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Este é um dos nossos grandes mestres …

Por Rudêncio Morais

Confidenciou-me visivelmente maravilhado e olhar embaciado, o Aurélio Ginja, ao ver caminhar em direcção ao centro da sala que nos acolhia, uma das vozes que veste o âmago existencial da nossa música, prendi o olhar, e nesse instante, cauteloso, fui sentindo o dedilhar experiente e fluido de Xico António, uma espécie de “Karingana wa Karingana” que significa, em português, “era uma vez”, expressão que em língua Xironga dá início a uma história. E foi assim, com esse prelúdio musical em jeito de quem pede licença aos antepassados e a nossa ancestralidade, que a escritora moçambicana Sara Jona, convidou-nos a penetrar com cautela e trato delicado, o corpo da Margem Sul de Moçambique, sua arte e interculturalidade, uma viagem que tem como porta de entrada o agradecimento aos gigantes que fazem o percurso dessa voz que se deixa trajar de peito aberto pela tradição que corporiza o quotidiano das nossas comunidades e a forma como ela, a tradição, se vai transformando com o tempo nesse viajar entre o mundo rural e urbano.

Ouvir Xico António, antes do ritual da escrita de Sara Jona, aflorou o diálogo permanente entre a música e a escrita, permitindo que os textos fluíssem numa sonoridade que, vez por outra, nos convidavam a percorrer, de forma quente, o véu da saudade e a revisitar as noites nas quais a volta da fogueira se nos eram apresentadas as lições aprendidas na escola da vida, antecedidas de um _Karingana_ wa _karingana_ .
O princípio da noite foi verdadeiramente um mergulho sobre a margem sul de Moçambique, e quando o livro se nos foi apresentado, inundou-nos um frio e quente pertencer a esta terra e suas tradições, o trato do “Eu” cultural e a mania nossa de nunca nos esquecermos dos antepassados; diz o Falso Poeta, no _murmurar dos búzios_ e _as miudezas da Alma_ , que os mortos não morreram, eles transformaram-se nos fazedores da nossa paz interior…há muito de paz e de convocação de humanismo até da própria palavra neste trabalho que apalpa, de forma íntima, as entranhas de parte considerável de um país multicultural e linguístico, somos 11 grupos étnicos e com cerca de 25 línguas, para não falar dos dialectos que são mais de três dezenas, que se mesclam no falar das suas tradições e mitos.

Este livro é um arremesso para dentro do que somos antes de tudo resto, um diálogo constante entre as nossas tradições, crenças e transformações que se foram fazendo com o tempo, uma chamada obrigatória para encarrar os nossos medos e repensar os valores que pretendemos emoldurar para o futuro, as picadas da vida que os nossos filhos e netos terão que percorrer sem nunca se esquecerem do aroma dos nossos tempos e de como os seus ancestrais foram ao longo da vida, costurando as suas vivências. É um livro de memórias factuais e adornadas no trato de quem as veste de existência.



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