Algumas obras não pedem licença! Elas invadem, desestabilizando e lançando golpes que atingem o coração e consciência de quem as lê. Missa pagã, é um desses raros exemplos. Mais do que uma colectânea de crónicas, é um grito contido, um toque de alerta para as inquietações e contradições que habitam a nossa sociedade.
Fernando Manuel, revela uma obra que ousa desafiar os cânones literários, descrevendo como os eventos “acontecem a velocidades alucinantes” e ganham “dimensões tão radicais”.
Em consonância com essa abordagem, esmiúça os detalhes da religiosidade, disparidades sociais, e aspirações pessoais, construindo território onde o riso e a indignação caminham lado a lado, e onde cada personagem apresenta algo inesperado sobre a sociedade e, talvez sobre nós mesmos.
No primeiro capítulo o leitor é embrenhado em “Salmo I- sobre a sombra do tempo” ; “Salmo I”, que geralmente é associado a louvores e súplicas contrasta ironicamente com a visão desencadeada do autor em relação ao tempo e a vida moderna.
Por outro lado, “ Sobre as sombras do tempo” , insinua que o tempo, mais do que uma dimensão linear, é uma presença persistente e intangível, que traz consigo as marcas de um passado distante e, ao mesmo tempo, projecta incertezas no futuro.
Fernando Manuel estrutura suas crónicas dissecando uma linguagem que é ao mesmo tempo, poética e desconcertante. De facto, combina humor e sarcasmo com uma melancolia subjacente, criando uma voz narrativa que desafia o leitor a enxergar além do que é dito.
Ele se debruça sobre pequenas cenas como: a lembrança de tomar chá de limão, dividir pão entre os membros da família e ouvir a voz de Oliver Ngoma no rádio, momentos íntimos que colectivamente, constroem um retrato da sua existência e identidade cultural, dando ao leitor uma sensação de proximidade com o personagem e criando uma nostalgia que reflecte nas experiências daqueles que sentem os efeitos das rápidas transformações do mundo ao seu redor.
Sob uma óptica mais apurada em “Evangelho Pessoalizado”, encontramos não apenas uma narração, mas uma escultura, com precisão quase cirúrgica, de uma crítica feroz à mercantilização da fé. O cronista, lança um olhar ácido sobre as práticas religiosas contemporâneas, onde o sagrado e o profano se entrelaçam em uma dança de interesses financeiros e promessas vazias.
Ao descrever a igreja na Avenida Marien Ngouabi, o autor molda-a quase como uma fortaleza, uma espécie de “castelo de ilusões” em que multidões depositam seus sonhos e esperanças.
O cronista descreve ainda a explosão de cânticos e vozes vindas do templo, uma cacofonia que parece ecoar não só os anseios de redenção dos fiéis, mas também a surdez proposital do Criador – um Deus que talvez já esteja cansado de promessas não cumpridas ou de pedidos que jamais cessam, diria Frederick Nietzsche “ a fé é ignorar tudo aquilo que é verdade”.
A crítica se concentra, portanto, na maneira como a igreja é apresentada como um “mercado de almas,” onde o valor de cada fiel é medido pelo dízimo que pode oferecer. Em vez de ser um santuário de acolhimento, a igreja é mostrada como um cofre insaciável, alimentado pela inocência e pelo desespero dos fiéis.
No entanto, é interessante notar a posição do narrador que, observando de fora, encontra-se ele mesmo em uma espécie de deserto espiritual. Ele confessa ter “pontos de fuga,” como se estivesse encarcerado em uma teia invisível de angústias, buscando alívio na sua própria solidão e nas pequenas evasões para aliviar as exigências diárias.
Sua peregrinação até o bar da esquina se transforma em um rito pessoal, onde ele busca em cada gole um pouco de esquecimento, como se o álcool fosse sua hóstia amarga diante de uma vida em que o sagrado se transformou em farsa.
Contudo, o foco à exploração financeira e na relação com o lucro pode reforçar estereótipos negativos sobre igrejas evangélicas, ignorando os aspectos positivos que também existem em muitas comunidades religiosas. A generalização pode dar a impressão de que todas essas igrejas actuam de maneira predatória, o que pode ser percebido como um viés.
Por conseguinte, nota-se que o autor não dedica muita atenção aos fiéis que realmente buscam conforto espiritual. Esses personagens são mostrados de maneira um tanto distante, quase como figuras ingênuas ou manipuláveis, sem uma análise minuciosa de suas motivações e dilemas.
Ainda assim, com sua fluidez, Fernando Manuel leva o leitor a rir das desventuras de uma sociedade em decadência; Em vez de oferecer respostas, ele lança dúvidas que iluminam brevemente, apenas para mergulharem novamente em novas sombras.
Mais a diante, em “ Pobreza e Álcool”, o autor expõe, de forma mordaz, a precarização da classe média moçambicana e a escalada do consumo de álcool como válvula de escape para a desamparo social.
rofissionais como professores, médicos e funcionários públicos — outrora considerados pilares da sociedade — são levados à margem, enquanto suas profissões perdem qualquer estabilidade ou dignidade. “A falta de dinheiro é a raiz de todo mal,” conforme popularizou George Bernard Shaw, revelando como a escassez de recursos mina o espírito e empurra uma sociedade inteira à beira do colapso.
Sua análise confronta a retórica política de igualdade e tolerância, evidenciando como promessas de mobilidade social e meritocracia se diluem em slogans vazios.O consumo crescente de aguardente caseira torna-se, então, um reflexo melancólico desse ambiente. Incapazes de encontrar uma saída, muitos recorrem ao álcool como uma forma de anestesiar a frustração.
O professor embriagado tentando ensinar, transforma-se em um ícone de desconexão das condições de trabalho e de vida. Fernando, expande essa ideia para mostrar como, de Niassa a Maputo, o desânimo é o mesma, com o álcool servindo como um antídoto momentâneo para o sofrimento, embora acabe apenas agravando a apatia social e a miséria material.
A obra, não apenas demonstra uma sensibilidade única para apreender as inquietações de uma geração subjugada, entretanto também nos faz lembrar de autores e pensadores cujas teorias desconstroem visões limitadas de realidade. No capítulo “Gajos Bons,” o cronista provoca reflexões que ressoam ideias da Teoria da Relatividade, demonstrando que a verdade não é absoluta e que o entendimento da realidade depende do ponto de vista de cada um.
Fernando é, sem dúvida, um “gajo bom”, não apenas por sua compaixão pelos personagens marginalizados, não obstante também por sua capacidade de transitar por ideias filosóficas e científicas, ou ainda por já ter sido professor de História, com efeito, enriquecendo a literatura com percepções provocativas e originais.
Missa pagã, portanto, é uma obra que conduz o leitor a reflectir sobre a espiritualidade de um modo que não esteja preso a dogmas, porém enraizado nas experiências e contradições de todos nós.