“(…) Há feridas que parecem não sarar. Sangram, vertem pus,
voltam a sangrar, surpreendem-nos a magoar a alma quando
está já deveria estar habituada e imune a tanta dor”
– José Rodrigues dos Santos (A ilha das trevas, 2007)
Luzes apagadas. Silêncio estampado em cada olhar atento. Respiração enterrada no fundo dos pulmões. Suspense. E, como a vida é feita nesses meios do contraste, luz e voz surgem. Mais suspense ainda. É nesse ambiente introspectivo e poético em que a peça “sobreviventes” começa, pegando-nos a todos pelo susto, que é mais movido pela intensidade da fragilidade, numa insustentável leveza de existir, diria Kundera, que nos pesa do que outra coisa. Um drama com apenas duas personagens, performada por Sufaida Moyane e Samuel Nhamatate, que fazem aquilo que Aristóteles chama de mimeses (imitação) de várias realidades que, de uma e outra forma, são esses carrosséis na distribuição de feridas. Várias feridas, outras que doem enquanto sangram e outras que apenas doem, sem sangue.
Que realidade foi aqui imitada? Numa única peça duas realidades dialogam, o psicológico e a material, apesar da, claro, materialidade também ter influência do psicológico. A peça teatral inicia com uma luz dramática, um tom azul que cria uma atmosfera muito introspectiva, que nos leva para esses bandos da dramaticidade da vida, aqui já se pode afirmar sem vieses de dúvidas nas margens das palavras que a luz, muito mais do que um recurso técnico para iluminar o cenário, também abre espaço para o ambiente ser poético, a atmosfera ser onírica assumindo uma função psicológica, em que mergulhamos dentro da psique humana até a profundidade onde encontramos o medo, os nossos desejos mais profundos e reprimidos, e as feridas que não vertem — os traumas.
Essa peça é divida em dois momentos diferentes que eu nomeio “a caminhada na longa noite”, inspirada na fala da própria personagem feminina, e a outra parte que é a condição de ser sobrevivente. Na primeira parte a personagem que aparece, a feminina, narra o antes, como e quando a guerra chega. Primeiro viviam desinteressados, ouviam sobre a guerra de longe, ouviam pela rádio, como se fosse algo que nunca pudesse os alcançar. Mas ela avança, entre aldeias, atravessando montanhas e rios — aqui que servem como uma amostra de como a guerra não é detida por qualquer barreira, aliás, ultrapassa-as — e ela seguiu consumindo tudo e deixava “os seus e levava os outro”, e eles ouviam pela rádio, até que a rádio também foi consumida. Se antes antes havia quem avisasse e espalhava as notícias para alertar, já não havia quem alertasse; antes do caos, o pânico toma conta, e foi o que aconteceu. Ela, a personagem, fugiu como os outros antes que a guerra chegasse, e a vida dela cabia “em duas malas”, demonstrando esse pânico, a correria para deixar a guerra para trás. Antes dela chegar até ela, a guerra mandava recados com mortos “numa carroça puxada por um burro exausto”. A personagem corria, e quando se deu a descansar um pouco, encontrou-lhe a guerra, e a matou. Aqui está a coisa interessante, a personagem não fala da morte física, mas talvez do psicológico já desgastado pelo pânico, o caos, o cansaço, e a desesperança que também mata. A guerra o faz juntar-se aos outros condenados por ela mesma que estão na mesma condição e cansados.
Só que para ser sobrevivente, a personagem teve de passar por muitas provações ou provocações que, já na segunda parte vê-se, deixaram ruínas nela e em outros; é a esse caminhar que me refiro. A longa noite, que já é o segundo motivo, lembra-me a era das trevas na Europa, que é caracterizada por morte, guerra, e forte crença. Mas o que me interessa aqui é a morte e guerra que fizeram duma era ser considerada das trevas, e as trevas significam noite. Então a noite — de guerra, mortes, privações, cansaço, terrores e perda — foi muito longa para a personagem feminina. O caminhar na longa noite não é, assim sendo, somente um período do dia, mas um tempo em que não havia luz, apenas dores que marcam.
Uma primeira parte emocionante devido a luz, ao silêncio de música, além do momento em que ela começa a contorcer-se de dores e depois cai no chão. Acima de tudo, a emoção deve-se a forma pela qual a personagem narra tudo isso de forma tão marcante que toca a qualquer um. A forma acelerada que adotou também imprimiu esse sentimento de urgência, e deu para sentir a dor, o desespero advindo daquela voz trémula e ofegante. Isso justifica a “caminhada na longa noite” por dois motivos, o segundo não se trata bem de um motivo. Primeiro porque essa primeira parte, na verdade, é apenas uma justificativa da segunda parte, mostra o que aconteceu para se chegar na condição de sobrevivente. Ao assistir a peça, ainda no início, perguntava-me, “sobrevivente de quê?”, a resposta para essa pergunta está precisamente nessa primeira parte: sobreviventes da guerra que consumiu tudo e deixou apenas cinzas.
Falando da narrativa, em particular, porque a primeira parte é exactamente isso, a narração de tudo o que aconteceu. Parece-me que a narração é um recurso que foi usado para colmatar a falta de meios para mostrar, no lugar de dizer, que é a função do teatro. Contudo, a Sufaida o faz numa mestria sem igual, que acaba se esquecendo essa toda coisa de “mostrar, no lugar de dizer”, e fez-nos sentir o drama todo de alguém perseguido pela guerra, ou pela “longa noite”.
Essa observação faz sentido porque os personagens, ambos, iriam aparecer no segundo momento que dá o título à peca, por isso a parte central da história. Se por um lado temos essa luz dramática, um azul que cria uma atmosfera onírica — agora já posso dizer, que remete ao passado, ou a um evento que passou e que foi doloroso e traumático — por outro lado temos a claridade, que contrasta a primeira parte. Se lá retrata eventos passados, aqui temos o presente, a condição já de ser sobrevivente sendo imitada.
O segundo momento inicia com a protagonista, interpretado por Samuel Nhamatate, a sonhar alto com gasolina, catana, máscara, combustível, etc. Ao acordar, este depara-se com a personagem feminina e assusta-se por terem mais um “cadáver vivo” naquela “multidão compacta”. Aqui o drama, a desconfiança, a incerteza, o medo, são sentimentos que lideram esses lugares onde pessoas como a personagem feminina sobrevivem, mas, acima de tudo, o trauma. Chego nessa parte e lembro da entrevista do Mia Couto em Óbidos, quando perguntado sobre manifestações que assolaram o país durante muito tempo, disse: “seja quem for que vá governar a seguir, vai governar ruínas, ruínas humanas e ruínas físicas” (Diário Notícias, 2024).
Nessa parte trata-se dessas ruínas humanas e físicas que a guerra sempre deixa para trás, e é essa a condição de ser sobrevivente: viver sobre ruínas sendo também ruína humana.
O personagem masculino, que parece ser quem está em vias de restruturação, ainda apresenta sequelas, fissuras na sua alma, e isso reflectiu-se no sonhos, por exemplo. Aquele não é um sonho qualquer, segundo a psicologia, é um sonho traumático, que revive momentos ou eventos estressantes, como é o caso da guerra. E a esse nível, o encenador fez cá um belo trabalho, e os artistas interpretaram bem essas emoções dolorosas.
O ponto mais alto é quando o essa personagem coça-se, como se tivesse alguma alergia ou mesmo de algo, e diz, “isso a mim enerva”, e parece que já vai vivendo por um longo tempo naquela condição pois “nem a água nem o sabão” já tem um efeito, que é de limpar. Uma cena com uma profundidade imensa porque a coceira não é bem no corpo em si, mas no espírito. Há algo no espírito que não lhe deixa sossegar, e pergunta se “a outra não sente, pois estão nisso juntos”; ou seja, estão naquela condição de sobreviventes juntos, cheios de traumas e outras dores, então também deveria sentir o que ele sente, a coceira infernal que sente.
A peça termina com a tentativa de aproximação, já mais física, delicada, como se percebesse que a personagem não se passa de mais uma produzida pela guerra, e que ela viu aquele lugar com aquela “multidão compacta” como um lugar em que estaria com outros degenerados gerados pela guerra. Aqui onde a peça contraria-se, se por um lado, apresenta apenas dois sobreviventes que não se conhece nem o nome, na narração a personagem fala de “nós” como povo, e que depois longa caminhada ela foi juntada aos outros “cansados” e no alto duma colina ela viu “uma multidão compacta” à qual se iria juntar. Ou seja, são apenas eles dois, representam pessoas e uma multidão traumatizada, por isso a observação, se tivesses alguns personagens só para fazerem figurino, seria mais claro e haveria um tanto de coerência.
Assim sendo, a peça teatral “sobreviventes” apresentada num contexto sombrio, da pandemia de COVID e da guerra em Cabo Delgado, e no mundo, leva-nos para esse drama de ser um sobrevivente depois de passar por uma longa noite, vivendo uma ‘ilha das trevas’, como escreveu José Rodrigues dos Santos, apresentando, inclusivamente, um personagem chamado Paulino de Jesus Conceição vivendo com traumas que o fazem sempre acordar num susto como o faz o personagem de “sobreviventes”, ambos, o Paulino de Jesus e a personagem masculino da peça passaram viveram em períodos de guerra.
Mais do que uma peça teatral, é uma chamada humana, uma forma para pararmos e pensar sobre os efeitos da guerra, em como essa coisa de ser sobrevivente não é uma das melhores coisas, apesar de não ser das piores, pois poderá se pensar que o pior é a morte. Será? Alguns dos jovens que serviram em Cabo Delgado e andam deixados por aí “cadáveres vivos” teriam uma palavra para dizer.
Assim, Sobreviventes revela-se mais do que um retrato de dois indivíduos marcados pela guerra: é um espelho coletivo onde se reconhecem as ruínas humanas e físicas que qualquer conflito deixa para trás. Entre a escuridão azul da “longa noite” e a claridade desconfortável da sobrevivência, a peça mostra que viver após a guerra não significa estar ileso, mas carregar no corpo e no espírito as feridas que não saram. Ao condensar, num dueto intenso, o peso de uma “multidão compacta” de traumas, a encenação convida o espectador a atravessar, junto das personagens, essa fronteira difusa entre estar vivo e apenas continuar a existir.