Era uma dessas tardes melancólicas, inevitavelmente pungentes, dadas ao recolhimento, ao ensimesmamento, com a chuva diante de mim, que batia as portas de vidro e escorria pelo chão da varanda, ocultando o mar e a paisagem índica e impressiva, quando sobrevieram as belas vozes de Sarah Vaughan (“Misty”), Ella Fitzegerald (“Someone to wash over me”), Dinah Washington (“Mad about the Boy”), Billie Holiday (“Stormy weather” – tinha muito a ver), Nina Simone (“Don´t explain”). A poesia parecia-me o melhor refúgio. Anotações de uma tarde de sábado:
Julius Kazembe: “quisera ter as mãos que tem a água/ para quando vertido sobre ti/ te permear até ao último favo/ contigo trançar um cesto de vime”. Belos versos do poema “Adiemos os brindes para mais tarde.” O meu dilecto amigo Julius Kazembe é um extraordinário poeta. Não publicou em livro. Foi jornalista, foi tradutor. Trabalhou numa agência das Nações Unidas. Viveu no Zimbabwe, nos Estados Unidos. Vive, ao que sei, na África do Sul. “Changara”, outro belíssimo texto, começa assim: “Engoliram luas as crianças de Changara.” Gosto de quase tudo o que ele escreveu e que publicou. Gosto de o ouvir a dizer o poema “A Musa Prostituída”, dedicado ao Luís Carlos Patraquim.
Luís Carlos Patraquim: “afasto as cortinas da tarde/ porque te desejo inteira/ no poema.” É dos mais belos poemas do livro Monção: “E passas de capulana/ teu corpo como as dunas/ plantadas de pinheiros/ rumorejando perto.” O Luís Carlos publicou depois muitos outros belos livros, mas este é notável. O poema termina: “a fúria das ondas/ caindo brandas/ no meu gesto.” Um grande poeta! No mesmo livro, “A Metamorfose”, dedicada a José Craveirinha: “quando o medo puxava lustro à cidade/ eu era pequeno/ vê lá que nem casaco tinha/ nem sentimento do mundo grave/ ou lido Carlos Drummond de Andrade.” Tenho saudades das minhas tertúlias com o Patraquim. Passam mais de 30 anos! Ele foi para Lisboa em 1986. Faz tempo que não o vejo. Convivemos ao longo destes anos em Lisboa, no Bairro Alto, na ronda dos bares. Com o José Craveirinha ou o Rui Nogar, quando ninguém estava morto.
Billie Holiday canta “Come rain or come shine.” Parece que a chuva abrandou. Leio José Craveirinha. Poema “Lustro”: “Velha quizumba/ de olhos raiados de sangue/serve-me os rins da angústia/ e a dentes de nojo/ carnívora rói-me a medula infracturável do sonho.” Moçambique tem, no século XX, notáveis poetas. Craveirinha, Noémia, Knopfli, Nogar, Alba, Patraquim, White, eu sei lá! Penso, enquanto Dinah Washington canta “Cry me a river.” Leio este poema em diálogo intertextual com o Patraquim. Versos finais do poema “Lustro”: “os jacarandás ao menos ainda choram flores/ mas de joelhos o medo/ puxa lustro à cidade.” Está no livro Cela 1.
Sucedem-se Peggy Lee (“They can´t take away from me”), Doroth Dandrive (“The old feeling”), Anita O´Day (“Tenderly”) e eu leio “Quando o José pensa na América”: “Na Mafalala quando o José pensa bem na América/ velhas lágrimas de Spiritual salgam os encardidos/ asfaltos de água do grande Mississipi com muitas recordações.” Leio “Desde que o meu amigo Nelson Mandela foi morar em “Robben Island.” Recordo-me do Tomás Viera Mário dizendo este poema, ali no Tunduru, nos longínquos anos 80. (Ontem, 18 de Julho, Nelson Mandela fez 100 anos. Digo que fez porque um homem da estatura do Mandela não morre. Anoto isto quando revejo este texto, no qual aludo e saúdo poetas meus amigos.) Ou lembro, ao ler “As Saborosas Tanjarinas d´Inhambane”, a voz do Gulamo Khan, no mesmo Tunduru, há mais de trinta anos. O poema, o poeta dedicou-o ao Gulamo sacrificado em Mbuzini.
Vi o Gulamo, pela última vez, sentado num banco do Tunduru, com jat lag, acabara de regressar, com o Presidente, de uma viagem ao Japão. Passaram mais de 3 décadas. Uma vida passa num instante. Ainda estou diante do Gulamo ali no Tunduru e parece que foi ontem. Trinta e dois anos depois. Estarei melancólico? – Interrogo-me. Patti Page canta “I didn´t know about you”. Leio: “céleres as águas /zambezeiam pela memória/ das almadias do silêncio.” O título do poema “Moçambicanto”, como seria o título do livro póstumo do Khan. Gulamo Khan amava e dizia a poesia do Craveirinha, amava e dizia a poesia da Nóemia de Sousa. Quantas vezes o ouvi dizer “Deixa Passar o meu Povo”? – “Oh, Let My People Go!”
Noémia de Sousa: “Somos fugitivas de todos os bairros de zinco e caniço. /Fugitivas das Munhuanas e dos Xipamanines, / viemos do outro lado da cidade/ com nossos olhos espantados, / nossas almas trancadas, / nossos corpos submissos escancarados.” Foi assim que eu conheci Noémia – eu tinha 15 anos – e a amaria para sempre. Este poema colou-se-me à pele. Diana Krall canta: “I´ve got you under my skin.” Andávamos de mãos dadas, ao largo do Tejo, em Lisboa, andávamos de mãos dadas em Londres, andávamos de mãos dadas em Maputo. Ando agora de mãos dadas com a Noémia de Sousa, na memória e na solidão habitada e exultada de seus versos.
O Rui Nogar também era um excelente declamador e vejo-o a dizer: “eu bebeu suruma/ dos teus ólho Ana Maria. / eu bebeu suruma/ e ficou mesmo maluco.” São raros os poetas que sabem dizer poesia. O Julius Kazembe, já o referi, dizia magnificamente, mas também o Eduardo White. O White dizia extraordinariamente, para além de ser um grande poeta, o mais importante da minha geração. Silje Nergaard: “Every time we say goodbye.” Leio enquanto oiço estas vozes longínquas. Leio: “tratávamos o silêncio por tu/ dormíamos na mesma cama/ acordávamos do mesmo sono.” Do Rui Nogar e do poema “Da fruição do silêncio”, que vem no livro Silêncio Escancarado.
Por falar em Rui, sou indefectível do Knopfli. Toda a gente o sabe. “Nunca Mais é Sábado:” um poema soberbo. Pilhei-o para título de uma antologia. O Luís Carlos Patraquim escreveu “Elegia de Sábado”, um aceno intertextual. Encima o presente texto uma referência encomiástica ao Sábado. Não disfarço a sua origem. No caso, elogio, panegírico, aplauso a estes belíssimos poetas da minha terra. Apetece-me transcrever todo o poema do Rui Knopfli. Receio que seja bastante longo. Deixo-me, no entanto, levitar na voz de Ruth Cameron: “Something cool”. Rui Knopfli: “Nós os humildes e os humilhados, / os que não temos rosto próprio porque somos/ o rosto da multidão.” “Da escada de serviço e do elevador/ para o prédio, do prédio para a rua, / da rua para a praça, da praça para a cidade, / da cidade para o subúrbio, onde crescem/ a doença, o medo, a fome e o futuro, / – nunca, nunca mais é sábado.”
Dee Dee Bridgewater canta “Angels eyes” e toca o telefone. No facetime, irrompe o meu filho Irati. Liga-me de Brighton e resgata-me desta melancolia de sábado. Debutei no jazz em Londres no tempo em que o Rui Knopfli lá vivia e fui hóspede dele. Sempre que lá vou, quando vou visitar o meu filho, lembro-me do “escriba acocorado.” Com ele também aprendi o muito do pouco que sei do ofício. Durante anos eu declamei o poema “Adeus Xico.” Uma pungente elegia. Ou o poema “Winds of change:” “De facto como é mansa e boa/ a Polana/ nas suas ruas, túneis de frescura/ atapetados de veludo vermelho. / Tudo joga tão certo, tudo está/ tão bem/ como num filme tecnicolorido. / Passam. Passam/ e tornam a passar. / Ninguém se apercebe de nada.” A voz poderosíssima de Abbey Lincoln – “Say don´t remember” -, diz ela na música “Brother, can you spare a dime?”. Apaixonei-me por Abbey através desta música.
Rui Knopfli escreveu dos mais belos poemas que existem sobre a ilha de Moçambique. “Ilha Dourada:” “A fortaleza mergulha no mar/ os cansados flancos/ e sonha com impossíveis/ naves moiras.” “Em pleno dia claro/ vejo-te adormecer na distância, /Ilha de Moçambique, / e faço-te estes versos/ de sal e esquecimento.” A Ilha de Próspero é um belíssimo livro: “Ilha, velha ilha, metal remanchado, / minha paixão adolescente.” Diana Krall, reincidente, canta “Why should I care.” A Ilha também. Agora na voz de Alberto de Lacerda, que lá nasceu: “Ó festa de luz de mar tranquilo/ De casas brancas dum branco rosa/ Dum tempo que aqui ficou.” Isto no belíssimo livro Exílio. O poema homónimo: “O exílio é isto e não mais/ Na sua forma mais perfeita: / Hoje na terra de meus pais/ Somente a luz não é suspeita.” (Acabo de adquirir Labareda, uma bela antologia de Lacerda, que faria 90 anos em Setembro – nasceu a 20 como Noémia de Sousa.) Patraquim cantou a Ilha em “Muhipiti”: “É onde somos inúteis.” Leio isto e oiço Shirley Horn: “I got lost in his arms.” “Onde na noite a Ilha recolhe todos os istmos/ e marulham as vozes.”
Eduardo White: “Amo-te sem recusas e o meu amor é esta fortaleza, esta Ilha encantada, estas memórias sobre as paredes e ninguém sabe deste pangaio que a Norte e na Ilha traz um amante inconfortado. Em tudo habita ainda a tua imagem, o m´siro purificado da tua beleza e das tuas sedas, a rosa-dos-ventos, o sextante dos tempos, em tudo acordas de repente como se ardesses naus, garças, águas, ouros, pratas, vagas, escravos ausentes, tudo o que esta Ilha que sou a Norte, nos pode lembrar. Deito-me, assim, sobre o Sol com a praia funda em meu pensamento” (In Os Materiais do Amor seguido de O Desafio à Tristeza).
Outra vez Ruth Cameron. Agora, “One for my Baby.” Ela canta: “One more for the road.” Comecei a ler estes poetas, como forma de fugir à tristeza. White diria que eu o fiz como um “desafio à tristeza.” Chovia. O dia estava escuro. Eu sentia-me só. A poesia acudiu-me. Estas belas vozes do jazz. “Why are you doing the rest of my life,” canta Laura Fygi. Já não chove e o mar acolhe placidamente a noite. Eu deixo-me aqui ao som destas vozes: Diane Schuur (“The man I love”) e Helen Merril: “Baby ain´t good to you.” A chamada do Irati trouxe-me alento. Ouvi-lo foi maravilhoso. Estas poderosas vozes e estes belíssimos poetas idem.