercado movido pela vontade individual de poder contribuir para que as histórias africanas sejam conhecidas. Enquanto isso estiver a acontecer, a satisfação é maior, porque é mais uma história africana que está a chegar ao público e que fica disponível. Então, a nossa actividade não tem como ser ingrata. Agora, temos desafios no mercado e o trabalho que estamos a realizar é para os superar. Neste momento nós trabalhamos com fé. Quando colocamos os livros nos distritos as pessoas compram. Este ano estive em Sofala. Fui para Búzi, Nhamatanda e Dondo. Fiquei dois ou três por lá e, em Búzi, vi pessoas a lerem livros e jornais editados na Beira. Aliás, ainda ontem eu comentava com algumas pessoas na AEMO, que em Sofala está-se a criar aquilo que eu acho que deve ser criado em todas as províncias do nosso país, em que se produz livros, distribui-se e esgotam-se todos os exemplares na província. Isso está a acontecer em Sofala. Eu fiquei bastante satisfeito quando vi isso em Búzi e dei os parabéns ao Dany [Wambire], que tem estado a fazer um bom trabalho em Sofala. Isto faz-me perceber que nem tudo está perdido, é só continuarmos a trabalhar e levar mais livros aos distritos.
O problema das livrarias…
A maioria das livrarias, com a excepção da Mabuko, vivem para alimentar a literatura europeia. Ou seja, são uma espécie de revendedores de livros europeus. A forma como tratam os livros moçambicanos não nos dignifica, é como se não estivessem em Moçambique. Se dermos um passeio pelas livrarias, vamos perceber que a maioria dos livros moçambicanos estão lá escondidos, enquanto os europeus estão bem projectados para serem vistos pelo público. Se vamos a Mabuko, os livros moçambicanos estão ali à vista, em destaque, isso, sim, contribui para as pessoas apreciarem a nossa literatura e perceberem que temos qualidade.
Além disso, o que está a acontecer para que mais autores e editores optem por não vender os livros nas livrarias?
As livrarias tratam mal os livros moçambicanos. Quando levamos livros moçambicanos, eles recebem e guardam. Ligamos, enviamos sms, e-mail e não respondem. Um dia apetece-lhes e colocam o livro à venda. Quando o livro está na livraria, autores e editores promovem-no e vende. Esgotado o livro, é mais um contacto difícil para ser remunerado. Assim sendo, criamos os nossos espaços de distribuição que se têm mostrado eficientes em relação aos espaços tradicionais como é a livraria. Claro, há uma e outra livraria que tem bom contacto connosco e que valoriza o livro moçambicano. Mas a maioria não valoriza os nossos livros.
Sugestões artísticas para os leitores do jornal O País?
Sugiro a engenharia da morte, de Mélio Tinga; a música “Samba”, que está no disco Melo tomorrow, de Gimo Mendes; e A greve dos mendigos, de Aminata Sow Fall.
Perfil
Jessemusse Cacinda formou-se em Filosofia, tendo um mestrado em Sociologia do Desenvolvimento. É co-fundador da Ethale Publsihing, editora vocacionada na promoção do pensamento africano. No seu catálogo, editou livros de autores como Wole Soyinka (Nobel da Literatura) e Ng?g? wa Thiong’o. Os seus trabalhos literários foram publicado em antologias, jornais e revistas em Moçambique, África do Sul, Namíbia e Quénia. Investiga as temáticas de cidadania e governação, comunicação política, análise do discurso, rádio e culturas urbanas.