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Escolas “maquiam” pautas e aprovam alunos sem competências

Foto: O País

Há professores e direcções de escolas que manipulam pautas para aprovar alunos que não sabem ler nem escrever. Uma investigação exclusiva do jornal “O País” traz com detalhe como o esquema funciona. Os especialistas não têm dúvidas de que tal facto revela que a educação no país está no fundo do poço.

O Sistema Nacional de Educação não anda bem e quase todos sabem disso, desde as falhas nos livros, testes, até ao pagamento de horas extras aos professores. Isto é parte dos problemas, em resumo. Só que há outro que é trancado a sete chaves e estas lançadas ao fundo do mar.

Na verdade, é um esquema que envolve todos. Da base ao topo. Estamos a falar da manipulação de resultados pedagógicos para passar alunos sem competências básicas de leitura e escrita.

Com exclusividade, o jornal “O País” investigou o caso. Os professores são o motor que faz funcionar a educação. São eles os principais protagonistas nesta reportagem. Serão tratados na condição de anonimato.

Dizem eles que dão o melhor de si em cada palavra escrita, lida e ensinada aos alunos, mas, no final, não é só isto que conta.

“Quando tu vais entregar uma pauta, o DEC, costumam perguntar se observou questões de percentagem. Então, a percentagem que é apresentada nas escolas, hoje em dia, não reflete a realidade”, denunciou Eduardo, nome fictício de um professor secundário.

A realidade não está nos números apresentados, pois os professores são forçados a aprovar alunos que sequer sabem ler muito menos escrever.

“A orientação é que nós devemos estar preocupados com os números. Esses mesmos números devem ser positivos”, revelou outro professor, que vamos tratá-lo por Helton, nesta reportagem.

E a percentagem só é considerada positiva a partir de 75 por cento de alunos aprovados por turma. A ordem é clara. Ninguém deve apresentar abaixo disso.

“Então, nenhum professor deve dar-se ao capricho de apresentar uns 30 por cento, uns 20 por cento que é a realidade muitas das vezes. Se apresenta esse tipo de percentagem, vai alterar isso. Dizem mesmo que o professor tem que alterar isso”, referiu Eduardo, acrescentando que a “ordem superior” vem com um tom de ameaça à mistura: “Se você não altera, é normal no ano seguinte ser transferido para uma outra escola”.

A busca de números positivos, mas vazios de conteúdo, estende-se até às salas de exame.

“Há aquele momento em que o professor dita as respostas, mas o aluno não sabe escrever. Então, há professores que ajudam mesmo para o aluno conseguir ter nota e passar”, acrescentou o professor Eduardo.

E no meio dessas graves acusações, incluem-se as direcções das escolas. “Preocupam-se mais em querer estar numa situação da escola melhor, porque aquele que apresentar uma escola com melhor percentagem é o melhor, é a melhor escola, é o tal director, posso assim dizer”, observou o professor Helton.

Com exclusividade, tivemos acesso a mapas de notas, mais conhecidos por DEC, de algumas escolas nas versões original e manipulada. Os documentos são do aproveitamento pedagógico do trimestre passado.

Numa das versões iniciais entregue pelo professor à direcção da escola, foram reprovados 27 alunos do total de 75. O director da escola não gostou do resultado e, para a versão final, ordenou ao professor a subir o número para 40 alunos aprovados.

Noutro mapa, de acordo com a sua avaliação, foram reprovados 21 alunos, mas a cifra não agradou ao director, que exigiu que fossem reprovados apenas 13.

E com dados supracitados, os directores e as respectivas escolas são bem vistos, mas os seus alunos têm a leitura como um quebra-cabeça. A nossa equipa de reportagem foi a algumas escolas da Cidade e Província de Maputo, onde encontrou crianças que passaram das classes iniciais até às actuais sem saber ler nem escrever.

Com os alunos, começámos por fazer um breve exercício de leitura. Desafiámos um dos alunos a ler o excerto de um texto do jornal Canal de Moçambique: “Texto lido: CDD alerta para o risco de a missão militar da SADC terminar sem esclarecimento do escândalo da queima de corpos em Cabo Delgado”.

Logo no início da leitura, o menino ficou em silêncio… o aluno da sétima classe não conseguiu ler o texto até ao fim.

O aluno que foi aprovado da primeira até à sétima classe tem graves falhas de escrita.

Para os petizes, palavra Hino é escrita sem o H, ficando ino. O termo reensinando é escrito desta forma: “reicinando”. Social escreve-se, segundo alunos, assim: “cocial”. Já a palavra participa, os alunos escrevem assim: “partimpa”.

Esta é apenas uma demonstração da forma como os alunos da sétima classe escrevem e sequer conseguem ler o que eles próprios escreveram.

Recuamos um pouco até às classes iniciais. Especificamente a quinta classe. Para os alunos deste nível, escrever o próprio nome é uma operação matemática.

Resumindo, nas turmas visitadas pela nossa equipa de reportagem, grande parte dos alunos também não sabe ler. Entretanto, nem tudo corre mal. Há bons exemplos. Alunos que sabem ler e escrever perfeitamente.

Os professores estão cientes dos problemas de leitura e escrita que os alunos apresentam. Reconhecem que algo falhou nas classes iniciais.

“Alguns dos meus alunos não sabem ler nem escrever. Eu sei disso. Algo falhou na base. Mas não estou aqui para apontar falhas, mas para arranjar soluções”, disse Celestino Coronel, professor de uma das escolas da capital do país.

Os directores de algumas escolas desmentem que haja alunos que transitem de classe para outra sem saber ler nem escrever. “No final de cada trimestre, eles são submetidos a uma prova e, com base nela, nós já sabemos quantos alunos temos na escola que sabem ler e escrever. Os que não sabem ficam retidos na mesma classe”, explicou Carla Sambo, directora da Escola Primária Completa 25 de Setembro. 

Segundo a gestora escolar, não é, também, verdade, segundo as direcções das escolas, que haja manipulação de resultados para aprovação de alunos. “Nós temos exames no fim do ciclo. Lá, só passa quem reúne as condições para ser aprovado”, sublinhou Carla Sambo.

Até se pode passar para a classe seguinte, mas a busca da qualidade de ensino é constante. “Os desafios são aquilo que nós estamos sempre a fazer: lutar para melhorar a qualidade, mas estamos a um bom passo”, afirmou Amílcar Bata, director da Escola Primária Completa Unidade 10.

Estes são os discursos formais e politicamente correctos que as câmaras mostram e os gravadores captam.

Conversámos com directores de algumas escolas e estes revelaram tudo. Contaram que também recebem ordens superiores para passar alunos sem competências.

“No fim do ano, há-de vir uma adenda de lá de cima a dizer: senhor director, controla a situação. Quer dizer que tem de deixar passar aquele que tem sete (valores)”. Não se arredonda, mas vai aparecer alguém a dizer que temos de ponderar a partir de sete”, revelou o director.

O incumprimento da manipulação pode colocar em causa o cargo de director da escola. “Até a mim me dizem: você está aí a fazer o quê  como director? Você não está a fazer nada. Como a sua escola é sempre a última, você não está a fazer nada. E depois as próprias direcções provinciais também vão dizer que até Cabo Delgado, lá onde há guerra (apresentam melhores resultados). Então, este director está a fazer o quê?”, detalhou a nossa fonte.

A Organização Nacional dos Professores (ONP), diz que desconhece a pressão exercida sobre os docentes para a manipulação de pautas. “Oficialmente, eu não posso afirmar. Estou na sociedade moçambicana e tenho acompanhado que os professores devem resolver algumas situações. Mas o director da escola não pode obrigar o professor a inventar percentagem. Em contrapartida, ele é culpado porque não fez o acompanhamento do seu professor durante a aula, se ele ministra bem ou não”, negou Teodoro Muidumbe, secretário-geral da Organização Nacional dos Professores.

O secretário-geral da ONP diz não ser normal que um aluno chegue à quinta classe sem saber ler nem escrever e culpa o sistema. “A criança que está na primeira classe deveria chegar à quinta com o mesmo professor, porque este estaria a acompanhar a sua evolução. Ademais, para as classes iniciais, o número de alunos deveria ser reduzido, entre 30 e 40, para o professor poder acompanhar cada criança e conhecer os seus problemas”, sugeriu o secretário-geral da ONP. 

A ONP insta os professores a denunciarem para, assim, a organização tomar medidas junto da escola em causa.

Os especialistas em educação dizem que a falta de autonomia dos professores para que possam agir de acordo com os padrões pedagógicos e a má interpretação de progressões semi-automáticas pode estar por trás da manipulação de resultados. 

O conceito de progressões semi-automáticas surgiu em 2004 e estabelece que os alunos só são retidos por ciclo e não mais de duas vezes na mesma classe.

Assim, de acordo com a nova Lei do Sistema Nacional de Educação, os alunos só devem ou pelo menos deveriam ser retidos na terceira e sexta classes para o ensino primário; na nona e décima segunda classes no secundário.

“Entrou-se num círculo vicioso, em que todos passam e ninguém tem o cuidado de, na classe seguinte, tentar perceber quais são as competências que faltam àqueles alunos”, observou o especialista em educação da Universidade Pedagógica de Maputo, Camilo Usse.

E disse mais: “Hoje em dia, nós vemos crianças de quinta, sexta e sétima, até estudantes das universidades com muitos défices de leitura e escrita. Isso se aprende na segunda classe. Ninguém deveria passar da primeira para segunda sem saber ler e escrever”.

Camilo Ussene diz que não faz sentido justificar a manipulação de resultados com a falta de infra-estruturas escolares.

“Não temos de pensar em aprovar 100 por cento, porque,quando nos dermos conta, dos 100 por cento, apenas 40 por cento é que tem as competências. Não devemos preocupar-nos com os números, mas sim ter o cuidado pedagógico, de cidadania, de criar condições para que os outros 60 por cento saibam ler e escrever”, indicou Camilo Ussene.

Mais do que um crime, manipular dados para aprovar alunos sem competência é matar a educação. “Está a matar uma sociedade e cérebros. Podem não assumir a coisa, mas como já é um problema, há um ruído. Existe algo errado. É preciso fazer um trabalho de base de pesquisa e intervenção para salvar o país”, exortou Gildo Comenguena, especialista em educação.

Gildo Comenguena defende que o professor deve pautar pela ética e deontologia profissional e nunca ceder à pressão. “Se eu, como professor, aceito ser manipulado, eu estou a faltar à responsabilidade, como educador. Tenho de saber que a minha satisfação, como professor, é ver o aluno brilhar”, concluiu Gildo Comenguena.

Actualmente, a taxa de analfabetismo no país é de 49 por cento nas mulheres e 27 por cento nos homens.

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